O PESADO RENASCIMENTO
Talvez o sentimento que mais facilmente se associa ao rock seja a tristeza. Parece ser predominante. Mas um olhar atento sobre o que muitas bandas têm feito mostra-nos que não é obrigatoriamente a tristeza que encontramos na música rock. Bem pelo contrário, se olharmos para o percurso de algumas bandas, encontraremos canções de uma leveza e de um brilho extremos, como acontece, por exemplo, com algumas canções dos Anathema, dos Pearl Jam, dos Muse, dos Placebo, entre tantos outros. O que acontece é que, provavelmente, o rock é ainda uma expressão profunda e, daí, pesada dos sentimentos todos e assim é pesado e pesadamente honesto mesmo ao expressar felicidade, e o que distingue do pop é precisamente o facto do pop, quer fale de tristeza, quer fale de alegria, se expressar com facilitismo e superficialidade.
Servem estas considerações de introdução a algumas notas sobre o segundo álbum dos The Chant, editado há cerca de uma semana. Em 2010, a banda finlandesa lançava o seu segundo álbum, 'This is the World We Know', o primeiro a dar-lhes alguma visibilidade, ainda que discreta, na Europa. Era um álbum onde o encontro do rock com o metal dava canções intensas que, em muito, surpreendiam. Surpreendiam porque, apenas ao segundo álbum, os The Chant conseguiam impressionantes resultados dessa fusão que, parecendo fácil, é na verdade difícil, e que outras bandas conseguiram demorando mais tempo, como acontece um pouco com o Tool e, a partir deles, os A Perfect Circle, ou então os Anathema. 'This is the World We Know' não era, portanto, uma promessa, era já confirmação.
'A Healing Place' chega-nos dois anos depois de 'This is the World we Know' e o título, só por si, já anuncia a tendência para uma espécie de renascimento sobre os cenários negros que encontrávamos no álbum anterior, e também em 'Ghostlines' (2008), o primeiro.
A capa apresenta-nos uma espécie de paisagem interior, em que o indivíduo surge como uma silheta negra e sozinha num quadro algo apocalítico. E, ao ouvirmos o álbum, percebemos que há um sentido muito forte na imagem da capa. De certa forma, estas canções são o ruír daqueles cenários do primeiro álbum, e apresenta-nos o indivíduo no lugar onde se cura, onde renasce, para a reconstrução do (seu) mundo.
O álbum começa com os seguintes versos:
My eyes
adjusting
so that I can
see the outlines
ou seja, o indivíduo começa a ver os contornos, os contornos talvez das ruínas, que lhe permitirão recomeçar. Assim sendo, 'A Healing Place' parece traçar uma sequência com 'This is the World we Know'. Não se trata propriamente de fazer um álbum que seja o oposto do anterior, mas de continuá-lo.
A primeira canção, Outlines, mostra-nos que, mais uma vez, é entre o rock e o metal que os The Chant se situam, e é também um exemplo de como é difícil fundir os dois géneros. Mas os The Chant conseguem aqui uma canção absolutamente perfeita, uma espécie de expressão da angústia, que a letra consegue dizer sem recorrer àquilo que de mais vulgar se escreve sobre.
Spectral Light é uma canção mais complexa, constituida por duas secções, começando com uma guitarra dedilhada a que se juntam, depois, a bateria e os arranjos, uma vez mais subtis e melódicos, e a voz de Ilpo Paasela e o piano de Mari Jaamback. É uma canção cheia de momentos negros, que logo são rematados por outros momentos mais sinfónicos, onde, mais ainda, se nota o perfeccionismo nos arranjos, pensados milimetricamente para criar uma canção equilibrada e densa.
Outra das melhores canções do álbum é Riverbed, onde o ritmo lento e a voz por vezes sussurrada abrem caminho ao refrão emotivo e pesado, resultando uma vez mais numa canção equilibrada e fluida, que cria uma espécie de paisagem fria onde, ainda assim, nos sentimos perfeitamente aconchegados, e talvez a letra, de Jussi Hämäläinen, contribua para isso.
The Black Corner será talvez a canção que mais nos alude a 'This is The World we Know'. Ainda que musicalmente nos pareça realmente refém do álbum anterior, a letra é significativa para toda a génese de 'A Healing Place' já que é precisamente a esta canção que o álbum vem buscar o seu título. A linha de baixo confere um certo peso à canção e isto explicará certamente aquela ideia de que falei no início deste texto: é que efectivamente esse peso é uma forma de expressão, da expressão, neste caso, do desejo de recomeçar, de nos curarmos. E precisamente a partir daí começa The Ocean Speaks, outra das canções mais pesadas do álbum, mas também das que mais vai ao encontro da ideia do título. É uma música cheia de pausas e recomeços, de interrupções e repetições e, na sua barroca estrutura, acaba por resultar muitíssimo bem.
Segue-se Distant Drums, onde o discreto piano guia o ritmo da música, também ela cheia de pausas cujos renascimentos são pesados e marcados. Nesta canção fica muito clara a qualidade vocal de Ilpo Paasela que, a uma audição atenta pode parecer uma voz vulgar dentro do que, por norma, são os vocalistas de rock, mas que, na verdade, tem uma forte expressividade e uma capacidade invulgar de se moldar às canções que canta e, se compararmos o que ouvimos dele em Outlines e o que ouvimos, por exemplo, aqui, veremos como, de facto, há uma versatilidade nele que só favorece os The Chant.
My Kin é uma canção lenta, que nos mantém num certo impasse, mas é sem dúvida uma canção forte, que nos mostra precisamente que uma canção leve pode ser tão pesada quanto uma mais barulhente.
O mesmo, mais ou menos, acontece com Regret, a canção que fecha o álbum. É outra canção constituida por secções, indo do mais leve e sussurrado, até ao explosivo e gritado. E, fechando o ciclo, de certa forma parece reiniciar o próprio álbum, mantendo-nos um pouco fechados nele.
De facto, não tenho dúvidas de que 'A Healing Place' é um grande álbum rock, mas há que admitir que é tudo menos fácil. Para começar, as canções são densas e profundas e exigem atenção a ser ouvidas e, por outro lado, o álbum é executado pelas opções sempre mais difíceis. Se os The Chant fossem mais imediatistas, um álbum com este título seria um álbum cheio de canções melodiosas e quase acústicas, brilhantes e simples, mas não é o caso. Os The Chant mostram-nos como renascer e recomeçar são actos violentos, como a libertação é difícil e não raras vezes angustiante, ao ponto em que nos dá vontade de desistir. Mas o facto é que quando se ouve 'A Healing Place' com atenção, percebemos como tudo nele é sincero e quase visceral, como as composições sombrias são caminhos para a libertação e como este álbum fala directamente ao coração daquele que se sente preso mas não se sente morto, ou pelo menos não tão morto que se disponha a viver o resto da vida no lugar negro em que está. Ao contrário dos álbuns anteriores, este é inteiramente escrito e composto pelo guitarrista Jussi Hämäläinen que não deixa dúvidas quanto á sua qualidade poética e musical, e a partir das melodias e das letras, Ilpo Paasela demonstra uma vez mais a sua garra enquanto vocalista, conseguindo cantar de uma forma em que, mesmo que não houvesse letra, conseguiríamos perceber quais os sentimentos que são cantados. Momentos como Oultines, Riverbed ou Regret são, nesse aspecto, verdadeiramente impagáveis, e 'A Healing Place' é um sucessor mais que digno a um álbum como 'This is the World We Know', sentindo-se apenas falta de uma maior presença do piano, que caracterizava muito esse álbum anterior.
Esta é uma banda discreta e, no geral, menos conhecida do que deveria ser, mesmo dentro dos circuitos mais fechados do rock. Mas se 'A Healing Place' nos prova alguma coisa, é que definitivamente lhes deveria ser dada mais atenção, pois não é tão comum como se pense que uma banda tenha a coragem de se despir desta forma, e de nos despir a nós, que a ouvimos.
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