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sexta-feira, 22 de março de 2013

Harmonia das Esferas


Pelas grades das persianas a lua cheia desembolsa
Em pleno no meu quarto, vómitos jorram até manchar a cama.
Nela deitado ardo como um olho que nunca mais pode fechar,
Uma pequena poça de carne, um órfão do tamanho de uma orelha.

Lá em baixo adolescentes dão estoiros nas garagens, expõem
Com gritos as partes pudendas niqueladas num regaço
De tijolo, dão cabo das janelas e matraqueiam com taipais
Para chatear a noite, mais o bairro, toda a danada da criação.

Mais tarde o torturante gotejar dos segundos
Nas goteiras de zinco. Tlipe. Tlipe. Plom. E lá ao fundo
Nos jardins carbonizados e ermos
A invisibilidade uivante dos gatos no cio.

Desde que moro aqui, mando longas cartas
Para a casa anterior. Lá, podia dormir, vigiar, silêncio
E escuridão aí reinavam, como no sedutor vazio rítmico
E opressivo de poemas por escrever.

Leonard Nolens
trad. do neerlandês flamengo por Catherine Barel
Uma Migalha na Saia do Universo (Antologia de Poesia Neerlandesa  do Século Vinte)
ed. Assírio e Alvim
pintura de Isabel de Sá

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Ainda a Tua Partida


Deixaste-me a boca cheia
de lágrimas, como se
o choro sufocasse.
Devastado, o rosto
ainda não conseguiu
erguer-se da lama.
Como pudeste fazer tanto
mal?

A vida, por vezes,
é uma imitação grosseira
se si própria e castiga-nos
assim, sem beleza.

Parece que a cidade
está deserta. Há sombras,
cintilações de lixo.
Procuro nos poetas
algum alívio
para esta mágoa.
Os livros são seguros,
fiéis ao nosso olhar.

Isabel de Sá
Erosão de Sentimentos
1997, ed. Caminho
pintura de Paul Gauguin

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Onde o Rigor Atinge o seu Limite


Estou perto de uma encruzilhada.
Há, nela, um
cadáver de versos e uma ave.
Couberam-me por sorte
uma vez que eu própria os assassinei
e esse crime voou pelas palavras do meu sonho
varrendo o ar
aluncinado.
Ecoam ainda, os seus gritos, pelos
caminhos.
Ouvem-se as suas vozes dizer: _Esquece o teu coração pueril.
Pertences à noite e és suspeito
de loucura maior que a dos teus pesadelos _a de cravares
um punhal no remorso que te devora.
És um corvo.
Alimentas o terror e a passividade
da cova onde te permito enterrar-me viva,
para que a minha carne
possa ser consumida
pelo teu mais infame
poema.

Eduarda Chiote
Órgãos Epistolares
2011, ed. Afrontamento
imagem de Isabel de Sá

sábado, 1 de setembro de 2012

Coisas minhas II


 
 O SEGUNDO SOL
 
And the things that are flowers are dead
I keep waterind the dead flower
There's not enough of me to make a bouquet
Stop watering the dead flower
 
Marilyn Manson, Doppelherz
Sob o brilho da manhã encontro
o abismo, memória
da infância que foge para nos atormentar
ou proteger.
 
No betão derrama-se a luz e acorda
o desejo de fuga, o drama de um exílio.
 
Há uma flor morta.
O teu perfil
tem a força da seiva, o olhar
vago traz de voltao tempo
em que o corpo se tornou vida.
 
Às vezes parece que te amo, outras
és só espelho.
Tens a mão pousada sobre a perna
como uma promessa esquecida.
Vem a laceração,
o gelo sob a pele, translúcido,
e a flor morre mais
apesar de seres água ou
um segundo sol que dá vida
mais do que a dá o primeiro.
 

Vou contra o tédio e a inércia
a imaginar o teu corpo
abraçado ao meu como se fôssemos
a mesma sombra.
 
 

[João Borges: Lisboa, 13.3.12]
 
desenho de Isabel de Sá

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

[Vou no sono com dedos de fulvas cabeleiras]


Suspeitas eram às teorias dos homens certas aves ou faunos.
Ondulantes. Digamos que iguais, nunca. Evolutivos à passagem das mulheres vendendo ramos. Estremecendo ao canto das crianças.
Repudiando o tédio mágico

doméstico ou não
dessa constatação burguesa.

Isabel de Sá
O Festim das Serpentes Novas
1982, ed. Brasília
pintura de Constant Montald

terça-feira, 8 de maio de 2012

Um apontamento


Deixo que o silêncio que acentue. Foi um instante de silêncio, apenas, mas destes que se repetem. Os pregoeiros de voz conhecida voltaram, mas hão-de desaparecer, afastar-se. Os silêncios agradáveis dps doas de chuva tornarão. E se não tornarem...
Os pássaros já se aproximam. Foi mesmo o pio de um, que oiço de novo mas ainda afastado, que me fez apreciar aquêle silêncio que começava a reinar. Êste tempo chuvoso abafa o mundo, serve-lhe de redoma.

Irene Lisboa
Apontamentos
1943, ed. autora
pintura de Isabel de Sá

terça-feira, 6 de março de 2012

Amigo de Intelectuais


O sr. Francisco, dono do mini-mercado e do snack-bar que ficam de fronte da casa do U., disse-me que "era uma vergonha que, sendo eu amigo de intelectuais, tivesse um tão mau comportamento" (Referia-se ao U., que é seu cliente;........ "Mas sr. Francisco" respondi-lhe eu, à maneira de Júlio Dinis, "o sr. disse: os intelectuais são eles; eu sou apenas seu amigo.
Como posso comportar-me tão bem?"

Sebastião Alba
Ventos da Minha Alma
2006, ed. Quasi
desenho de Isabel de Sá

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Depois de um exame, pensar em amor

gouache de Isabel de Sá



Anathema: Thin Air (2010)
letra de Vincent Cavanagh, Daniel Cavanagh e John Douglas


AUSÊNCIA SETE

Morro de te morrer diariamente,
habito no fundo destas latas.

Caminho para os bichos que me devoram
em teu incêndio
e teus joelhos sombrios,
esta neve agitada de cinzas.

São de morte meus ossos, de uma cor
dançante e muda.

São de túnicas podres
como um reino de ruas reflectidas.

São lúgubres os corpos, braços magros,
sinto o meu espectro, uma origem nua.

Cerejas que
são morte de te morrer.

Jaime Rocha, Beber a Cor
1985, ed. &etc


Natalie Merchant: My Skin (1998)
letra de Natalie Merchant



segunda-feira, 14 de novembro de 2011

[A paisagem de vidro, levíssima asa.]



A paisagem de vidro, levíssima asa.
Era um lábio de rapaz devorando outro rapaz, era uma árvore crescendo em sangue só de fios.
Em direcção ao espelho o corpo transformava-se. A voz perturbava, ainda. Havia excessiva luz e uma frescura impossível.

Isabel de Sá
Nervura
1984, ed. Mirto
fotografia de Slava Mogutin

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Indispensável


Elementos Naturais e Outros Figurantes
pintura e assemblage da pintora e poeta Isabel de Sá
inaugura na Galeira Porto Oriental, amanhã

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Eu cantarei um dia



Eu cantarei um dia da tristeza
Por uns termos tão ternos e saudosos,
Que deixem aos alegres invejosos
De chorarem o mal, que lhes não pesa.


Abrandarei das penhas a dureza,
Exalando suspiros tão queixosos,
Que jamais os rochedos cavernosos
Os repitam da mesma natureza.


Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
Ave, fonte, montanha, flor, corrente,
Comigo hão-de chorar de amor enredos:


Mas ah! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos,
Que eu derramo os meus ais inutilmente.

Leonor de Almeida Portugal, Marquesa de Alorna
Poesias
prefácio e notas de Hernâni Cidade
1941, ed. Sá da Costa
pintura de Isabel de Sá

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

[foram breves e medonhas as noites de amor]


foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração

AL BERTO
O Medo
1997, ed. Assírio e Alvim

imagem de ISABEL DE SÁ

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Um poema


Eis-me diante do abismo, o quase pânico.
Tu, a amada, virás com os dedos examinados à luz da demência, as roupas brancas, os cabelos chispados de lama
a boca belíssima na geada desse riso.
Sobre o leito bebias do desgosto ervas esmagadas, insistias em chorar a fronte loira, o amor de teus vinte anos.
Oiço-te ainda na secura das paredes. As ideias, a paixão como se nada mais fosse possível.


ISABEL DE SÁ
O Festim das Serpentes Novas
1982, ed. Brasília

pintura de ISABEL DE SÁ

domingo, 8 de maio de 2011

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Um poema

Para mim o teu corpo está sepultado
debaixo desta cidade. É a dor
que me faz sentir assim
por saber-te incapaz de amar.

O corpo deambula sem prender
a si o coração. Há o choro
submerso no olhar, a tristeza
que surpreende. Exilada de ti própria
hás-de acabar sob a medonha luz
e 0 rosto é já esse cadáver ou flor
apodrecida. Os lábios perfeitos
desenhados a pincel
são minúsculas fatias de carne
amortalhada.

Agora sou eu e não sou
enleada nas cinzas do passado,
no amor inútil que te dei.


Isabel de Sá

O Brilho da Lama

1999, ed. &etc

fotografia de Izima Kaoru

sexta-feira, 11 de março de 2011

Um poema


Chegou a hora de minha alma não ser ela.
Chegou o tempo de meu corpo não ter corpo
e em silêncio ser de luz, poeira.


Isabel de Sá
Restos de Infantas
1984, ed. Ulmeiro
imagem de Lourdes Castro

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Um poema


Dir-me-ás que a paixão se desfez,
que já esqueceste o nome e os poemas.

Dir-me-ás
que não queres a loucura
dos sentidos, que tens medo
e foges na direcção do pântano
onde o brilho da lama
serve a exclusão.

Entre nós o mundo, outro amor,
a curva da tua nuca e esse olhar
de quem acorda lentamente. De mim
o corpo defendia-se do escuro enquanto
o tempo sepultava na cinza a nossa pele.

Um lençol de sombra sobre as pernas
no tumulto onde ardia o coração.

Molhar as mãos de lágrimas só reacende
a mágoa de viver depois de ter acontecido.
Importa lembrar o sucesso, o esplendor
do instinto que nos levou ao encontro.

Isabel de Sá
O Brilho da Lama
1999, ed. &etc
pintura de Graça Martins

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Um Poema



Quando em noites de insónia acontece pensar naquilo que éramos e nos vem à memória uma ou outra imagem feliz, subitamente ficamos conscientes da vertigem do tempo. Nessas noites entro em mim própria e procuro saber qual a razão que me fez tomar certa atitude, o que me leva a escrever e ficar dependente das palavras. Penso no poema onde a sobrevivência pela escrita é possível. Escrever é como estar vivo; existe o apelo abísmico e a luz do sol.




Isabel de Sá
Escrevo Para Desistir
1988, ed. &etc
desenho de Ângelo de Sousa

domingo, 27 de dezembro de 2009

um poema



Afinal desisto da carta, pensei, absorta num lençol de água- círculo quase fechado sem querer saber dos outros, lembrando apenas, respirando a vida possível. O sol?
Escolho os recantos da sombra, os rios.
Se me volto para o exterior perco o fio de mim, das crianças ainda palpitantes de imaginação, olhares claros na densidade das salas.
Vigiam-me, passeiam-se pelo granito arrastando os sapatos e os sonhos em carrinhos de papel fantasiado. Param a olhar os dedos, o redondo das pequenas unhas. Apalpam-se. Fumam cigarros à sua medida e pensam como será quando forem grandes. Reúnem-se nas retretes e choram ao lembrar a infância de que já não têm memória, tal foi o afogueamento, o frenesim, a pressa de crescer, fazerem vida. Então choram e abraçam-se num local escondido, demasiado íntimo talvez.
Que fizeram dos caramelos, das moedas e das outras mãos a que se davam, não sabem. Os caminhos das silvas estão agora obstruídos. Répteis mijam nas amoras, empestam os silvados onde rosas demasiadas crescem violentamente durante a primavera.





Isabel de Sá
O Festim das Serpentes Novas
1982- Brasília editora
imagem: Graça Martins

domingo, 6 de dezembro de 2009

acabadinha de lançar


Brilho no Escuro, número 3, de inverno.
Poemas de Manuel de Freitas, João Borges, José Luís Peixoto, Nuno Brito, Ana Luísa Amaral e Isabel de Sá.
A capa e as ilustrações ficam a cargo de Graça Martins.
O lançamento, ontem, no Maus Hábitos, contou com apresentação de Isabel de Sá e leituras, brutais, de Isaque Ferreira e Ana Luísa Amaral.