PROBLEMAS DE IDENTIDADE
Há filmes difíceis de ver. Esta é uma frase que pode ser interpretada de tantas maneiras que, o mais provável, é não significar absolutamente nada, pelo menos por si só. Portanto explico-me. No caso deste filme de Nicholas Reiner, é um filme difícil de ver porque provoca toda a sorte de pensamentos contraditórios, e ainda não consegui decidir se isso se deve a estar muito bem feito ou muito mal feito. No entanto, por uma série de razões que explicarei adiante, estou muitíssimo mais inclinado para a segunda opção.
O filme de estreia de Reiner como realizador tem um belíssimo título. 'All Dark Places' aponta para um filme de terror, numa visão imediata, mas deixa espaço para muitíssimas leituras.
A história deixa também espaço para todas essas leituras. Apresenta-nos um casal, Christian (Joshua Burrow) e Jamie (Stephanie Fieger) muito perto de se separar e que, apoiado por um psicoterapeuta, o dr. Spago (Tim Douglas), tenta ainda salvar a relação, também em nome do filho pequeno, Dylan (Dylan Mars Loff). As dificuldades de Christian em manter um emprego, bem como a sua tendência para o alcóol e a cocaína, haviam minado a relação do casal e ele parece ser incapaz de deixar os seus velhos hábitos. O terapeuta não é grande ajuda. E, para se somar a tudo isto, Dylan começa a ver um palhaço um tanto sinistro com quem conversa sobre as contraditórias ideias que tem em relação aos pais. Pouco depois, é o próprio Christian quem começa a ver o palhaço, atribiundo as suas visões à cocaína, e acaba por só considerar a hipótese de o palhaço realmente existir quando Jamie começa a sonhar com ele. Assim se vai criando a tensão para um final um tanto ambíguo que reforça a importância da história emociona dos personagens para a concepção do filme.
Estando a figura do mal concentrada num palhaço, é difícil não pensar na mini-série 'It' (1990) de Tommy Lee Wallace, por sua vez baseado num romance de Stephen King com o mesmo nome (1986); e também no caso verídico de John Wayne Gacy que estaria vestido de palhaço quando violou e assassinou uma das suas muitas vítimas. Nada contra ter-se referências, quer reais, quer já artísticas, uma vez que a mesma ideia pode ter as mais variadas visões e pode sempre vaer a pena voltar a tocar num assunto para nos apresentar algo de novo sobre ele.
A questão então é: consegue Nicholas Reiner fazê-lo? A resposta é difícil. Se 'All Dark Places' tem uma característica, é ser muitíssimo intrincado. O filme é denso e obcessivo e não é raro que nos deparemos com situações em que nos é difícil decidir aquilo que propriamente achamos.
Retomando o assunto do primeiro parágrafo deste comentário, este filme de facto faz-nos pensar, na pior das hipóteses, no próprio filme. Eu diria que esta não é qualidade desprezível, uma vez o que não falta são filmes que nem em si nos fazem pensar. Relativamente ao palhaço, símbolo essencia do mal no argumento, ele parece ser uma projecção do ódio, primeiramente da criança, em relação ao ambiente familiar, mas depois, dos próprios pais. Não é, e louve-se a ideia, um palhaço assassino, um psicopata, um Gacy enviesado. Este palhaço é uma forma corpórea de um desconforto, do ódio e da repulsa que minam uma trama de relações familiares. Por outro lado, diga-se que a figura do palhaço acaba por perder-se no filme. Tem aparições relâmpago, mas o ênfase está colocado no efeito que essas aparições causam e, vai daí, o filme perde o potencia efeito assustador, em detrimento de uma fonte de análise psicológica. Não fosse este um filme de horror, ou que como tal se apresentasse, e dir-se-ia que a ideia é genial. Mas logo no cartaz do filme percebemos a tentativa de criar um filme de horror e também a ênfase que, suposto, se colocaria no palhaço: e acontece então que nem uma nem outra nos são dadas ao longo do filme.
Aquilo que 'All Dark Places' tem de verdadeiramente interessante e profundo é a personagem de Christian. Ele é o centro da história, no sentido em que é nele que se depositam as esperanças dos restantes personagens, e depois a frustração de o verem incapaz de corresponder a qualquer expectativa. Por assim dizer, o fime poderia ser sobre todos os lugares (metafóricos) negros que existem dentro de Christian, e Joshua Burrow mostra-se bastante à altura, perfeitamente capaz de encarnar o desespero, a tristeza e a cisão que o seu personagem comporta. Como retrato de uma tortura, este filme resulta. Mas, uma vez mais, não é assim que o filme se apresenta. E, mais ainda, há que notar que Reiner, enquanto argumentista, não se foca principalmente em Christian, foca-se quase exclusivamente em Christian e, consequentemente, os personagens à sua volta ficam pobremente definidos, não indo, em ocasião alguma, para além daquilo que seria de esperar. A única excepção, e que se destaca pela negativa, é a figura do psiquiatra. É um personagem construído não para ser elemento conciliador, mas para semear ainda mais a confusão dentro do casal e, mesmo nisso, acaba por resultar num personagem fracturado e irritante, em vez de encerrar em si qualquer mistério que explicasse o comportamento, ou algo assim. É mais uma das questões mal resolvidas deste filme.
O próprio final, resultando pela lógica e pela ambiguidade, parece falho de intensidade e acabamos por não compreender porquê tanto suspense para um desfecho tão previsível.
A realização não fica mal, mas também não se destaca particularmente. A maioria dos planos são aqueles que se esperariam num filme assim, havendo uma ou outra excepção, mesmo assim incapaz de valer pelo filme todo.
Se podemos, de facto, elogiar a audácia psicológica de Nicholas Reiner e as qualidades interpretativas de Joshua Burrow, pouco mais verdadeiramente aqui nos impressiona. É um filme que se apresenta como tendo uma figura maligna, quando na verdade é essencialmente psicológico e 'All Dark Places' teria provavelmente resultado muito melhor se se tivesse centrado precisamente nesse drama psicológico, em vez de tentar vestir-se de filme de horror. Porque se a promessa é essa, não foi cumprida.
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