sexta-feira, 19 de julho de 2013

Amélie Nothomb: Acide Sulfurique

A EXTINÇÃO DA HUMANIDADE

O mundo da escritora belga francófona Amélie Nothomb é definitivamente o do confronto. Desde o seu primeiro romance, 'Hygiène de L'Assassin' (1992), e escrevendo ora num registo declaradamente autobiográfico como em 'Le Sabotage Amoureux' (1993) ou 'Stupeur et Tremblements' (1999), ora num registo ficcional imaginoso e efabulado como em 'Mercure' (1998) ou 'Barbe Bleu' (2012), Amélie aborda sempre a colisão entre dois seres normalmente opostos, cujas diferenças se entrelaçam em textos de um pendor filosófico em que a capacidade argumentativa se torna o centro da narrativa, mais importante, por vezes, do que os acontecimentos propriamente ditos. Aliás, ainda que as tramas dos romances de Nothomb sejam por norma bastante criativas, elas sustentam-se quase inteiramente nas ideias que permitem colocar em cena.

O romance que a escritora publicou em 2005, 'Acide Sulfurique' mantém-se dentro deste universo confrontacional, mas representa um desvio em relação à maioria dos romances de Nothomb. Isto porque, ao passo que em livros como os acima referidos o conflito essencial é entre duas pessoas, ou então entre um pequeno grupo de pessoas, 'Acide Sulfurique' aumenta violentamente a escala do confronto, ao mesmo tempo que, em certos aspectos, também remove um dos elementos desse conflito.
O que este romance nos propõe é uma espécie de fábula distópica, em que uma série de anónimos são raptados nas ruas (Uma referência ao Jardin des Plantes diz-nos que se tratará das ruas de Paris, ainda que possa não ser exclusivamente a capital francesa o lugar dos raptos.) e levados para um campo de concentração que é palco de um reality-show chamado 'Concentration'. No programa encontramos os prisioneiros, todos designados por um código com três letras e três números, e os guardas, os kapos, encarregues de os torturarem e de os encaminharem, dois por cada dia, até às câmaras de morte.
Quando a kapo Zdena se apaixona por uma das prisioneiras, Panonique, parece-nos que está encontrado o típico duelo nothombiano, entre uma vítima e o seu carrasco, levadas ao diálogo mais violento ou menos pela paixão, neste caso uma paixão proibida e não correspondida.
Mas Amélie Nothomb nunca perderia a noção de que uma ficção com uma sinopse assim compreende uma dura crítica à sociedade voyeurista de modelos inspirados no premonitório e preocupante romance de George Orwell, '1984'. Orwell imagina que no futuro, todos seríamos vigiados pelo Big Brother, e precisamente essa entidade emblemática se tornou título de um reality-show que experimentava vigiar continuamente um grupo de pessoas. Mas Amélie vai mais longe na sua dissertação. Ela imagina um programa que não aspira ser 'a novela da vida real' (Como em Portugal se apresentava o 'Big Brother'.) mas sim uma novela em que se assiste directamente à degradação de um grupo de pessoas durante os seus últimos dias. A escritora lança o mote logo na primeira frase do livro:

Vint le moment où la souffrance des autres ne leur suffit plus; il leur en fallut le spectacle.
(p.9)

com esta frase, Nothomb não só desmascara logo à partida a premissa de 'Acide Sulfurique', como define imediatamente qual será o centro do romance: o sofrimento. E, logo depois, a exploração desse sofrimento enquanto entretenimento para uma sociedade fria e desafectada que perde a noção da realidade e qualquer conceito de humanidade. 
Naquilo que este romance tem de futurista e de distópico, ele roça a ficção científica, pelo menos naquilo que encontramos, por exemplo, em Asmiov, sobre a derrota e a extinção da raça humana. Amélie Nothomb não extingue em 'Acide Sulfurique' a raça humana, mas extingue a humanidade, pelo menos enquanto sistema de valores e de sentimentos e de consciência.
E assim, entrelaçado com o duelo entre Zdena e Panonique, surge-nos um muito mais amplo conflito, que é o dos prisioneiros, representados por Panonique, e o público, elemento ausente que se faz representar apenas por números, os números das audiências. Entre uns e outros, surgem, por um lado, os 'organizadores' do programa, que o manipulam de maneira a manter o interesse do público; e os jornalistas, que se dividem entre os mais populistas e os pretensos intelectuais, que ora incitam ora analisam o programa, acabando por inclusivamente tentar boicotá-lo.
A relação entre Zdena e Panonique vai evoluindo ao ponto em que se começa a prever um esquema para permitir a fuga aos prisioneiros, enquanto as audiências vão subindo, atraídas pela figura simbólica de Panonique que se torna uma espécie de mártir que representa a pureza restante num mundo que se destrói a si mesmo.


Como se vê, não só em 'Acide Sulfurique' Amélie aumenta largamente a escala do conflito retratado, como o torna mais complexo. Esta mudança de escala torna-se, pelo menos na primeira parte do livro, de certa forma desconcertante. A escrita de Nothomb mantém todas as características que já encontramos desde 'Hygiène de l'Assassin', é uma escrita simples, directa mas poética e sensível, e essa escrita parece, no início, não estar plenamente adaptada à escala do romance. Os capítulos curtos soam como resumos de vários aspectos desta 'crónica' e demora um pouco até que a mão de Nothomb se nos mostre perfeitamente à-vontade na dimensão do romance que escreve. Quando isso acontece, efectivamente, reconhecemos em 'Acide Sulfurique' a pujança e a desenvoltura dos restantes romances da escritora belga, e facilmente nos deixamos arrastar. Ela leva-nos ao extremo das ideias mais violentas, apresenta com uma crueza quase glacial o desespero dos seus personagens, conduz-nos através da verdadeira perversão e da verdadeira maldade, que se torna mais avassaladora ainda quando temos noção de que nada disto parte de uma pessoa apenas, mas de uma multidão vaga, da qual, por assim dizer, todos fazemos parte.
'Acide Sulfurique' é, por isso, um romance que experimenta uma ideia, levando-a às últimas consequências e que resulta, enquanto peça artística, num texto intenso e dramático, que resiste à predicabilidade e à histeria que um assunto destes facilmente provocaria. 

1 comentário:

Ana Wiesenberger disse...

Acabei de ler esta obra e gostei muito. É a primeira que leio desta escritora, mas já me rendi à necessidade de a ler mais e mais. Não conhecia o blogue; a fazer pesquisa sobre a obra, vim até aqui e gostei do passeio.