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domingo, 5 de maio de 2013

Dido: Girl Who Got Away

O SALTO

O último álbum de Dido chegou-nos há cinco anos atrás e, como já tinha dito há uns tempos atrás aqui, não nos trazia novidade que valesse a pena assinalar. 'Safe Trip Home' parecia ceder perante a pressão deixada pelos marcantes 'No Angel' (1999) e 'Life for Rent' (2003), e a se a voz costuma ser um dos principais pontos de vantagem para Dido, no seu terceiro álbum, era praticamente o único aspecto que valia a pena reter.

Há pouco mais de um mês, Dido editou o seu quarto álbum. E, mal se ouve No Freedom, a primeira faixa e primeiro single de 'Girl Who Got Away', fica-se com um certo medo de que este álbum sofra das mesmas fragilidades que o anterior. Esta canção mantém-se no registo sereno e harmonioso de Dido, com uma letra sobre a necessidade de amar; uma canção interessante mas que nada acrescentaria a momentos do passado como Here With Me ou Life for Rent. Mas a canção seguinte, Girl who got Away, já nos desengana. Aquilo que encontramos desta canção em diante condiz muitíssimo bem com a capa do álbum. Nele, Dido, vestida discretamente de preto, atravessa uma estrada onde brilham muitas luzes de carros. De facto, a sua música continua simples e serena, mas traz agora uma roupagem muitíssimo mais urbana, desliga-se um pouco das raízes clássicas e assume uma electrónica sóbria, a juntar ritmos envolventes que piscam levemente o olho ao hip-hop e a letras de uma escrita directa e bela; tudo isto aliado à voz que é aquela que já conhecemos: suave mas pesada, muito à vontade nestas canções, quase todas com um certo pendor melancólico e profundo. Exemplo perfeito disto é Let us Move On, em que participa o rapper Kendrik Lamar. Mesmo no seu tom saudoso, esta canção nunca se torna excessiva, o próprio rap é tudo menos aquilo que esperaríamos da participação de um rapper numa canção destas. Acaba por ser provavelmente o momento mais bem conseguido de 'Girl Who Got Away'.
Outras canções ainda recuperam esta atmosfera, de formas mais ritmadas ou melancólicas. Blackbird ou Day Before we Went to War, por exemplo, exploram o lado mais dramático que existe no reportório de Dido desde o princípio (Recordemos que, dos seus clássicos, muitos são canções tristes.), enquanto Go Dreaming e Sitting on the Roof of the World se mantém de um lado mais optimista, que também não soa mal _bem pelo contrário, apresenta-nos a Dido que conhecemos de Don't Leave Home ou Thank You, também elas dignas do estatuto de 'clássicos' da cantora britânica.


Apesar de se manter de um lado muito calmo e suave da pop, 'Girl Who Got Away' é verdadeiramente o álbum que esperaríamos de Dido depois de 'Life for Rent'. Dido não é uma cantora que precisa de reinvenções nem de muita produção, mas qualquer músico, pop ou não, precisa de evoluir, e é neste álbum que Dido dá o tão esperado salto, e apresenta-nos a primeira grande colecção de canções desde 2003.


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Tori Amos: Gold Dust

RAÍZES

Quando em 2011 Tori Amos lançou o seu décimo álbum de originais, 'Night of Hunters' era dificilmente aquilo que se esperaria após 'Abnormally Attracted to Sin' (2009). 'Night of Hunters' consistia numa recriação de várias peças de compositores eruditos, contava uma história com recurso a várias metáforas que existem dentro da música erudita e realçava a cultura de Amos não só enquanto cantora, mas também enquanto compositora e, essencialmente, enquanto artista.
Pouco depois do lançamento desse álbum, Myra Ellen anunciou que, no seguinte, iria gravar canções dos seus trabalhos anteriores em versões sinfónicas. Não pareceu, de todo, pouco natural esta ideia, depois de 'Night of Hunters'.


No final de 2012, chega-nos então 'Gold Dust', que vai buscar o título a uma das mais belas canções de Amos, do álbum 'Scarlet's Walk' (2002), uma canção que, já na sua versão original, era gravada apenas com piano e orquestra.
O álbum é gravado quase inteiramente da mesma forma, contando com a Metropole Orchestra conduzida por Jules Buckley e com os arranjos de John Phillip Shenale e o alinhamento conta com canções de todos os trabalhos de Amos, incluindo o álbum de natal 'Midwinter Graces' (2009), mas não 'The Beekeeper' (2005).
O alinhamento será, para aqueles que conhecem bem o percurso de Amos, talvez aquilo que nos deixa mais reticentes em relação a 'Gold Dust'. Se a música de Tori sempre teve assumidamente uma herança da música erudita, particularmente a barroca, a verdade é que nalgumas canções isso era mais notório do que noutras. O que acontece é que a maioria destas canções são precisamente aquelas onde a presença erudita e a vertente sinfónica eram mais claras, como é o caso de Jackie's Stenght, Cloud on My Tongue, Gold Dust, Winter, Marianne, Girl Disappearing ou de Flavour que, aliás, foi escolhida para apresentar o álbum. São mais raras as canções em que essa presença era menos nítida, como Precious Things, Flying Dutchman ou Programmable Soda. Por um lado, podemos achar talvez demasiado imediatista a escolha que Amos faz, dentro do seu trabalho. Gravar canções como Professional Widow, Raspberry Swirl, Teenage Hustling, You Can Bring Your Dog ou Give teria sido muito mais ousado e, provavelmente, teria causado em nós uma efeito muito mais exacerbado.
No entanto, logo que começamos a ouvir o álbum, percebemos que talvez não seja exactamente assim. As canções, apesar de já conhecidas, tem uma aspereza e uma atmosfera pesada que não teríamos, possivelmente, ouvido tão imediatamente nas versões originais. O facto é que estas versões sinfónicas realçam as emoções mais negras das canções, elas tornam-se grandiosas e angustiadas. Dessa perspectiva, entende-se melhor a selecção que Amos fez do seu trabalho: se imaginarmos as canções que usei como exemplo acima, ou outras dentro do mesmo género, refeitas desta forma, elas perdem o sentido original para ganharem outro sentido que não faz, por assim dizer, muito sentido.
Exemplo máximo disto será talvez a versão de Gold Dust, em que o esquema instrumental quase não é alterado, mas que soa, aqui, como um lamento fortíssimo que nos deixa derrotados. Imagine-se o efeito que uma roupagem destas teria, por exemplo, em You Can Bring Your Dog, e percebe-se como, efectivamente, o que motivou a escolha de Amos foi a inteligência mais do que o desejo de surpreender.
Tal como acontecia com 'Night of Hunters', este álbum funciona mais como um todo do que como um conjunto de peças individuais. Já desde 'American Doll Posse' (2007) que Tori começou a fazer uso das capacidades teatrais que teve sempre, e nos últimos dois álbum, isso é tanto mais importante. A verdade é que nunca canções como Cloud on my Tongue, Precious Things ou Winter tiveram tanta corpulência quanto têm nestas novas versões. Se estes momentos mais melancólicos são ocasionalmente interrompidos, a verdade é que canções como Flying Dutchman, Programmable Soda ou Snow Cherries From France, parecendo momentos mais cómicos, funcionam mais como forma de balanço e não se pode dizer que 'Gold Dust' tenha propriamente um lado mais animado. Nada contra, entenda-se. Este é um álbum triste e depressivo, e o que interessa verdadeiramente é se o é com qualidade. Parece ser o caso. 'Gold Dust' é, em quase todos os seus momentos, arrebatador e resplandecente. Por exemplo Star of Wonder, que à partida não seria mais do que uma canção de natal, acaba resultando perfeitamente, ao ponto em que nos esquecemos que é uma canção de natal e passa a ser mais um capítulo da história que aqui é contada.
A voz de Amos continua perfeita, muito à vontade nas canções mais pesadas precisamente e as suas capacidades como pianista estão, agora, mais claras, até pelas características da música que está a fazer. Aliás, ao ouvir 'Gold Dust', parece ocorrer-nos que é até estranho que Tori Amos nunca tenha gravado antes um álbum deste género, uma vez que parece tão à vontade e tão favorecida pelo estilo deste trabalho.


O envolvimento da pianista com uma série de projectos mais ligados ao teatro e a espectáculos de música erudita parecem, de certa forma, tê-la afastado um pouco da composição de novos originais dentro do estilo que, por agora, termina em 'Abnormally Attracted to Sin'. Por outro lado, a sua música, ao intelectualizar-se, parece estar agora a explorar as próprias raízes (É um exercício interessante ouvir este álbum em face do primeirinho 'Little Earthquakes'.) e não se pode dizer que os resultados não estejam à altura. Pelo contrário, 'Gold Dust' causa o efeito que causam sempre os álbum de Amos, que é a vontade de ouvir repetidamente.


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

dEUS: Following Sea

A FORTE CORRENTE

Há fases em que um artista se encontra mais frenético e é capaz de produzir em muito menos tempo muito mais trabalho. Que os dEUS regressem, menos de um ano depois de 'Keep You Close' (2011), aos discos surpreendeu muita gente. Esta banda de Antuérpia tem sido das mais popularizadas em Portugal, sem no entando se poder dizer propriamente que sejam populares. Serão, quando muito, uma espécie de banda de culto. O experimentalismo que caracteriza a sua música _e que a caracteriza cada vez mais, ao contrário do que seria de esperer_ pode muito bem ser a razão pela qual um público verdadeiramente alargado não vai aderir àquilo que eles fazem.
Pessoalmente, conhecia o nome, mas não era particularmente afeiçoado àquilo que estes belgas faziam, e que conhecia até 'The Ideal Crash' (1999). Recentemente, ouvi os álbuns lançados entre 2005 e 2011 e encontrei de facto aquela intensidade que, a meu ver, não era completamente conseguida nos primeiros álbuns que, apesar de conterem já embrionariamente aquilo que os posteriores revelariam, não tinham ainda o nível de perfeição que se sente, principalmente, em 'Vantage Point' (2008) e em 'Keep You Close'.
 
 
Como se disse, 'Following Sea' surgiu em tempo-record, cerca de onze meses após o álbum anterior. As duas hipóteses mais cépticas que se colocariam numa situação assim seriam que, ou este álbum seria mais do mesmo, ou que, tentando inovar, resultaria mal conseguido por falta de tempo.
Começamos a ouvir o álbum por Quatre Mains e imediatamente colocamos uma terceira hipótese, muito possível também, que é a de os dEUS estarem numa fase mais criativa, o que significa que, como se disse na introdução, possam ser capazes de produzir mais material de qualidade em menos tempo. Esta canção é a primeira em que Tom Barman canta em francês (Um pouco estranho, dado que a banda é flamenga.), e nela se notam, não só pela língua, algumas influências de Serge Gainsbourgh e mesmo de Jacques Brel: a voz cava e gutural de Barman alterna entre o canto e a declamação, num ritmo acelerado e numa tonalidade bastante sombria. Quatre Mains é de facto uma canção muito moderna, onde o experimentalismo arriscado se encontra com uma quase tendência para o hip-hop, um pouco mais clara do que quando surgia no passado (Ouça-se When She Comes Down de 'Vantage Point'.). Como seria de esperar, a letra, como aliás todas as do álbum, está bastante bem escrita, não significando a transição para o francês uma perda da destreza poética, que continua a abarrotar de ironias e de subtilezas.
Já de regresso ao inglês, segue-se Sirens, uma canção eficaz mas, quando ouvida no meio das outras, um tanto morna. Aliás, percebe-se que, neste álbum, as canções mais serenas acabam por ter um tanto menos de intensidade do que as outras, valendo mais como momentos de pausa em que o que sobressai é a letra, como vemos acontecer com esta canção, ou com Nothings, por exemplo.
Hidden Wounds, Girls Keep Drinking ou The Soft Fall retomarão, no entanto, o lanço da canção de abertura. Nestas canções, a introdução dos ritmos quase dançáveis é contraposta pela sonoridade mais rock que caracteriza os dEUS, conseguida muitas vezes através de momentos instrumentais que conferem um certo peso e uma certa invulgaridade nas composições que, de resto, são até bastante simples. Uma canção como The Soft Fall é bastante eficaz em mostrar-nos como, a partir de uma composição simples, é possível fazer uma canção complexa, onde de repente surge um solo de guitarra que parece fora do sítio, ou uma interrupção repentina, que nos obriga a dedicar redobrada atenção à música. Volte-se a referir a importância das letras, escritas com uma invulgar facilidade palavrosa, atenta aos sons, que Tom Barman é perfeitamente capaz de valorizar.
E se o álbum começa com uma canção um tanto sombria, a verdade é que, depois, tende para uma sonoridade mais solta e luminosa. E, se em Quatre Mains se sentia essa intromissão do hip-hop que já não é insólita nos dEUS, outras referências parecem surgir. Mais invulgar do que o hip-hop será por exemplo o que encontramos em Crazy About You onde a guitarra de Mauro Pawlowski, dedilhada, nos remete para um certo travo de country. A própria canção introdutória orienta-nos um pouco para a referência à chanson, que não se esgota aí: uma canção como The Give Up Gene parece ser uma interpretação muitíssimo livre dos clássicos de chanson, com a voz de Barman cantando muito próxima da declamação de um poema, mas contrabalançada pelo ritmo muito marcado e seco, cuja continuidade é quebrada pelo estalar de como que gemidos de guitarra eléctrica ou do violino de Klaas Janzoons. A bateria, reforçada pelo baixo, cria uma profundidade insuspeitada, e The Give Up Gene acaba por ser outra das melhores canções de 'Following Sea'. Logo de seguida, Fire Up The Google Beat Algorith parece ser o derradeiro delírio rap, com Tom Barman declamando com velocidade alta a letra sobre uma guitarra eléctrica exacerbada, e a batida perto de parecer desligada do resto da canção. Pelo meio, o eco do violino acrescenta uma faceta clássica a uma canção que parece estar muito à frente de si mesma e que, se tem algum defeito, é o de ser demasiado curta.
One Thing About Waves, que fecha o álbum, é uma das canções mais simples, uma espécie de clássica canção rock. No entanto, longe de desiludir quando inserida no álbum, esta canção contém um dramatismo impressionante e, sem recurso a quase nenhuma estranheza, consegue destacar-se como uma das canções mais intensas do álbum. A letra está escrita com recurso a uma imagética forte e despida e a alternância entre a voz de Barman e os solos de guitarra de Pawlowski, marcados pela bateria de Stéphane Misseghers, resultam numa ambiência incrível, a um tempo sufocante e libertadora, que se vai afastando, deixando apenas o piano, tocado por Barman, um final perfeito para o álbum.


Constituido por apenas dez canções, 'Following Sea' só pode surpreender. Num período de onze meses, os dEUS conseguiram produzir um álbum perfeitamente capaz de ombrear com os seus melhores trabalhos, produzidos por norma em dois ou três anos. Se é ou não é o melhor álbum deles, é o menos importante. 'Following Sea' (E palmas para o título, realmente belíssimo.) é um álbum intenso e denso, que perde em contenção aquilo que ganha em risco. A opção foi boa porque, em quase tudo, esse arriscar redunda em canções bem conseguidas. Este pode muito bem ser o álbum que qualquer um esperaria depois de 'Vantage Point' ou de 'Keep You Close'. É efectivamente novo, inesperado nas suas referências e conseguido nas suas experimentações. Que mais se pode pedir, na verdade?
 

sábado, 4 de agosto de 2012

Fiona Apple: The Idler Wheel...

A CADA VEZ MAIS ESTRANHA MENINA

Acontece de vez em quando que alguém seja uma surpresa em determinado género de música. E mais raramente ainda, acontece aparecer alguém que não só é uma surpresa dentro do género de música que faz quando começa, como continua a surpreender à medida que vai fazendo mais álbuns. Este último caso é o de Fiona Apple. Em 1996, 'Tidal' foi a primeira surpresa. Fiona, vocalista e pianista, apresentava-nos canções rock polidas e agressivas mas num registo praticamente acústico e construído em torno do piano. Descendente directa de nomes como Alanis Morissette ou Tori Amos, Apple chamou a atenção da crítica e deixou a fasquia bastante alta para a produção do álbum seguinte. 'When the Pawn...' (Cujo título tinha cerca de 100 palavras.) foi lançado em 1999 e não desiludiu.
Mas, verdadeiramente, Apple só voltaria a chamar a atenção pelo escândalo aquando do seu terceiro álbum. Com uma produção exacerbada e arriscada, o terceiro álbum foi recusado pela editora e Fiona anunciou a sua retirada. A história, claro, não ficaria por aqui. Graças à internet, que apesar de tudo tem as suas vantagens, o álbum vazou e uma manifestação pesada de fãs exigiu à editora o lançamento do álbum. 'Extraordinary Machine' seria lançado em 2005, numa versão ligeiramente diferente da original e penso que será justo dizer que era realmente o melhor dos três álbuns de Fiona Apple. Canções como Better Version of Me, Not About Love, Get Him Back ou Please Please Please ficam para o atestar.


Não havíamos álbum desde 2005, e seria de temer que a experiência editorial de 'Extraordinary Machine' tivesse desmotivado Apple. Felizmente, não foi assim. Acaba de chegar, finalmente, o quarto álbum de originais de Fiona. Um pouco à imagem do álbum de 99, o título é extenso: 'The Idler Wheel Is Wiser Than the Driver of the Screw and Whipping Cords Will Serve You More Than Ropes Will Ever Do'. Refiramo-nos a ele como 'The Idler Wheel', de qualquer forma.
Logo que ouvimos Every Single Night, percebemos que, mesmo não tendo deixado traumas editoriais, 'Extraordinary Machine' foi verdadeiramente um passo decisivo no percuso de Fiona Apple. E as restantes canções confirmam-no.
Apple continua, nas suas letras, a expressar-se de forma directa e contundente, entre a agressividade e o sarcasmo, principalmente quando fala de assuntos passionais, mas a sonoridade está mais afastada daquele rock simples inicial. Mantendo-se num registo essencialmente acústico, Apple parece cada vez mais apostar na tendência barroca das suas composições, reforçando-a não só através dos arranjos, como também através do próprio esquema instrumental das canções. Ouçam-se Jonathan ou Left Alone para o confirmar. Nestes, além de demonstrar a sua enorme perícia enquanto pianista, Apple aceita uma certa influência do jazz, dando um espaço considerável ao aparentemente improvisado, criando, principalmente em Left Alone um complexo diálogo sonoro entre o piano e a bateria, enquanto a voz, cantando uma letra bastante incisiva, se vai movimentando numa espécie de jogo de cintura entre os dois instrumentos. Assim, Left Alone é definitivamente uma das canções mais arriscadas de 'The Idler Wheel', mas também uma das melhores.
Talvez mais do que qualquer outro álbum de Fiona, este é um álbum que a foca não só enquanto cantora, como também enquanto instrumentista. Não se deixe de dizer que ela tem uma voz realmente invulgar e fulgurante, quer pela tonalidade quer pela força -aliás, só uma voz realmente assinalável poderia cantar uma canção como Regret, que encontramos quase no final deste álbum. Mas o facto é que canções como as acima referidas, ou outras, como Jonathan, Left Alone, Periphery ou Regret mostram-nos também uma exímia pianista.
No fundo, este tipo de composições e de esquemas rítmicos não seria possível se no álbum de 2005, Fiona não tivesse já apostado num caminho bastante mais experimental. Este é um caminho bastante perigoso, mas, como este álbum vem reafirmar, Fiona tem mais do que capacidade de acompanhar, sendo realmente uma compositora de certa forma prodigiosa. Exemplo disto é Anything we Want, em que Apple toca piano e celesta, um instrumento que, de resto, nunca tinha utilizado e que não é nada vulgar (Que me recorde, só Björk utilizou a celesta, no seu 'Vespertine', de 2001.), conseguindo, no entanto, conjugar o som agudo e percutivo da celesta com os restantes instrumentos e também com o piano, tocado significativamente nas suas escalas mais graves.
As canções, no geral, mantém um estilo entre o afirmativo e o melancólico, aspectos que as letras, escritas com bastante qualidade, reforçam bastante. Werewolf, por exemplo, parece estar na linha daquelas canções mais tristes que Fiona já faz desde 1996, como Shadowboxer ou The Child Is Gone, mas uma canção como Werewolf expressa-se de uma maneira talvez menos imediata.


Acrescente-se ainda, relativamente a 'The Idler Wheel' que, em comparação com os outros três, este álbum apresenta ainda um trabalho bastante mais focado. Fiona grava-o acompanhada essencialmente de Charley Drayton e de Sebastian Steinberg, ficando assim todos os instrumentos divididos por três músicos, o que nos aponta talvez para a tendência de criar uma experiência semelhante àquela que é possível num palco.
Álbum essencialmente estranho, 'The Idler Wheel' em nenhum dos seus momentos deixa de ser um exemplo da qualidade de Fiona Apple, enquanto cantora, enquanto instrumentista, enquanto compositora e enquanto letrista. E, mais do que reafirmar a qualidade de Fiona, 'The Idler Wheel' não deixa espaço para dúvidas quanto a isto: este é um percurso realmente muito criativo e único. É muito difícil classificar este álbum, inseri-lo em qualquer género. Barroco, pesado, denso e realmente estranho, este é, acima de tudo, um álbum de Fiona Apple. E um muito bom álbum, também, pelo que sete anos de espera por dez canções não foram realmente desperdiçados.

 

terça-feira, 10 de julho de 2012

Norah Jones: Little Broken Hearts


E A VIDA CONTINUA

'Come Away with Me' foi um fenómeno em 2002. Oito Grammies, incluindo os de todas as categorias principais, a aprovação da crítica e a adesão do público deram a Norah Jones uma estreia como poucos músicos verdadeiramente tiveram. No ano anterior, dera-se um fenómeno semelhante, 'Songs in A Minor' de Alicia Keys, que teve praticamente o mesmo impacto que o álbum de Norah Jones.
Em 2003 Alicia Keys lança o seu segundo álbum, 'The Diary of Alicia Keys' e em 2004, Norah Jones edita o seu segundo álbum, 'Feels Like Home'. Acontece que, após um início assinalável que ambas tiveram, ambas produziram álbuns relativamente menos conseguidos. No caso de Norah, ainda que em 'Feels Like Home' encontrássemos boas canções, sentíamos acima de tudo a pressão de lançar um segundo álbum depois do estrondo do primeiro.
É a partir do terceiro álbum que realmente Jones e Keys começam a diferenciar os seus percursos. Alicia Keys, apesar da voz invulgar e da facilidade em compor, após 'Songs in A Minor' tem, até hoje, produzido acima de tudo álbuns mornos, que não trazem, no fundo, nada de novo.
Em 2007, Norah lança o seu terceiro álbum. Era premonitório o título 'Not Too Late'. De facto, ainda não era demasiado tarde para recuperar, e este álbum, mudando consideravelmente de direcção, era o regresso que esperaríamos de Norah Jones após um álbum como 'Come Away With Me' e assim ficávamos esclarecidos: o álbum de estreia não tinha sido só fogo-de-vista.
Se 'Not Too Late' o afirmou, 'The Fall' (2009 -de que falei aqui.) veio confirmá-lo em força. Era um álbum perfeitamente conseguido, polido e distanciado daquela imagem inicial que se tinha de Norah, de que fazia música serena e baixinha, que inclusivamente lhe valeu a alcunha de Snorah Jones.


Esperámos três anos pelo quinto álbum de originais de Norah. Em Abril deste ano, chega-nos, finalmente, 'Little Broken Hearts'. E aquilo que, acima de tudo, fica provado neste quinto álbum é que, realmente, Norah Jones é daquelas cantoras que nunca nos cansamos de ouvir, porque, excepção feita para o segundo álbum, consegue sempre surpreender-nos sem ser infiel ao seu projecto musical e consegue criar canções que realmente nos comovem ao ponto de nos deixar sem respiração, mas sem nunca ser lamechas, nem previsível, nem de mau-gosto.
Inteiramente composto por Norah e por Brian Burton (Dos Gnars Barkley.), 'Little Broken Hearts' centra-se acima de tudo em ideias ligadas a separações amorosas, lutos e na descoberta de que a vida é ainda possível. O próprio título é bastante subtil, pois tratando os corações partidos como se fossem brinquedinhos, acaba por desdramatizar a ideia de uma ruptura, e este álbum está longe de ser deprimente. Bem pelo contrário, parece orientado para abraçar as nuances de country e de um certo pop que já iam dando sinais no terceiro e no quarto álbuns, mas mantendo sempre a inclinação para o jazz que, desde o início, tem sido a marca essencial de Norah.
Canções como Goodbye ou 4 Broken Hearts são prova precisamente disto. Estas canções são exemplos de como, neste álbum, a voz de Norah, mais do que nunca, encontra uma perfeita combinação entre as melodias e as letras e a própria tonalidade da voz que, sendo bastante expressiva e versátil, continua a inserir-se melhor em canções melancólicas mas, de alguma forma, contidas. Aliás, muitas destas canções parecem funcionar quase como segredos que Norah contasse a alguém, ou até diálogos de si para si, acabado por se tornar extremamente intimista, como vemos acontecer em Take it Back, Little Broken Hearts ou Miriam, sendo que esta última abre até espaço para um certo storytelling que por vezes ia realmente acontecendo nas canções de Jones.
Outro aspecto que deve ser assinalado neste álbum é o da sua simplicidade. É gravado como trabalho de uma banda e é pouco dado a extravagâncias. Assim, o som acaba por ser bastante homogéneo, sem por isso abdicar de ter várias texturas, que o impedem de se tornar aborrecido. Para este efeito, compare-se uma canção melancólica como Take it Back com outra mais irónica como Goodbye (Aliás uma das melhores letras do álbum.) ou com outras mais expeditas como Out on the Road ou Happy Pills.


Em relação aos outros álbuns, este representa, mais do que nunca, a tentativa, bem sucedida, de uma coesão interna, que passa pela banda fixa e por todas as canções serem compostas pelos mesmos autores, ao contrário do que tem acontecido até aqui. Aliás, relembremos que para o seu primeiro álbum, Norah havia composto apenas três das catorze canções que o integravam, e se é facto que, à medida que o tempo foi passando, Norah se foi afirmando cada vez mais como autora, neste álbum parece ter assumido mais do que nunca esse papel, o que talvez tenha contribuido para a adequação que se faz sentir da música à interpretação. E, ainda comparando 'Little Broken Hearts' com os seus predecessores, é de notar que, ainda mais do que em 'The Fall', se sente uma inclinação para a guitarra, ao contrário da fase inicial, em que as canções eram essencialmente construidas em torno do piano.
Mais ainda, assinale-se que, neste álbum, Norah parece correr alguns riscos que, de certa forma, lhe poderão abrir possibilidades para o futuro. É o caso de  canções como All a Dream e I Don't Wanna Hear Another Sound, em que se sente uma ambiência ligada ao low-rock, com qualquer coisa de Morphine e que de todo não é despropositada aqui. E diga-se que Norah se insere muito bem neste estilo, que, sendo ligeiro, passa um pouco pelo sobressalto, estando nesta dualidade a dificuldade para o intérprete. E, claro, Norah não tem problemas em deixar a banda brilhar sozinha, havendo neste álbum vários solos, sendo os destas canções dos mais belos. Aliás, já para o final do álbum, tem interesse recordar o início, e ao compararmos uma canção como I Don't Wanna Hear Another Sound com a primeira, Good Morning, mostra-nos como, neste álbum, as canções estão realmente pensadas de maneira a formarem uma sequência, acabando por o todo ser uma espécie de história que se conta, não só pelas palavras, mas pela própria tonalidade das canções.
Somados os factores, 'Little Broken Hearts' é um regresso muito digno para Norah Jones e prova-nos que cada vez mais Norah vai melhorando o seu projecto e se vai tornando uma artista madura e de rara densidade. Quer seja um relato de um luto, quer seja um elogio da solidão, este álbum é realmente dos melhores de Norah e, não fossem as provas dadas até hoje da sua capacidade musical, dir-se-ia que este é difícil fazer melhor.

sábado, 9 de junho de 2012

The Chant: A Healing Place

O PESADO RENASCIMENTO

Talvez o sentimento que mais facilmente se associa ao rock seja a tristeza. Parece ser predominante. Mas um olhar atento sobre o que muitas bandas têm feito mostra-nos que não é obrigatoriamente a tristeza que encontramos na música rock. Bem pelo contrário, se olharmos para o percurso de algumas bandas, encontraremos canções de uma leveza e de um brilho extremos, como acontece, por exemplo, com algumas canções dos Anathema, dos Pearl Jam, dos Muse, dos Placebo, entre tantos outros. O que acontece é que, provavelmente, o rock é ainda uma expressão profunda e, daí, pesada dos sentimentos todos e assim é pesado e pesadamente honesto mesmo ao expressar felicidade, e o que distingue do pop é precisamente o facto do pop, quer fale de tristeza, quer fale de alegria, se expressar com facilitismo e superficialidade.
Servem estas considerações de introdução a algumas notas sobre o segundo álbum dos The Chant, editado há cerca de uma semana. Em 2010, a banda finlandesa lançava o seu segundo álbum, 'This is the World We Know', o primeiro a dar-lhes alguma visibilidade, ainda que discreta, na Europa. Era um álbum onde o encontro do rock com o metal dava canções intensas que, em muito, surpreendiam. Surpreendiam porque, apenas ao segundo álbum, os The Chant conseguiam impressionantes resultados dessa fusão que, parecendo fácil, é na verdade difícil, e que outras bandas conseguiram demorando mais tempo, como acontece um pouco com o Tool e, a partir deles, os A Perfect Circle, ou então os Anathema. 'This is the World We Know' não era, portanto, uma promessa, era já confirmação.


'A Healing Place' chega-nos dois anos depois de 'This is the World we Know' e o título, só por si, já anuncia a tendência para uma espécie de renascimento sobre os cenários negros que encontrávamos no álbum anterior, e também em 'Ghostlines' (2008), o primeiro.
A capa apresenta-nos uma espécie de paisagem interior, em que o indivíduo surge como uma silheta negra e sozinha num quadro algo apocalítico. E, ao ouvirmos o álbum, percebemos que há um sentido muito forte na imagem da capa. De certa forma, estas canções são o ruír daqueles cenários do primeiro álbum, e apresenta-nos o indivíduo no lugar onde se cura, onde renasce, para a reconstrução do (seu) mundo.
O álbum começa com os seguintes versos:

My eyes
adjusting
so that I can
see the outlines

ou seja, o indivíduo começa a ver os contornos, os contornos talvez das ruínas, que lhe permitirão recomeçar. Assim sendo, 'A Healing Place' parece traçar uma sequência com 'This is the World we Know'. Não se trata propriamente de fazer um álbum que seja o oposto do anterior, mas de continuá-lo.
A primeira canção, Outlines, mostra-nos que, mais uma vez, é entre o rock e o metal que os The Chant se situam, e é também um exemplo de como é difícil fundir os dois géneros. Mas os The Chant conseguem aqui uma canção absolutamente perfeita, uma espécie de expressão da angústia, que a letra consegue dizer sem recorrer àquilo que de mais vulgar se escreve sobre.
Spectral Light é uma canção mais complexa, constituida por duas secções, começando com uma guitarra dedilhada a que se juntam, depois, a bateria e os arranjos, uma vez mais subtis e melódicos, e a voz de Ilpo Paasela e o piano de Mari Jaamback. É uma canção cheia de momentos negros, que logo são rematados por outros momentos mais sinfónicos, onde, mais ainda, se nota o perfeccionismo nos arranjos, pensados milimetricamente para criar uma canção equilibrada e densa.
Outra das melhores canções do álbum é Riverbed, onde o ritmo lento e a voz por vezes sussurrada abrem caminho ao refrão emotivo e pesado, resultando uma vez mais numa canção equilibrada e fluida, que cria uma espécie de paisagem fria onde, ainda assim, nos sentimos perfeitamente aconchegados, e talvez a letra, de Jussi Hämäläinen, contribua para isso.
The Black Corner será talvez a canção que mais nos alude a 'This is The World we Know'. Ainda que musicalmente nos pareça realmente refém do álbum anterior, a letra é significativa para toda a génese de 'A Healing Place' já que é precisamente a esta canção que o álbum vem buscar o seu título. A linha de baixo confere um certo peso à canção e isto explicará certamente aquela ideia de que falei no início deste texto: é que efectivamente esse peso é uma forma de expressão, da expressão, neste caso, do desejo de recomeçar, de nos curarmos. E precisamente a partir daí começa The Ocean Speaks, outra das canções mais pesadas do álbum, mas também das que mais vai ao encontro da ideia do título. É uma música cheia de pausas e recomeços, de interrupções e repetições e, na sua barroca estrutura, acaba por resultar muitíssimo bem.
Segue-se Distant Drums, onde o discreto piano guia o ritmo da música, também ela cheia de pausas cujos renascimentos são pesados e marcados. Nesta canção fica muito clara a qualidade vocal de Ilpo Paasela que, a uma audição atenta pode parecer uma voz vulgar dentro do que, por norma, são os vocalistas de rock, mas que, na verdade, tem uma forte expressividade e uma capacidade invulgar de se moldar às canções que canta e, se compararmos o que ouvimos dele em Outlines e o que ouvimos, por exemplo, aqui, veremos como, de facto, há uma versatilidade nele que só favorece os The Chant.
My Kin é uma canção lenta, que nos mantém num certo impasse, mas é sem dúvida uma canção forte, que nos mostra precisamente que uma canção leve pode ser tão pesada quanto uma mais barulhente.
O mesmo, mais ou menos, acontece com Regret, a canção que fecha o álbum. É outra canção constituida por secções, indo do mais leve e sussurrado, até ao explosivo e gritado. E, fechando o ciclo, de certa forma parece reiniciar o próprio álbum, mantendo-nos um pouco fechados nele.


De facto, não tenho dúvidas de que 'A Healing Place' é um grande álbum rock, mas há que admitir que é tudo menos fácil. Para começar, as canções são densas e profundas e exigem atenção a ser ouvidas e, por outro lado, o álbum é executado pelas opções sempre mais difíceis. Se os The Chant fossem mais imediatistas, um álbum com este título seria um álbum cheio de canções melodiosas e quase acústicas, brilhantes e simples, mas não é o caso. Os The Chant mostram-nos como renascer e recomeçar são actos violentos, como a libertação é difícil e não raras vezes angustiante, ao ponto em que nos dá vontade de desistir. Mas o facto é que quando se ouve 'A Healing Place' com atenção, percebemos como tudo nele é sincero e quase visceral, como as composições sombrias são caminhos para a libertação e como este álbum fala directamente ao coração daquele que se sente preso mas não se sente morto, ou pelo menos não tão morto que se disponha a viver o resto da vida no lugar negro em que está. Ao contrário dos álbuns anteriores, este é inteiramente escrito e composto pelo guitarrista Jussi Hämäläinen que não deixa dúvidas quanto á sua qualidade poética e musical, e a partir das melodias e das letras, Ilpo Paasela demonstra uma vez mais a sua garra enquanto vocalista, conseguindo cantar de uma forma em que, mesmo que não houvesse letra, conseguiríamos perceber quais os sentimentos que são cantados. Momentos como Oultines, Riverbed ou Regret são, nesse aspecto, verdadeiramente impagáveis, e 'A Healing Place' é um sucessor mais que digno a um álbum como 'This is the World We Know', sentindo-se apenas falta de uma maior presença do piano, que caracterizava muito esse álbum anterior.
Esta é uma banda discreta e, no geral, menos conhecida do que deveria ser, mesmo dentro dos circuitos mais fechados do rock. Mas se 'A Healing Place' nos prova alguma coisa, é que definitivamente lhes deveria ser dada mais atenção, pois não é tão comum como se pense que uma banda tenha a coragem de se despir desta forma, e de nos despir a nós, que a ouvimos.


quinta-feira, 19 de abril de 2012

Anathema: Weather Systems

DRAMA E FASCINAÇÃO

Já dizia o Poeta que 'todo o Mundo é composto de mudança'. E se muita gente disso mesmo tem medo, está mais que visto que não é o caso dos Anathema. Em 1991, quando é lançado 'The Crestfallen EP', ninguém poderia prever que a banda de doom-metal chegasse a 2001 a produzir um álbum como 'A Fine Day to Exit', em que qualquer rasto de metal dava lugar a uma sensibilidade bastante diversa, mais ligada ao rock atmosférico. E em 2003, 'A Natural Disaster' inaugurava uma fase bastante experimental, que, agora o vemos, está para ficar.
No entanto, são os anos de 2001 e 2002 que parecem ter sido de charneira para os Anathema, com o lançamento dos dois volumes de 'Resonance', que reuniam algumas das canções da fase doom-metal, que ia mais ou menos de 1990 a 1995, incluindo ainda algumas canções de álbuns posteriores onde a estética pesada ainda se fazia sentir. Estas duas colectâneas funcionam como um arrumar de casa que abriu, realmente, caminho a novas experimentações. A confirmá-lo, há ainda o álbum 'Falling Deeper' (2011), em que os Anathema revisitam as suas canções iniciais, dando-lhe uma roupagem mais consonante com o que fazem agora. 'Falling Deeper' formava, ao mesmo tempo, uma linha recta com o álbum de originais de 2010, 'We're Here Because We're Here', em que aquela atmosfera depressiva e melancólica que, independentemente de todas as mudanças, sempre foi característica dos Anathema, era contrabalançada por um lado muito mais brilhante e luminoso, como confirmavam canções como Thin Air, Dreaming Light ou Everything.
Com tanta conturbação, o álbum prometido para 2012 só poderia chegar com muita promessa.


Lançado na passada segunda-feira, 'Weather Systems' é um álbum que nos exige uma audição bastante atenta, porque, um pouco como os Anathema já nos têm mostrado, é tudo menos evidente. A sensação de estranheza que 'We're Here Because We're Here' certamente causaria a quem conhecesse o percurso da banda britânica, é mais ou menos aquela que agora 'Weather Systems' nos poderá causar. Daniel Cavanagh explica num vídeo editado pela KScope que este álbum consistia inicialmente num conjunto de cinco canções que totalizavam cerca de trinta minutos de música, às quais se juntaram mais quatro que não tinham encontrado o seu lugar no álbum de 2010. O facto é que as canções formam um conjunto bastante coerente, mas assim fica explicado por que, de certa forma, se sente neste álbum uma certa afinidade com 'We're Here Because We're Here', mas ao mesmo tempo se sente também que algo aqui é realmente novo. Se, por um lado, há uma tendência, como havia em 2010, para criar canções mais luminosas e mais simplificadas, por outro, a inclinação para o atmosférico é bastante forte e a ligação a determinados aspectos da natureza, por exemplo as tempestades, faz-se sentir e não só nas letras, como também na própria concepção das canções, que conta também com sons gravados naturalmente que intensificam essa ligação com os sistemas climáticos prometidos pelo título.
'Weather Systems' abre com Untouchable part 1, onde uma guitarra dedilhada dá o mote para uma canção suave e, de alguma forma, romântica onde a voz suave e quase frágil de Vincent Cavanagh faz uma espécie de declaração de amor (Que, escusado será dizê-lo, não resvala para a vulgaridade.), evoluindo depois para um final mais intenso e gritado, onde a letra, de Daniel Cavanagh, atinge a qualidade do costume. Este final conta também com as harmonias vocais de Lee Douglas, o que traçará a ponte para Untouchable part 2, onde a vocalista partilha a voz principal com Vincent. Esta segunda parte facilmente se poderia tornar foleira, uma vez que o dueto com uma voz masculina e outra feminina, na maior parte dos casos, acaba por se tornar aborrecido e possidónio, mas não é de todo o caso. Aliás, convém lembrar que os Anathema cada vez mais estão a explorar o facto de não só contarem com dois vocalistas, como também o facto das vozes de Vincent Cavanagh e Lee Douglas serem duas vozes que se complementam de uma forma belíssima, como 'Falling Deeper' já tinha provado. Assim sendo, os dois dividem a letra que, de certa forma, parece derivar da letra da primeira parte, sendo esta segunda parte gravada com base no piano, acrescido ainda de belíssimos arranjos de cordas, parecendo esta canção realmente continuar a fase mais sinfónica que 'Falling Deeper' inaugurava.
Segue-se The Gathering of the Clouds, uma das canções mais dramáticas e mais sombrias de 'Weather Systems' e também, desde já se diga, uma das melhores. Uma vez mais o mote é dado pela guitarra dedilhada, num segmento perfeitamente obsessivo, a que se juntará a voz de Vincent, apoiada pela de Lee, evoluindo, através dos arranjos de cordas e da bateria acelerada de John Douglas para uma atmosfera cada vez mais negra e explosiva, mas que não dispensa uma certa procura de libertação. Uma vez mais, as harmonias de Lee Douglas traçarão a ponte para a canção seguinte, Lightning Song, onde, desta vez, Lee canta a canção inteira. Lightning Song acaba por ser um pouco o reverso de The Gathering of the Clouds, uma vez que, continuando a temática da tempestade, segue a postura de uma certa fascinação perante essa tempestade, acabando por a canção, numa tonalidade de deslumbramento, resultar eufórica, principalmente no segmento final, bastante mais pesado do que o inicial. Nesta canção também se experimenta criar os arranjos de corda em torno da guitarra eléctrica e da bateria, o que acaba por resultar tão bem quanto construí-los em torno do piano.
Sunlight será, numa primeira audição, talvez a canção mais desinteressante do álbum. No entanto, ao ouvi-la uma segunda vez, talvez se perceba como, sob uma aparência talvez demasiado delicada, há uma densidade bastante garrida conseguida através do jogo vocal entre Vincent e Lee, que, de certa maneira, anula um pouco o tom morno para que a canção parece inclinar-se.


O álbum inteiro é composto por Daniel Cavanagh, com excepção precisamente de The Storm Before The Calm, da autoria do baterista John Douglas. John Douglas começou a compor canções para a banda que integrava desde a primeira formação (Em 1990.) em 2001, com 'A Fine Day to Exit' e, por um lado, o seu papel como compositor ficou um pouco afectado pelo facto da canção de abertura desse álbum, Pressure, parecer um tanto vulgar. No entanto, era impossível não reconhecer que a ele se devem algumas das melhores canções dos Anathema, como sejam Looking Outside Inside, A Fine Day to Exit, Get Out Get Off ou Universal. E o que acontece em 'Weather Systems' é que esta canção que ele escreve e que, quase se pode dizer, é composta por duas canções distintas, é também uma das melhores do álbum. Com um início onde regressa um pouco a electrónica de 'A Natural Disaster', a voz de Vincent Cavanagh, que aqui prova a sua versatilidade, alia-se à guitarra e aos arranjos de cordas e cria outro momento bastante sombrio que, nalguns pontos, quase faz lembrar a fase inicial da banda. Mais ou menos a meio, a canção muda drasticamente de ambiência, e é-nos dado o outro lado, o acalmar da tempestade, que escolhe uma via que é mais contemplativa do que de celebração. É um momento melancólico e calmo, mas ao mesmo tempo absolutamente belo, com as vozes de Vincent e Lee numa espécie de lamento que é ora sussurrado ora exacerbado. Os quase dez minutos que a canção soma são dos mais representativos de 'Weather Systems'.
Algumas semanas antes do lançamento do álbum, tal como tinha acontecido com o álbum de 2011, os Anathema divulgaram uma das canções. The Beginning and the End será talvez das canções mais simples deste álbum, uma vez que é aquela que nos mostra o trabalho de uma banda em estúdio, sem ajudas exteriores. Constrói-se em torno do piano, tocado por Daniel Cavanagh, e vão-se acrescentando o baixo de Jamie Cavanagh, a bateria e as guitarras. É uma canção belíssima, directa e comovente, e também uma das melhores letras de Danny Cavanagh e a atmosfera melancólica acaba por resultar numa vontade de viver e de sentir que tem sido, desde há vários anos para cá, a mensagem principal dos Anathema.
The Lost Child será uma das canções mais tristes do álbum, mas também das mais idílicas, onde, apesar da letra dramática e sem esperança, a linha de piano, acompanhada pela bateria, cria uma espécie de fuga. Se bem recentemente Daniel Cavanagh fez uma pequena digressão a solo, tocando as canções dos Anathema acompanhado apenas da sua guitarra, esta canção, de certa forma, parece ser um resultado directo dessa experiência. Com esta canção, fica aberto o caminho para o encerramento do álbum, com Internal Landscapes. Este encerramento é construído com base num depoimento em que Joe Geraci relata uma experiência-limite de aproximação à morte. A ideia em si parece derrotista e doentia, mas a verdade é que o conteúdo do relato é belo e impressionante, e, em vez de nos falar da ideia comum de morte, mostra-a como uma luz que se abre sobre a eternidade, em que o indivíduo passa a ser o próprio mundo. A gravação é trabalhada com arranjos de guitarra e de bateria e com as vozes de Lee Douglas e de Vincent Cavanagh que canta pequenos fragmentos realmente suaves e luminosos que deslocam o centro da canção da ideia de morte para uma ideia de libertação e de uma espécie de amore mundi que é uma maneira realmente belíssima de terminar o álbum.


A verdade é que um álbum como 'Weather Systems' não servirá para ouvintes mais fundamentalistas, uma vez que os Anathema parecem cada vez menos interessados em fazer música pesada só porque sim. O facto é que estas canções são belas e bastante pensadas, sendo que a violência só existe se tiver que existir. 'Weather Systems' parece desenrolar-se entre o drama e a fascinação, é um trabalho que sonda aquilo que de mais profundo possa haver dentro de uma pessoa e, tal como acontece no relato de Internal Landscapes, esta música passa a fazer parte de nós e nós dela. Ainda mais difíceis de rotular, os Anathema são realmente uma banda que ou se ama ou se fica completamente indiferente. O extremismo emotivo de um álbum assim não dá lugar a meios-termos e o facto é que, se acontecer, como acontece comigo, que a nossa sensibilidade seja consonante com a desta banda, é impossível que canções destas não nos comovam  e não nos aproximem de nós mesmos. Para isso mesmo, penso eu, deveria servir a música.


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

The Gift: Primavera

O OUTRO LADO

Depois de uma capa com todas as cores do arco-íris numa fotografia tirada na Índia, o novo álbum dos The Gift apresenta-nos a fotografia de uma árvore muito Six Feet Under, a preto e branco, que mais simples não podia ser. Dado que este álbum surge em tempo-record, apenas um ano depois de 'Explode', não deixa de ser instintivo que, mais do que o normal, pensemos numa relação entre os dois álbuns, antes até de pensarmos uma relação com a discografia total.
'Explode' era um álbum que mostrava uns Gift redondamente diferentes daquilo que deles esperávamos, ainda que, ao longo do seu percurso, em mais que um momento eles tenham dado mostras de que facilmente poderiam trabalhar o lado mais pop-rock da sua personalidade. 'Explode' era, por isso, o álbum que vinha reiniciar o processo que 'Digital Atmosphere' viera começar em 1996. Algumas grandes canções dos Gift estavam nesse álbum, assim como algumas das canções menos interessantes deles também estavam nesse álbum. O facto é que, a partir de 'AM-FM' (2004) os Gift pareciam muito convictos em afirmar o lado pop da sua música, ainda que, se olharmos friamente a música dos primeiros três álbuns, tenhamos que convir que de pop ali temos pouco material, o que, para mim, não deixa de ser uma coisa boa. Mas, se 'Explode' nos vinha dizer alguma coisa, é que a música pop pode realmente ser boa, quando feita por bons músicos. Assim sendo, uma vez assentada a poeira, fica-nos na mão um álbum que tem muito de bom mas que, mais do que nunca, nos deixa a dúvida sobre o que se segue.


Curiosamente, não demorou muito até que a dúvida fosse esclarecida e, logo no princípio de 2012, recebemos este 'Primavera' que, na pior das hipóteses, já nos diria o que fizeram os Gift depois de 'Explode'.
O título, primeiro em português para os Gift, cria de imediato uma relação com o álbum anterior, uma vez que era também o título de uma das canções que o integravam. E, de facto, logo ao vermos o alinhamento, vemos como, de certa forma, este álbum tem, de alguma forma, o seu berço em Primavera e, portanto, em 'Explode': aqui temos três Variações sobre, e ainda uma versão acústica dessa canção. 
A abertura de 'Primavera' faz-se com Black, uma canção instrumental que efectivamente nos introduz naquilo que irá ser o álbum. É uma canção essencialmente acústica, bastante despojada, serena e bastante concisa. Por isso, já não nos surpreenderá quando começarmos a ouvir La Terraza, outra canção acústica, construída essencialmente sobre a voz de Sónia Tavares e o piano de Nuno Gonçalves. Para o bem e para o mal, a verdade é que Sónia Tavares é, senão a melhor, certamente pelo menos uma das melhores vozes da música portuguesa actual e, portanto, será sempre a sua voz uma das linhas de força da música dos Gift. La Terraza faz, portanto, o melhor uso da voz de Sónia, que, mais do que nunca, nos parece perfeitamente capaz de uma larga paleta emotiva, o que acaba por ser bastante positivo, principalmente pelo facto da letra ser bastante longa, tornando-se, assim, sempre irregular e nunca enfadonha ou monocórdica.
Open Window segue basicamente a mesma estrutura, de voz e piano, e ainda alguns arranjos discretos. A aparente serenidade da canção é depois interrompida por um coro que canta alguns versos em português e que, tão de repente quanto começa, é calada pelo retomar da voz de Sónia em inglês, desta vez também também acompanhada de uma electrónica subtil. A Variação sobre a Primavera I é outro momento instrumental, curto, bastante simples, quase a fazer lembrar os tempos de 'Vinyl' (1998), com uma certa melancolia. Senhsucht é cantada em português, confirmando a vontade que os The Gift já vêm manifestando desde há algum tempo, de dar maior ênfase à sua produção em português. A canção é construída na mesma estrutura de voz e piano, desta vez com arranjos de cordas, como costumava ser hábito dos Gift, até 'Explode'. No entanto, desta vez, os arranjos, que, além do mais, não têm exactamente protagonismo, contribuem mais para enfatizar a melodia do que propriamente para tornar a canção mais grandiosa, se assim se pode dizer. Também Variação sobre a Primavera II nos faz lembrar um pouco os Gift iniciais, com o som de uma voz no rádio à mistura com uma série de sons sintéticos num aparente efeito de cacofonia, um pouco como acontecia antes do último refrão de Changes ou no final de Real (Get Me For).
A canção que se segue é, a meu ver, não só a melhor de todo o álbum, como também a mais conclusiva. Blindness é construída com base numa letra repetitiva ao ponto da obsessão, de uma linha de piano, uma beat sintética e voz. É uma canção de construção absolutamente simples, mas que consegue, com a maior eficácia, fundir a música de dança com aquele lado mais melancólico que a música dos Gift costumava ter. Por assim dizer, esta canção é uma canção daqueles Gift que conhecíamos de Cube, de Next Town, de Wake Up, de Dream With Someone Else's Dream ou de Butterfly, mas completamente contaminada por um tipo de música aparentemente oposto, completamente próxima do downtempo ou até do house. E, de certa forma, esta canção vem mostrar-nos aquele que poderá ser um caminho para os Gift depois do díptico 'Explode'/'Primavera', uma vez que, melhor do que nunca, as duas vertentes parecem conjugar-se neste Blindness.
Meaning of Life é um regresso à canção de voz e piano, sendo os arranjos desta feita conseguidos com coros e alguns tratamentos de voz. O resultado acaba por ser invulgar e quase bizarro, mas Meaning of Life é uma canção realmente boa. A Variação sobre a Primavera 3 parece, de certa forma, retomar a primeira variação, com piano e guitarra acústica, trabalhando ambos sobre a melodia original de Primavera. Les Tulipes de Mon Jardin (The Perfect You) será, de facto, a canção menos conseguida do álbum. Apesar da música que faz pensar realmente num renascer, muito consonante com o título do álbum, a letra não deixa de parecer completamente excessiva e também cheia de lugares comuns e, por mais que, no geral, possamos ficar com a impressão que esta é uma canção esperançosa, acaba por ser uma canção que, no fundo, não faz grande falta ao álbum.
Segue-se a versão acústica de Primavera, versão que resulta tão bem quanto a versão original. De facto, apesar da letra ter dois versos um tanto mal conseguidos, a canção não deixa por isso de ser uma grande canção e, no geral, esta é uma roupagem diferente, e não uma versão mais pobre.Aliás, a voz de Sónia Tavares fulgura aqui com outra força, o que só favorece a canção.
O final de 'Primavera' é também instrumental, com Long Time, uma canção de tonalidade agridoce e quase elegíaca, em que, de certa forma, o álbum se reinicia, como se esta canção nos pedisse que voltássemos a Black e, daí, continuássemos a ouvir.


Ouvido o álbum, percebemos com facilidade a relação que 'Primavera' tece com 'Explode': no fundo, são dois lados, opostos, da mesma banda, e mostram-nos que os Gift não esqueceram as suas raízes, ainda que não estejam dispostos a repeti-las ispsis-verbis. Tal como 'Explode' nos deixava algumas grandes canções pop-rock, 'Primavera' deixa-nos algumas grandes canções acústicas e depuradas. E, em cada um dos álbuns, temos uma canção que resume aquilo que cada um tem de melhor: Always Better if you Wait For the Sunrise em 'Explode' e Blindness em 'Primavera'. Se ouvirmos estas duas canções seguidas, verificamos que, a partir daquilo que elas formam, muito pode ser feito, o que nos deixa grandes expectativas para o próximo álbum dos Gift. Além disto, 'Primavera' também nos mostra que a banda está numa fase muitíssimo criativa e também muito livre. Mais ainda, para aqueles que reagiram mal a 'Explode', 'Primavera' que, como já disse, tem com ele uma relação bastante intensa, pode muito bem ser a prova de que 'Explode' merece ser ouvido com redobrada atenção.
E uma coisa é certa: os Gift estão no bom caminho, e não numa fase pobre ou comercial, pelo que, deles, justifica-se ter a imagem que temos desde 'Vinyl': que são uma das grandes bandas portuguesas, perfeitamente capaz de ombrear com tantas bandas por esse mundo fora.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Mísia: Senhora da Noite

GRITO DE BACANTE

Depois do lançamento de 'Ruas' (2009), aquela que, para mim, é a fadista mais original e de trabalho mais complexo desde Amália, anunciou a sua retirada. O argumento era o de que tudo o que tinha a fazer em termos de fado estava já feito. Para felicidade de quem, como eu, admira profundamente o trabalho insólito de Mísia, tais promessas não redundaram em factos, e, já no final de 2011, é lançado o novo álbum.


'Senhora da Noite', diga-se desde já, prova uma coisa: que 'Ruas' não esgotava todas as possibilidades de Mísia. Não que isto possa surpreender quem tem acompanhado o seu percurso. Se há coisa que a fadista nos tem mostrado é que a sua versatilidade está enraizada numa acentuada criatividade, espicaçada, parece-me, por uma proporcional inquietude, que tem levado a fadista a não só não repetir aquilo que já foi feito no fado (E convenhamos que era fácil que assim fosse.) como a não repetir-se a si mesma, reinventando-se a si mesma, renovando as nossas concepções de fado que, como Mísia diz numa entrevista ao programa 'Inferno', é uma canção urbana.
O conceito de 'Senhora da Noite' está de alguma forma próximo do conceito de 'Garras dos Sentidos' (1998). No álbum de 98, Mísia cantava poemas de poetas e escritores sobre fados tradicionais. Em 'Senhora da Noite', Mísia regressa ao fado tradicional, cantado sobre ele escritoras e letristas do sexo feminino apenas. A ideia resulta bem, no sentido de mostrar a mulher como elemento criativo, e excluindo aquilo que encontramos normalmente no fado, que são a da mulher apenas como intérprete ou então como inspiração.
'Senhora da Noite' abre com Fados das Violetas, cuja letra é conseguida através da junção de algumas quadras dos poemas As Quadras Dele e Poetas, de Florbela Espanca, junção essa perfeitamente conseguida, principalmente dado que ambos os poemas partilham a ideia das violetas, que Mísia isola como título para a letra da sua canção. O poema é cantado sobre o Fado Hilário, a que Mísia consegue conferir várias tonalidades, começando de uma forma quase serena e terminando, acompanhada pelo violino, nas últimas duas quadras cantadas de uma forma dramática e extrema, que são quase uma segunda canção dentro da canção. A abertura é forte, e acaba por, na sua dualidade, introduzir-nos nas duas tonalidades essenciais entre as quais oscilará o resto do álbum.
Segue-se Ulissipo, poema da recentemente falecida Rosa Lobato de Faria cantado sobre o Fado Alberto. De certa forma, esta canção faz uma ponte com o álbum anterior, onde era Lisboa que se cantava. É uma das canções mais interessantes e inesperadas, onde, numa transformação mitológica metafórica, Rosa Lobato de Faria nos dá uma ideia diferente da 'saudade', fazendo de Lisboa uma Penélope que espera que Ulisses volte de viagem. A voz acompanha com vigor o acordeão, que parece, de alguma forma, aproximar-se de alguma música francesa, o que talvez nos aponte para o período em que Mísia viveu em Paris, antes de regressar à Penélope/Lisboa.
'Senhora da Noite' traz-nos também, apenas pela segunda vez em dez álbuns, uma letra de Mísia, e a primeira assinada com o nome artístico (A outra, Cor de Lua, do álbum de 2000, 'Ritual', era assinada com o nome Susana Aguiar.). O Manto da Rainha, cantado sobre o Fado Menor, foi escolhido para apresentar o álbum, com o belíssimo videoclip realizado por John Turturro, e a escolha parece-me bastante acertada. Além da importância de ser um dos raros poemas escritos e cantados por Mísia, o poema em si parece sintetizar uma série de ideias que vamos encontrando de canção em canção. Enquanto autora, Mísia revela não só um grande à-vontade em expressar o seu mundo, (Que, de resto, fica claro nas escolhas de poemas de outros autores.) como também grande destreza em criar quer uma série de imagens interessantes e de subtilezas linguísticas, a começar pelo próprio título ('Manto da Rainha' é na verdade uma das linhas da palma da mão.).
Outro momento central é Senhora da Noite, um belíssimo poema de Hélia Correia (este) com música de Armandinho. A canção está estruturada de forma a acompanhar um pouco os momentos do poema: numa primeira estrofe em que esta senhora de noite nos explica a sua origem, é acompanhada por violino e piano, criando uma atmosfera mais pacífica e intimista e, à medida que começa a falar-nos da sua vida presente, vão entrando as guitarras que acrescentam um certo ritmo, bastante adequado a um poema a que não falta um delicado erotismo e também um delicioso 'grito de bacante', em que esta mulher é livre apenas a cantar, o que resume, de resto, muitíssimo bem o conceito deste álbum: nele, a personagem que canta e que escolhe as palavras é necessariamente uma mulher que, nessas palavras e nesse canto encontra a liberdade. Mais ainda, assinale-se como o poema se insere perfeitamente quer no universo de Mísia como no deste álbum em específico, sem por isso abdicar de certos traços que qualquer leitor de Hélia Correia facilmente reconhecerá.
Lua Mãe das Noites traz-nos um poema de Aldina Duarte, também ela fadista, que Mísia canta sobre o Fado Varela. Aldina parece sondar as letras mais tradicionais do fado de modo a construir a sua, e, ao fazê-lo, consegue vários momentos de impressionante originalidade ('Paixão que foste sempre maré vaza', por exemplo.), e Mísia parece reforçar esta ideia, já que é a primeira vez no álbum que grava com a estrutura instrumental de guitarra acústica/ guitarra portuguesa/ baixo.
Praticamente desde o princípio da sua carreira que Mísia mais nos tem mostrado que o fado não é uma música portuguesa, mas, de certo ponto de vista, uma expressão portuguesa de sentimentos universais. Se o lado 'Tourists' de 'Ruas' nos provava isto quando a fadista grava canções de, entre outros, os Joy Division, os Nine Inch Nails ou Camaron de la Isla; em 'Senhora da Noite', a colaboração de Adriana Calcanhotto, como autora da letra de Que o Meu Coração se Cansou vem, mais uma vez mostrar-nos a universalidade do fado. Adriana, sem abandonar certos maneirismos da sua escrita, dá a Mísia um refinado poema a que Mísia, acompanhada por uma guitarra de dez cordas e violino, consegue dar a roupagem mais adequada, em que um tom acusatório e dramático não cede de forma alguma ao sentimentalismo lamechas.
Se há momento que, mais do que surpreendente, se torna mesmo desconcertante, é Garras dos Sentidos II. Mísia recupera aqui, e isso tem todo o sentido, o poema que Agustina Bessa-Luís já havia escrito para a sua voz, no álbum que, aliás, a este poema vinha buscar o título. Em 1998, Mísia cantara-o sobre o Fado Menor, que parecia assentar perfeitamente ao tom lúcido mas trágico do poema. O poema ressurge agora sobre o Fado Corrido e, numa primeira audição, parece-nos quase estranha a junção da linguagem altiva e árdua de Agustina com a melodia animada do Fado Corrido, ainda por cima interpretado com violino e acordeão, e com Mísia, no meio, falando, como que dando-nos ideia de que canta ao vivo numa taverna daquelas em que o Fado terá nascido. Mas, ouvindo com mais atenção, percebemos que esta junção poderá ter, na verdade, um interessante sentido: o de que, por mais que agora no Fado se procurem por vezes as palavras dos eruditos, já quando o Fado era música de tavernas populares cantava os mesmos sentimentos que hoje ainda canta, quer sejam eruditos ou populares os seus letristas.
'Senhora da Noite' marca também um regresso que muito tardou. Tarde Longa traz-nos um divinal poema de Lídia Jorge (este), cantado também sobre o Fado Menor. Trata-se de um texto sucinto e límpido, mas a sua beleza, a sua profunda comoção e a sensibilidade intensa das suas imagens, certamente nos recordarão que Lídia Jorge já havia escrito dois poemas igualmente belíssimos para Mísia no álbum de 1998 (Fado do Retorno e Sou de Vidro.) e, tal como acontece com o poema de Hélia Correia, a adequação deste poema ao universo de Mísia não é incompatível com certas características que nitidamente pertencem ao universo de Lídia Jorge, por isso, esta nova colaboração da escritora é outra das boas notícias deste álbum. Tarde Longa é interpretado com apenas voz e piano, o que em muito favorece a atmosfera íntima do encontro descrito, e Mísia, que sempre compreendeu o valor das palavras, sabe encontrar a intensidade de versos tão belos como

Ficaremos abraçados
Estendidos como num lenço

Por tudo isto, a meu ver, Tarde Longa é certamente outro dos momentos fulcrais de 'Senhora da Noite'.
Segue-se Simplesmente, um poema de Amélia Muge, também cantora e uma das mais interessantes autoras a escrever música em Portugal. Esta letra vem lembrar-nos a mestria que Amélia Muge sempre teve em lidar com a língua portuguesa, com a força das suas expressões e das suas inexactidões (Como falar de 'coisas'.), aspecto que poucos letristas souberam trabalhar de forma tão intensa (Entre esses poucos contem-se, por exemplo, Regina Guimarães e Sérgio Godinho.). Mísia potencia ainda esta letra com a sua capacidade de teatralização, que é de resto uma das linhas de força de todo o seu trabalho, fazendo da voz um instrumento de representação, com corpo, expressão e pose.
Neste álbum, Mísia também recupera, pela terceira vez na verdade, uma das maiores poetas portuguesas de sempre: Natália Correia. Já em 'Drama Box' (2005) Mísia fizera uma letra colando quadras de diferentes poemas de Natália, que resultaram em E Se a Morte Me Despisse. Em 'Senhora da Noite', Mísia repete essa estrutura, para criar Que Silêncio é Esta Voz, sendo que o resultado, tal como já acontece com os poemas de Florbela Espanca, na abertura, nos dá um poema bastante conciso, que parece confrontar-nos com alguém que desenha a sua vida entre a dualidade silêncio/voz, chegando a uma interessante conclusão, com duas quadras de diferentes poemas

Quando me derem por morta
Lágrimas nem uma pinga
Um trevo de quatro folhas
Tenho debaixo da língua


Vou pelos campos de linho
Do poeta D. Dinis
Atirar a flor de pinho
Que onde cai é um País

como se, mesmo depois de morta, esta pessoa prosseguisse o seu caminho e assim não perdesse a voz, pelo que, de certo ponto de vista, este poema me parece uma verdadeira e digna homenagem a Natália que, de facto, mesmo depois da morte, não perdeu a voz.
Fogo Posto apresenta-nos um belo poema de Maria do Rosário Pedreira. Ainda que alguns dos livros desta autora me pareçam de qualidade menor, ao escrever esta letra para o Fado Britinho, Rosário Pedreira parece encontrar a intensidade que encontramos nalguns dos seus poemas. De facto, Fogo Posto é um momento muito interessante de 'Senhora da Noite', uma vez que ele recupera muitos dos temas essenciais do Fado (A traição, o ciúme, o desespero.) escritos de uma forma inesperada e Mísia, uma vez mais, prefere uma pose digna do que uma pose suplicante que é reforçada pelo acompanhamento que, além das guitarras, conta com o acordeão e o piano, resultando na canção, uma vez mais, um certo travo a chanson.
E se já a propósito de Lídia Jorge falei de regressos, Sombra também marca um regresso, o da actriz Manuela de Freitas, que já havia escrito Decisão, um dos poemas mais fortes do álbum 'Ritual'. Sombra é também um poema dramático, sobre uma prostituta numa esquina, apresentando-nos, por isso, uma certa angústia ligada à cidade. É uma das canções mais tristes e Mísia sabe como fazer com que nessa tristeza exista ainda uma certa compaixão que em muito intensifica as palavras.
A terminar, encontramos a Raposódia Amália, onde Mísia volta a utilizar a técnica da manta de retalhos que já usa com Florbela e Natália, sendo que desta vez não usa apenas quadras de poemas diferentes de Amália Rodrigues, mas também, para cada, uma música diferente, revelando, por isso, nas constantes mudanças de melodia, a extrema versatilidade quer da sua voz, quer da ambiência dessa voz. O poema que resulta desta raposódia é também ele bastante coerente e acaba por este ser um dos momentos mais invulgares de 'Senhora da Noite', que nos mantém, até ao fim, num estado expectante.


No fundo, aquilo que 'Senhora da Noite' nos mostra é aquilo que já há muito tem sido mostrado nos álbuns de Mísia: que ela não é apenas uma intérprete de Fado, mas também uma das maiores pensadoras e questionadoras dessa canção urbana que é o Fado, e que a dimensão experimental do seu trabalho sempre chega a conclusões insólitas mas nada inusitadas. Portanto, tanto a versatilidade, como a criatividade como a inquietude de Mísia sempre resultam em trabalhos complexos mas ricos e densos, que, estes sim, abrem verdadeiramente caminho à renovação do Fado, crédito que muitas vezes injustamente é retirado a Mísia. Porque ela tem esse dom raro que é a insatisfação, que origina a necessidade de procurar e encontrar, continuamente, o dom que tem, por exemplo, Björk. Por essas e outras razões, convém não deixar escapar 'Senhora da Noite'.

As mulheres de 'Senhora da Noite'

Florbela Espanca

Rosa Lobato de Faria

Mísia

Hélia Correia

Aldina Duarte

Adriana Calcanhotto

Agustina Bessa-Luís

Lídia Jorge

Amélia Muge

Natália Correia

Maria do Rosário Pedreira

Manuela de Freitas

Amália Rodrigues