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domingo, 12 de abril de 2015

Desabafo



Quando o meu tumulto recrudesce
(tempestade de água num copo)
o meu interior tumulto,
de que me escapa a profunda causa...

Quando falo
e as minhas próprias palavras,
por inúteis,
me espantam e me cansam...

Quando a moral dos outros
me traça à frente
o ridículo sulco dos limites...

Deponho as minhas armas boas ou fracas e rio.
Rio com amargor
e como o vento torço o rumo.

Limites...
Para o coração que tumultua, bofetada.
Para a livre imaginação, queda
Cinza,
cinza atirada àquele quê,
àquele quê nada expansivo e imenso,
ardente e infinito
de um pobre espírito.

Como o vento torço o meu rumo gritando:
Ó lar, ó lar das minhas esperanças!
Ó acolhida dos sem pátria e sem destino!

Risco baço dos meus limites, galguei-te.
Sim, galguei-te.
E perco-me no meu corcel de vento,
infeliz e irritada.

Mas para calar toda esta ansiedade
e, ai!
abafar o meu desprazer,
só alcançando as estrelas,
ultrapassando-as
e desaparecer...

Meu coração inchado rebenta, rebenta!
E tu gasta-te, saudade,
desejo, desespero, paixão do que sonhei

e sempre tive de perder.

Irene Lisboa
in «Seara Nova», 1939
imagem de Miguel Leal

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Sequência X


herdei de ti a máquina de barbear
(eu que não faço a barba)
para enfrentar o terror de limpar os teus
pelinhos póstumos

escanhoei o rosto e durante semanas
aleijei-o com o teu cheiro

Miguel-Manso
Supremo 16/70
2013, ed. Artefacto
imagem de Miguel Leal

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Passo num gesto


























Passo num gesto que eu sei
Deste mundo agoniado para o espaço
Onde sou quanto serei
No tempo que sobra escasso

No outro mundo sou rei
E o meu rosto de cristal e puro aço
É o espelho que forjei
Com suor pena e cansaço

E se o mundo que deixei
Tem as marcas desenhadas do meu passo
São baralhas que enredei
São teias e vidro baço

Tantas provas cá terei
Tantas vezes do pescoço solto o laço
Se me sangraram em rei
Aceitem a lei que eu faço

Vem a ser que o homem novo
Está na verdade que movo

José Saramago
Provavelmente Alegria
4a edição, Caminho, 1998
imagem de Miguel Leal

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Jeito de escrever


Não sei o que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.
Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei o que diga, não sei o que pense.
Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!
Com este longo aparo, bonitas letras e o gesto _o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago...
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas.
Mortas!
E por mais não ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro!
Assim:
uma das mãos no papel, dedos fincados, solta a outra, de pena expectante...
Uma que agarra, a outra que espera...
Ó ilusão!
Me cerro.
E tudo acabou, acaba.
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?
Silêncio.
Nem pássaros já, noite morta.
Me cerro.
Ó minha derradeira composição! do não, do nem, do nada, da ausência e solidão.
Da indiferença.
Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada.
Noite vasta e contínua, caminha, caminha.
Alonga-te.
A ribeira acordou.

Estrela, 1950

Irene Lisboa
Vértice nº 109,
Setembro de 1952
pintura de Miguel Leal

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Quartas Moradas, capítulo 1 (fragmento)


Já que estamos sujeitas a comer e a dormir _sobeja provação a que não podemos furtar-nos _reconheçamos a nossa miséria, desejando ir para onde já ninguém nos apoucará; às vezes, lembro-me de ter ouvido que isto mesmo diz a Esposa no Cântico e, realmente, não vejo nesta vida nada de que venha mais a propósito dizê-lo: em meu entender, não se compara a estas batalhas interiores nenhum outro vexame ou padecimento que nela nos possa acontecer. Como já disse, todo o desassossego é suportável desde que haja paz em nossa casa; agora que o estorvo esteja em nós mesmas ao querermos descansar dos mil trabalhos do mundo (e quando Deus quer propiciar-nos o descanso) eis o que é por força penosíssimo e quase insuportável. Leva-nos Senhor para uma terra onde estas misérias nos não rebaixem, que às vezes até parecem zombar da alma. Disto a livra Deus, e ainda nesta vida, quando chega à última morada, como adiante direi se Ele for servido.
Talvez não façam a todos tanta pena estas misérias e os não a assaltem como durante anos me assaltaram, por ser tão má, a ponto de parecer que eu mesma me queria vingar de mim. Mas, tendo-me sido coisa tão penosa, imagino que também vos possa apoquentar; e estou sempre a falar nela, na esperança de alguma vez conseguir mostrar-vos que é inevitável, para que vos não traga inquietas nem aflitas; ora deixemos bater esta taramela de moinho e continuemos a moer a  nossa farinha, não deixando ociosos a vontade e o entendimento.

Teresa de Ávila
(tradução de Manuel de Lucena)
Moradas
1988, ed. Assírio e Alvim
imagem de Miguel Leal

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Insónia


Insónia. Abro a janela. Esvaimento
No abismo da solidão estrelada.
É inquietante a paz e um sentimento
De hora nenhuma vai da lua ao nada.

Tem nisto um deus sinistro o instrumento
De submeter-me em morte figurada?
Silêncio astral. Estático tormento
No eterno insone que inspira a hora parada.

Suga-me o sangue um polvo agonizante.
Marginam o pensamento delirante
Espectros de prostitutas na avenida.

Pesam as pálpebras. Apodrece a ideia
De adormecer. O dia já clareia
Num galho tenro da árvore da vida.


Natália Correia
Inéditos (1985-1990)
Poesia Completa
1999, ed. Dom Quixote
pintura de Miguel Leal