quarta-feira, 6 de junho de 2012

Hellraiser: Revelations de Victor Garcia

PARTIR PARA O INSULTO


Não há dúvida que vivemos na era do capital. Que se perdeu a vontade de fazer arte quando se pega numa câmara de filmar, já não é novidade nenhuma. Que as grandes produtoras sugam o sangue dos grandes clássicos, também já sabemos, e que no caso do cinema de horror isso é ainda mais notório, é impossível não saber. Eis um breve levantamento:
The Texas Chainsaw Massacre de Tobe Hooper, 1974 - 2 sequelas, 1 remake
Halloween de John Carpenter, 1978 -7 sequelas, 1 remake e 1 sequela do remake
Friday the 13th de Sean S. Cunningham, 1980 - 10 sequelas, 1 remake
A Nightmare on Elm Street de Wes Craven, 1983 -7 sequelas, 1 remake
Hellraiser de Clive Barker, 1987 -8 sequelas
Como se vê, 'Hellraiser' é de todos os exemplos, o mais recente, mas o segundo com mais sequelas. O que é ainda mais grave é que, a partir de 'Hellraiser: Inferno' (2000), o quinto filme, nenhum dos argumentos foi escrito originalmente como sequela do filme de Clive Barker, o imaginário desse filme foi apenas inserido num contexto que, inicialmente, em nada lhe dizia respeito. E se no caso de 'Hellraiser: Inferno' isso não era particularmente notório, nos restantes era difícil não o perceber e o resultado acabava sempre por ser ou incompreensível (Como em 'Hellraiser: Deader' (2005).) ou pura e simplesmente insultuoso (Em 'Hellraiser: Hellseeker' (2002) e 'Hellraiser: Hellworld' (2005).).
E se o absoluto fiasco que foi o oitavo filme deixou os admiradores da série bastante indignados, aparentemente não chegou para que o pessoal da Dimension Films, que neste momento é detentora dos direitos sobre 'Hellraiser', desistisse, finalmente, de tentar continuar um grande filme que nunca deveria ter tido sequela nenhuma. Isto porque falar do mero oportunismo que caracterizou a saga a partir do seu quinto filme é não referir que as anteriores sequelas, ainda que escritas especificamente para este imaginário, também estavam longe de ser assinaláveis.
Acontece que há já alguns anos que se anda a anunciar um remake para 'Hellraiser' o que, duma perspectiva mercantilista, tem todo o sentido, porque é outro dos clássicos com inúmeras sequelas, mas o único que não tem remake. O projecto já por várias vezes teve e perdeu realizadores e argumentistas, e o prazo para a estreia vai sendo adiado constantemente. Ora, quem tenha visto o que recentemente se fez com 'Hellraiser' há-de achar que até é bom que esse remake não apareça. Mas há um facto que fica negligenciado: a Dimension tem que ir utilizando o nome 'Hellraiser' para não perder os direitos de obra e, com eles, o direito de fazer o remake.
Assim sendo, em 2011, sendo uma vez mais adiada a produção do remake, a Dimension dá por si perigosamente perto de perder os direitos de obra e toma uma decisão: entregam a um infeliz realizador que precisa de trabalhar para viver um argumentozinho qualquer, dão-lhe uma semana e meia para realizar um filme e, em tempo-record, surge uma nova sequela de 'Hellraiser', a oitava.
Se tivesse havido algum suspense antes do filme estar pronto, certamente os fãs teriam ficado contentes por saber que, pela primeira vez desde 1996, a sequela de 'Hellraiser' foi, efectivamente, escrita como tal, ao invés da técnica de inserir o imaginário num argumento qualquer.


De facto, 'Hellraiser: Revelations' apresenta-nos um argumento que, sem dúvida, foi escrito para esta saga. Mas, independentemente de todas as cambiantes, a verdade é uma: as qualidades deste filme esgotam-se nesse facto -e apenas no facto, uma vez que o argumento propriamente dito não é uma boa notícia.
O fantasma do remake passa por aqui. Em muitos dos momentos de 'Hellraiser: Revelations' chega a tornar-se pouco claro se estamos perante uma sequela, se perante um remake inusitado. Vejamos a história: Steven (Nick Eversman) e Nico (Jay Gillespie) são dois amigos no final da adolescência que decidem fugir da sua vida de pequenos-burgueses para o México, em busca de mulheres e alcóol. Os dois desaparecem e a família de Steven consegue receber apenas uma mochila com alguns recurdos da viagem final, que incluem uma máquina de filmar com algumas gravações e a caixa-puzzle que conhecemos como Configuração do Lamento.
As famílias dos dois reunem-se frequentemente, mas nunca falam deles. A única que parece ter vontade de o fazer é Emma (Tracey Fairaway), irmã de Steven e namorada de Nico, que se sente indignada com o silêncio em volta deles, principalmente tendo em conta que a sua mãe (Devon Sorvari) vê obcessivamente as gravações da máquina de filmar, mas não deixa a filha vê-las.
Num desses jantares, Emma tem um freak-out e decide exigir dos seus pais e dos pais de Nico também presentes que se fale sobre eles. Este é o momento em que nos preparamos para a hora-da-coincidência: precisamente durante esse mesmo jantar, Steven aparece misteriosamente no jardim, completamente desorientado e com uma conversa fragmentada em que fala de Cenobites.
E, depois da hora-da-coincidência, temos que nos preparar para a hora-da-estupidez: Emma vai buscar um dicionário e lê uma definição de Cenobite. Ela LÊ uma definição de Cenobite, por amador que isto nos possa parecer! E, como se isto não fosse suficiente, a definição que ela lê nada tem que ver com os Cenobites de 'Hellraiser', ou seja, além de amadoramente estúpido, este momento é inconsequente.
A chegada de Steven dá-nos mais pormenores sobre a visita ao México e, com eles, surge a hora-do-dejá-vu: eles chegaram ao México e, num bar, enquanto engatavam prostitutas, encontraram um vagabundo que lhes mostrou a Configuração do Lamento. Quando Nico tentou comprá-la, o vagabundo deu-lha, dizendo-lhe que sempre lhe havia pertencido, ou seja, exactamente a mesma ideia que víamos no primeiro Hellraiser.
Daí para a frente, tudo é muito semelhante ao original de Clive Barker: Nico é levado pelos Cenobites, regressa, Steven angaria algumas prostitutas para lhe restituir um corpo. A única diferença surge quando Nico pede a Steven que arranje um homem para que ele lhe possa ficar com a pele e Steven, já atolado por sentimentos de culpa, se recusa a fazê-lo.
Como percebemos depois, Nico decidiu então matar Steven e usar-lhe a pele e é portanto ele quem regressa, na pele do amigo.
Enquanto tudo isto, a Configuração do Lamento vai sendo aberta e fechada sem consequências morosas e Pinhead, que pela primeira vez Doug Bradley se recusou a incarnar, neste caso portanto representado por Stephen Smith Collins, parece estar descansadinho no seu inferno a fazer esgares supostamente assustadores e a preparar um novo Pinhead. É verdade: UM NOVO PINHEAD.
Além destas maravilhas que já descrevi, o argumento de Gary Tunnicliffe ainda nos apresenta outras subtilezas que tais, como um beijo incestuoso que não tem qualquer consequência, ou o facto de na verdade Steven e Nico terem fugido para o México porque descobriram que a mãe de um era amante do pai do outro, ou ainda as explicações que Nico-na-pele-de-Steven dá sobre as razões da fuga, que parecem retiradas do diário de um adolescente revoltado com a normalidade da sua vida. Neste último caso não é que eu não concorde, mas acho que as coisas poderiam ser feitas com um pouco mais de classe. O próprio título do filme promete revelações, mas não as encontramos em lugar nenhum. Só as há como as que há em qualquer filme: as que dizem respeito ao filme em questão. Sobre os anteriores, sobre este universo, não há qualquer revelação e o título perde completamente o sentido.
Já vimos que imaturidade e falta de bom-senso não faltam ao argumento de 'Hellraiser: Revelations'. Falta agora falar da realização. Sinceramente, eu tenho pena de Víctor Garcia. Como qualquer pessoa, Garcia precisa de comer e, como tal, precisa de dinheiro. E eu só lamento que as produtoras continuem a aproveitar-se desta situação para angariar realizadores e entregar-lhes filmes sem lhes dar a hipótese de realizarem um trabalho de qualidade. Aqui, nem sequer está em questão se o filme tem mais ou menos qualidade. O facto é que não havia, pura e simplesmente, hipótese alguma de 'Hellraiser: Revelations' ficar bem feito. Com um tempo de produção de 12 dias, não é possível que se faça um filme de jeito. Garcia parece várias vezes tentar, consegue um ou outro plano mais interessante, mas, no geral, não consegue dar ao argumento previsível e falho uma roupagem que precisamente compense essas falhas. Tudo aqui nos parece adolescente e superficial, um pouco à imagem dos dois protagonistas deste filme. Garcia tenta jogar com a luz e com os elementos visuais, mas nada é credível. A perda de Doug Bradley como actor para Pinhead também é assinalável, porque o seu rosto era muito específico, mas não é só o rosto que não é o mesmo. Os próprios pregos, ao serem grandes demais, parecem estar prestes a cair, e o rosto de Pinhead acaba por parecer mais uma máscara do que a cara de um Cenobite. Os próprios actores em pouco favorecem o filme. Três deles são de maior importância: Tracey Faiaraway como menina revoltada de luto acaba por não parecer mais que uma menina histérica e balofa, Devon Sorvari como mãe e esposa enganada envereda pelos clichés da mulher frígida/doméstica exemplar que vemos em qualquer filme de domingo à tarde, e Nick Eversman até se esforça, mas os diálogos que lhe cabem enquanto Nico-na-pele-de-Steven são tão maus que não há expressividade vocal ou corporal que o salve.


'Hellraiser: Revelations' estava, portanto, condenado ainda antes de ter sido começado. E o que a Dimension não parece perceber é que filmes destes não vão propriamente seduzir ninguém para ver o remake, quando e se esse remake realmente se fizer.
É que nos anteriores, tudo começava a ser francamente mau. Mas em 'Hellraiser: Revelations', já não estamos a falar de um mau filme: estamos a falar de partir para o insulto. O insulto a toda a gente: a Clive Barker e aos admiradores da saga e a qualquer pessoa que, mesmo não tendo nenhum dos outros filmes, tropece neste. É um insulto para qualquer um, na verdade.

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