O Marquês de Sade terá sido dos primeiros autores a escrever de uma forma directa e crua sobre o jogo de poder que está por vezes implícito na sexualidade. Os '120 Dias de Sodoma', obra onde a imaginação do Marquês se revela de forma mais exacerbada, colocam-nos perante um grupo de quatro homens que se retiram para uma mansão com quatro meretrizes e uma trupe de escravos e escravas, com quem satisfarão as suas extravagâncias sexuais.
O escândalo que os livros do Marquês causaram prolongou-se por muitos anos e se, hoje, já temos um leque bastante mais alargado de autores mais recentes que falam directamente sobre sexo e sexualidade, a verdade é que parte do pudor em ler ou falar de certas obras não desapareceu totalmente.
Léopold de Sacher-Masoch é um exemplo, um pouco mais próximo de Sade e, no princípio do século XX, três nomes surgem para se tornarem definitivos no universo da literatura erótica: D.H. Lawrence, Henry Miller e Anaïs Nin.
Precisamente Anaïs Nin estreou-se nos livros em 1932 com um pequeno estudo intitulado 'D.H. Lawrence: An Unprofessional Study', um ensaio que causou uma certa polémica, por ser uma mulher a analisar e a louvar a obra de Lawrence, que a maioria dos críticos rejeitava, pelo seu conteúdo erótico um tanto desabrido para a época. Hoje, Lawrence é relativamente apreciado e, ainda que nem todas as suas obras gozem da mesma popularidade, grande parte dela encontra-se disponível, analisada e traduzida em várias línguas. Em português, encontramos vários dos livros deste autor.
A nota que aqui quero deixar refere-se a alguns aspectos (E não ao todo.) de um conto de D.H. Lawrence cuja primeira tradução para português foi, penso, a editada em 1987 pela Hiena Editora, em tradução de Aníbal Fernandes, entretanto reeditada pela Assírio e Alvim.
O prefácio, escrito pelo tradutor, tem como título 'Senhor e Servo'. Não ao acaso, pois um dos aspectos mais singificativos deste conto prende-se precisamente com a questão do poder, e da sua relação com o erotismo.
O conto veio a público pela primeira vez numa revista em 1914, e, ainda no mesmo ano, foi incluído num livro de contos do autor, ao qual dava título. Fala-nos de um oficial prussiano e da sua ordenança, um soldado mais novo, forte e bem parecido. O texto acompanhará a relação entre os dois, em que a atracção sexual nunca consumada é sublimada através da relação de poder.
O que aqui é analisado, a relação entre desejo e poder, já tinha sido, de certa forma, abordada pelo Marquês de Sade nos '120 Dias de Sodoma'. No entanto, Lawrence e o Marquês encontram-se, na mesma questão, em frentes opostas. O Marquês fala-nos essencialmente do poder do senhor sobre o seu servo, um poder que não se anula nem conhece hesitações. Um dos exemplos mais claros disto prende-se com a questão da penetração, que poderíamos interpretar como uma forma de simbolizar não o poder, mas certo poder: o que acontece entre os senhores e os seus escravos no livro do Marquês é que a penetração não é, de facto, símbolo de poder algum, porque, mesmo quando são penetrados pelos seus escravos, os senhores continuam sendo senhores, continuam a deter todo o poder, tal como os escravos continuam a ser escravos e nada mais.
A razão essencial disto está na própria escrita do Marquês: os escravos dos '120 Dias de Sodoma' não são pessoas, são objectos para serem utilizados, e as únicas personagens com direito a profundidade são os senhores. Os escravos, um pouco como acontecia na democracia grega, não são seres humanos, ou, se o são, são-no de uma raça inferior e sem direitos.
'O Oficial Prussiano' de Lawrence não se identifica com esta perspectiva. A sua análise é mais cuidada e o conto, escrito na terceira pessoa, centra-se tanto naquilo que sente o oficial como naquilo que sente o seu subalterno. O desejo sexual acontece de parte a parte, mas nenhum dos dois se deixará dominar pela inclinação pouco aceitável para a época e para o contexto. Assim, o desejo é violentado pela negação e canalizado para a agressividade. O oficial passa a mal-tratar fisica e psicologicamente o seu subalterno, trazendo-lhe o seu sadismo uma agradável sensação de controlo, tanto como uma certa vergonha que pressupõe um ligeiro sentimento de culpa. Por sua vez, o subalterno odeia o seu capitão, sem no entanto conseguir odiá-lo plenamente, e sem conseguir evitar o jogo em que sai espezinhado. Quando, na segunda secção do conto, consegue finalmente rebelar-se, matando o seu capitão, é consumido por uma desolação e uma desorientação que o impedem de reagir, acabando por morrer também.
O que, no fundo, é analisado neste conto de Lawrence, é a relação de codependência entre o senhor e o seu servo. Em Sade, os escravos, despidos da sua condição humana, estão nas mãos dos seus senhores, que podem fazer deles o que quiserem, não tendo os escravos qualquer hipótese de rebelião ou de libertação e os senhores, seguros pela inamobilidade do seu poder, podem perfeitamente eliminar os seus escravos, pois, de seguida, encontrarão outros. E, efectivamente, são poucos os escravos sobreviventes no final dos '120 Dias de Sodoma'. O próprio Sacher Masoch, em 'A Vénus das Peles' apresenta-nos um homem de bom nascimento que voluntariamente se torna escravo de uma mulher de bom nascimento também. Mas mesmo assim, encaminha-se para a tendência de Sade pois, ao tornar-se escravo, esse homem abdica da vontade própria, da capacidade de fugir, do livre-arbítrio, enfim, de toda a identidade, comportando-se de forma muito semelhante aos escravos da obra de Sade.
Em Lawrence, as coisas processam-se ao contrário. Depende o servo do senhor tanto quanto o senhor depende dele. A sexualidade desviada para a agressividade origina um jogo doentio de poder e agressão de que ninguém pode sair vencedor, porque o servo, ao ser vítima, tem também poder, quando muito o poder de fazer do senhor o seu senhor. Daí que no conto não haja uma concretização do desejo. A concretização anularia o jogo, tornaria iguais senhor e servo. O mesmo acontece com a morte, essa sim consumada. O servo assassina o seu senhor, mas percebe que a sua vida acabou também, e acaba por efectivamente definhar, ficando lado a lado com o seu senhor na morgue. Ou seja, ao tentar libertar-se do seu senhor, mantando-o, o servo sela o seu destino: não poderá libertar-se. O mesmo teria acontecido se fosse ao contrário, pois o senhor não poderia ser senhor sem o seu servo. A submissão do servo é, portanto, uma forma outra de exercer o poder.
A intromissão do poder na sexualidade, como em muitas outras coisas, já foi analisada em literatura, em psicanálise e nas mais variadas áreas. O poder do dominínio e o poder da submissão são assunto de muitos textos e não só e se esse poder é bom ou mau, fica ao cargo de cada um.
Aquando da publicação do seu 'Caim', José Saramago referiu-se à bíblia como um manual de maus costumes e um catálogo de crueldade. Concordo. O romance de Saramago colocava Caim numa divagação por vários cenários bíblicos que argumentavam a favor desta ideia. Mas sobre os jogos de poder entre senhor e servo e a perversidade que pode existir nesses jogos, a própria bíblia contém alguns exemplos interessantes. Como qualquer texto, a bíblia é susceptível de várias leituras e, portanto, aquela que aqui deixo, não invalida que outras pessoas tenham outras leituras deste episódio, como não invalida que eu mesmo tenha outras leituras deste episódio.
Um fariseu convidou-o para comer consigo. Entrou em casa do fariseu eu pôs-Se à mesa. Ora uma mulher, conhecida como pecadora naquela cidade, ao saber que Ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um vaso de alabastro com perfume; colocando-se por detrás d'Ele e chorando, começou a banhar-Lhe os pés com lágrimas; enxugava-os com os cabelos e beijava-os, ungindo-os com perfume. Vendo isto, o fariseu que O convidara disse consigo: «Se este homem fosse profeta, saberia quem e de que espécie é a mulher que lhe está a tocar, porque é uma pecadora!» Então Jesus disse-lhe: «Tenho uma coisa para te dizer, Simão». «Fala Mestre», respondeu ele. «Um prestamista tinha dois devedores: Um devia-lhe quinhentos denários e outro cinquenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou os dois. Qual deles o amará mais?» Simão respondeu: «Aquele a quem perdoou mais, creio eu.» Jesus disse-lhe: «Julgaste bem.» E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: «Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não Me deste água para os pés; ela, porém, banhou-Me os pés com as suas lágrimas e enxugou-os com os seus cabelos. Não Me deste um ósculo; mas ela, desde que entrei, não deixou de beijar-Me os pés. Não Me ungiste a cabeça com óleo, e ela ungiu-Me os pés com perfume. Por isso, digo-te Eu, que lhe são perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou. Mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama.»
Lucas 7:36-47
independentemente da beleza desta cena, ela implica um acto de submissão, em que Maria Madalena, serve Jesus Cristo, lavando-lhes os pés e enxugando-lhos com os seus cabelos, o que coloca Cristo numa posição de senhor. Representando a servidão uma forma de amar, em troca, Cristo perdoa a Maria Madalena os seus pecados.
Vendo as coisas assim, o próprio conto de D.H. Lawrence ganha outros contornos. Se o exercício do poder não se esgota, em ambas as partes, no próprio prazer desse exercício, haverá outras compensações. No caso de Lawrence, a compensação parece ser a própria vida, o direito a uma identidade, seja ela qual fôr. Por outro lado, ainda podemos encontrar uma terceira compensação para o exercício do poder: agredir ou ser agredido são, para respectivamente o senhor e o servo, a forma que existe de manter por perto o objecto de desejo, de alimentar não o corpo, mas uma fantasia. Não é de desprezar, porque a não-concretização do desejo sexual não é infrutífera: enquanto não se concretiza, permite imaginar as coisas mais prazerosas, e a própria fantasia proporcionará uma satisfação, apenas não a mais imediata.
1 comentário:
PARABÉNS!!!A veia ensaística e analítica continua a revelar-se. Gostei muito destas comparações de autores sobre o discurso do poder que incide na submissão. Na psicanálise fala-se de jogo consentido, negociado! De papeis! Logo de lugares, conforme a estrutura de cada um! e claro de ambivalência...Num sádico existe sempre um lado masoquista, também! E agora para completar esta análise aconselho L'Erotisme de Georges Bataille. E fica perfeito. Não é uma ORDEM, é uma sugestão...
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