RAÍZES
Quando em 2011 Tori Amos lançou o seu décimo álbum de originais, 'Night of Hunters' era dificilmente aquilo que se esperaria após 'Abnormally Attracted to Sin' (2009). 'Night of Hunters' consistia numa recriação de várias peças de compositores eruditos, contava uma história com recurso a várias metáforas que existem dentro da música erudita e realçava a cultura de Amos não só enquanto cantora, mas também enquanto compositora e, essencialmente, enquanto artista.
Pouco depois do lançamento desse álbum, Myra Ellen anunciou que, no seguinte, iria gravar canções dos seus trabalhos anteriores em versões sinfónicas. Não pareceu, de todo, pouco natural esta ideia, depois de 'Night of Hunters'.
No final de 2012, chega-nos então 'Gold Dust', que vai buscar o título a uma das mais belas canções de Amos, do álbum 'Scarlet's Walk' (2002), uma canção que, já na sua versão original, era gravada apenas com piano e orquestra.
O álbum é gravado quase inteiramente da mesma forma, contando com a Metropole Orchestra conduzida por Jules Buckley e com os arranjos de John Phillip Shenale e o alinhamento conta com canções de todos os trabalhos de Amos, incluindo o álbum de natal 'Midwinter Graces' (2009), mas não 'The Beekeeper' (2005).
O alinhamento será, para aqueles que conhecem bem o percurso de Amos, talvez aquilo que nos deixa mais reticentes em relação a 'Gold Dust'. Se a música de Tori sempre teve assumidamente uma herança da música erudita, particularmente a barroca, a verdade é que nalgumas canções isso era mais notório do que noutras. O que acontece é que a maioria destas canções são precisamente aquelas onde a presença erudita e a vertente sinfónica eram mais claras, como é o caso de Jackie's Stenght, Cloud on My Tongue, Gold Dust, Winter, Marianne, Girl Disappearing ou de Flavour que, aliás, foi escolhida para apresentar o álbum. São mais raras as canções em que essa presença era menos nítida, como Precious Things, Flying Dutchman ou Programmable Soda. Por um lado, podemos achar talvez demasiado imediatista a escolha que Amos faz, dentro do seu trabalho. Gravar canções como Professional Widow, Raspberry Swirl, Teenage Hustling, You Can Bring Your Dog ou Give teria sido muito mais ousado e, provavelmente, teria causado em nós uma efeito muito mais exacerbado.
No entanto, logo que começamos a ouvir o álbum, percebemos que talvez não seja exactamente assim. As canções, apesar de já conhecidas, tem uma aspereza e uma atmosfera pesada que não teríamos, possivelmente, ouvido tão imediatamente nas versões originais. O facto é que estas versões sinfónicas realçam as emoções mais negras das canções, elas tornam-se grandiosas e angustiadas. Dessa perspectiva, entende-se melhor a selecção que Amos fez do seu trabalho: se imaginarmos as canções que usei como exemplo acima, ou outras dentro do mesmo género, refeitas desta forma, elas perdem o sentido original para ganharem outro sentido que não faz, por assim dizer, muito sentido.
Exemplo máximo disto será talvez a versão de Gold Dust, em que o esquema instrumental quase não é alterado, mas que soa, aqui, como um lamento fortíssimo que nos deixa derrotados. Imagine-se o efeito que uma roupagem destas teria, por exemplo, em You Can Bring Your Dog, e percebe-se como, efectivamente, o que motivou a escolha de Amos foi a inteligência mais do que o desejo de surpreender.
Tal como acontecia com 'Night of Hunters', este álbum funciona mais como um todo do que como um conjunto de peças individuais. Já desde 'American Doll Posse' (2007) que Tori começou a fazer uso das capacidades teatrais que teve sempre, e nos últimos dois álbum, isso é tanto mais importante. A verdade é que nunca canções como Cloud on my Tongue, Precious Things ou Winter tiveram tanta corpulência quanto têm nestas novas versões. Se estes momentos mais melancólicos são ocasionalmente interrompidos, a verdade é que canções como Flying Dutchman, Programmable Soda ou Snow Cherries From France, parecendo momentos mais cómicos, funcionam mais como forma de balanço e não se pode dizer que 'Gold Dust' tenha propriamente um lado mais animado. Nada contra, entenda-se. Este é um álbum triste e depressivo, e o que interessa verdadeiramente é se o é com qualidade. Parece ser o caso. 'Gold Dust' é, em quase todos os seus momentos, arrebatador e resplandecente. Por exemplo Star of Wonder, que à partida não seria mais do que uma canção de natal, acaba resultando perfeitamente, ao ponto em que nos esquecemos que é uma canção de natal e passa a ser mais um capítulo da história que aqui é contada.
A voz de Amos continua perfeita, muito à vontade nas canções mais pesadas precisamente e as suas capacidades como pianista estão, agora, mais claras, até pelas características da música que está a fazer. Aliás, ao ouvir 'Gold Dust', parece ocorrer-nos que é até estranho que Tori Amos nunca tenha gravado antes um álbum deste género, uma vez que parece tão à vontade e tão favorecida pelo estilo deste trabalho.
O envolvimento da pianista com uma série de projectos mais ligados ao teatro e a espectáculos de música erudita parecem, de certa forma, tê-la afastado um pouco da composição de novos originais dentro do estilo que, por agora, termina em 'Abnormally Attracted to Sin'. Por outro lado, a sua música, ao intelectualizar-se, parece estar agora a explorar as próprias raízes (É um exercício interessante ouvir este álbum em face do primeirinho 'Little Earthquakes'.) e não se pode dizer que os resultados não estejam à altura. Pelo contrário, 'Gold Dust' causa o efeito que causam sempre os álbum de Amos, que é a vontade de ouvir repetidamente.
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