sábado, 6 de julho de 2013

Pequenos Poemas Mentais


I
Quem não sai da sua casa,
não atravessa povos, montes, vales,
não vê as cenas bíblicas das eiras,
nem mulheres de infusa, equilibradas,
nem carros lentos chiadores,
nem homens suados,
quem vive como o insecto cativo no seu redondel,
cria mil olhos para nada...
Mil olhos implacáveis!
E um dia diz: odeio o que ontem amava,
sentindo indómitos ódio.
E diz depois: ó tempo vazio, vazio, vazio...
sem amor nem ódio, terrivelmente pobre.
E ainda volta a dizer: mas eu que sei, que sou?
Não sei nem sou, não me reconheço...
Nunca ninguém, sequer, me deteve, me falou, me interrogou.
Sou uma sombra, ou menos.

E o insecto,
ou o quer que é como o insecto no seu redondel, pára.
Pára circunvagando os mil olhos desgostosos
pela païsagem pobre, irrenovada.


IV
Ó luxúria brutal, perversa e felina,
dos outros, alheia,
sem pensamentos nem repouso!
retira-me da frente o venenoso cálice,
a tua peçonha adocicada.
Que a morte, o nirvana, a indiferença
dos longuíssimos anos sem sobressaltos, me retome.

Abro os braços e meço: cá, lá... cá, lá...
solidão, infinita solidão!
E, neste momento, neste balouço, adormeço.
Cá, lá... morte, vida... morte, vida...
Tôdas as ausências, tôdas as negações.

Irene Lisboa
'Pequenos Poemas Mentais'
Revista de Portugal, nº 3, Abril de 1938
pintura de James Ensor

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