sábado, 4 de agosto de 2012

Fiona Apple: The Idler Wheel...

A CADA VEZ MAIS ESTRANHA MENINA

Acontece de vez em quando que alguém seja uma surpresa em determinado género de música. E mais raramente ainda, acontece aparecer alguém que não só é uma surpresa dentro do género de música que faz quando começa, como continua a surpreender à medida que vai fazendo mais álbuns. Este último caso é o de Fiona Apple. Em 1996, 'Tidal' foi a primeira surpresa. Fiona, vocalista e pianista, apresentava-nos canções rock polidas e agressivas mas num registo praticamente acústico e construído em torno do piano. Descendente directa de nomes como Alanis Morissette ou Tori Amos, Apple chamou a atenção da crítica e deixou a fasquia bastante alta para a produção do álbum seguinte. 'When the Pawn...' (Cujo título tinha cerca de 100 palavras.) foi lançado em 1999 e não desiludiu.
Mas, verdadeiramente, Apple só voltaria a chamar a atenção pelo escândalo aquando do seu terceiro álbum. Com uma produção exacerbada e arriscada, o terceiro álbum foi recusado pela editora e Fiona anunciou a sua retirada. A história, claro, não ficaria por aqui. Graças à internet, que apesar de tudo tem as suas vantagens, o álbum vazou e uma manifestação pesada de fãs exigiu à editora o lançamento do álbum. 'Extraordinary Machine' seria lançado em 2005, numa versão ligeiramente diferente da original e penso que será justo dizer que era realmente o melhor dos três álbuns de Fiona Apple. Canções como Better Version of Me, Not About Love, Get Him Back ou Please Please Please ficam para o atestar.


Não havíamos álbum desde 2005, e seria de temer que a experiência editorial de 'Extraordinary Machine' tivesse desmotivado Apple. Felizmente, não foi assim. Acaba de chegar, finalmente, o quarto álbum de originais de Fiona. Um pouco à imagem do álbum de 99, o título é extenso: 'The Idler Wheel Is Wiser Than the Driver of the Screw and Whipping Cords Will Serve You More Than Ropes Will Ever Do'. Refiramo-nos a ele como 'The Idler Wheel', de qualquer forma.
Logo que ouvimos Every Single Night, percebemos que, mesmo não tendo deixado traumas editoriais, 'Extraordinary Machine' foi verdadeiramente um passo decisivo no percuso de Fiona Apple. E as restantes canções confirmam-no.
Apple continua, nas suas letras, a expressar-se de forma directa e contundente, entre a agressividade e o sarcasmo, principalmente quando fala de assuntos passionais, mas a sonoridade está mais afastada daquele rock simples inicial. Mantendo-se num registo essencialmente acústico, Apple parece cada vez mais apostar na tendência barroca das suas composições, reforçando-a não só através dos arranjos, como também através do próprio esquema instrumental das canções. Ouçam-se Jonathan ou Left Alone para o confirmar. Nestes, além de demonstrar a sua enorme perícia enquanto pianista, Apple aceita uma certa influência do jazz, dando um espaço considerável ao aparentemente improvisado, criando, principalmente em Left Alone um complexo diálogo sonoro entre o piano e a bateria, enquanto a voz, cantando uma letra bastante incisiva, se vai movimentando numa espécie de jogo de cintura entre os dois instrumentos. Assim, Left Alone é definitivamente uma das canções mais arriscadas de 'The Idler Wheel', mas também uma das melhores.
Talvez mais do que qualquer outro álbum de Fiona, este é um álbum que a foca não só enquanto cantora, como também enquanto instrumentista. Não se deixe de dizer que ela tem uma voz realmente invulgar e fulgurante, quer pela tonalidade quer pela força -aliás, só uma voz realmente assinalável poderia cantar uma canção como Regret, que encontramos quase no final deste álbum. Mas o facto é que canções como as acima referidas, ou outras, como Jonathan, Left Alone, Periphery ou Regret mostram-nos também uma exímia pianista.
No fundo, este tipo de composições e de esquemas rítmicos não seria possível se no álbum de 2005, Fiona não tivesse já apostado num caminho bastante mais experimental. Este é um caminho bastante perigoso, mas, como este álbum vem reafirmar, Fiona tem mais do que capacidade de acompanhar, sendo realmente uma compositora de certa forma prodigiosa. Exemplo disto é Anything we Want, em que Apple toca piano e celesta, um instrumento que, de resto, nunca tinha utilizado e que não é nada vulgar (Que me recorde, só Björk utilizou a celesta, no seu 'Vespertine', de 2001.), conseguindo, no entanto, conjugar o som agudo e percutivo da celesta com os restantes instrumentos e também com o piano, tocado significativamente nas suas escalas mais graves.
As canções, no geral, mantém um estilo entre o afirmativo e o melancólico, aspectos que as letras, escritas com bastante qualidade, reforçam bastante. Werewolf, por exemplo, parece estar na linha daquelas canções mais tristes que Fiona já faz desde 1996, como Shadowboxer ou The Child Is Gone, mas uma canção como Werewolf expressa-se de uma maneira talvez menos imediata.


Acrescente-se ainda, relativamente a 'The Idler Wheel' que, em comparação com os outros três, este álbum apresenta ainda um trabalho bastante mais focado. Fiona grava-o acompanhada essencialmente de Charley Drayton e de Sebastian Steinberg, ficando assim todos os instrumentos divididos por três músicos, o que nos aponta talvez para a tendência de criar uma experiência semelhante àquela que é possível num palco.
Álbum essencialmente estranho, 'The Idler Wheel' em nenhum dos seus momentos deixa de ser um exemplo da qualidade de Fiona Apple, enquanto cantora, enquanto instrumentista, enquanto compositora e enquanto letrista. E, mais do que reafirmar a qualidade de Fiona, 'The Idler Wheel' não deixa espaço para dúvidas quanto a isto: este é um percurso realmente muito criativo e único. É muito difícil classificar este álbum, inseri-lo em qualquer género. Barroco, pesado, denso e realmente estranho, este é, acima de tudo, um álbum de Fiona Apple. E um muito bom álbum, também, pelo que sete anos de espera por dez canções não foram realmente desperdiçados.

 

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