segunda-feira, 29 de julho de 2013

Quartas Moradas, capítulo 1 (fragmento)


Já que estamos sujeitas a comer e a dormir _sobeja provação a que não podemos furtar-nos _reconheçamos a nossa miséria, desejando ir para onde já ninguém nos apoucará; às vezes, lembro-me de ter ouvido que isto mesmo diz a Esposa no Cântico e, realmente, não vejo nesta vida nada de que venha mais a propósito dizê-lo: em meu entender, não se compara a estas batalhas interiores nenhum outro vexame ou padecimento que nela nos possa acontecer. Como já disse, todo o desassossego é suportável desde que haja paz em nossa casa; agora que o estorvo esteja em nós mesmas ao querermos descansar dos mil trabalhos do mundo (e quando Deus quer propiciar-nos o descanso) eis o que é por força penosíssimo e quase insuportável. Leva-nos Senhor para uma terra onde estas misérias nos não rebaixem, que às vezes até parecem zombar da alma. Disto a livra Deus, e ainda nesta vida, quando chega à última morada, como adiante direi se Ele for servido.
Talvez não façam a todos tanta pena estas misérias e os não a assaltem como durante anos me assaltaram, por ser tão má, a ponto de parecer que eu mesma me queria vingar de mim. Mas, tendo-me sido coisa tão penosa, imagino que também vos possa apoquentar; e estou sempre a falar nela, na esperança de alguma vez conseguir mostrar-vos que é inevitável, para que vos não traga inquietas nem aflitas; ora deixemos bater esta taramela de moinho e continuemos a moer a  nossa farinha, não deixando ociosos a vontade e o entendimento.

Teresa de Ávila
(tradução de Manuel de Lucena)
Moradas
1988, ed. Assírio e Alvim
imagem de Miguel Leal

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