terça-feira, 8 de março de 2011

Cinco


Vais cada vez mais cedo para a rua
dantes só o outro dia te levava.
Não tem mal, deixa-me falar
das pessoas encontradas num jardim
escondo-me no verde dos seus olhos
se fossem os meus, esses acordavam
com a folha de fogo na videira
na latada ao dia mais brilhante
de maio quando as aves voltam
e a glicínia começa a cair.

É assim, eu sei. Depois de se querer tudo
queremos só o corpo e depois nem isso,
apenas que te lembres
de certo canto de rua, da garrafa
num café de bairro, do papel
que tanto recado te levou,
do jardim ao anoitecer
enrolávamos cigarros
na folha de papel "conquistador".

Virás ainda a amar, como por mim,
quem mais amei e se foi embora.
A cabeça curva-se ao desígnio.
A mão de cada um entende essa desordem.
A primeira palavra diz-nos tudo,
a segunda já quase nada diz
dizemos depois dela "até outra altura".
Na tenaz noite quem ganhou
ganhei-te eu ganhaste-me tu, a mim?

Se um dia a oliveira selvagem
souber tão bem a ti como sabe à cabra
cala-te, vai com a criança jogar ao pião.
Leva o teu jogo para tão longe
que não o siga a história.
O combate da razão e da melodia
reanima o coração ameaçado.
Pareces livre na vaia dos relâmpagos.

Um jardim de goivos e de cardos
e rícinos num nódulo de chorões
abre um refúgio junto da falésia.
O mar encapelado finda numa lâmina
sobre o promontório.
E vês alguém sentado numa rua
refaz um charro a muito custo
assobia baixinho uma canção antiga.
Joaquim Manuel Magalhães
António Palolo (1978)
in Consequência do Lugar
2001, ed. Relógio d´Água
pintura de Edward Hopper

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