O OUTRO LADO
Depois de uma capa com todas as cores do arco-íris numa fotografia tirada na Índia, o novo álbum dos The Gift apresenta-nos a fotografia de uma árvore muito Six Feet Under, a preto e branco, que mais simples não podia ser. Dado que este álbum surge em tempo-record, apenas um ano depois de 'Explode', não deixa de ser instintivo que, mais do que o normal, pensemos numa relação entre os dois álbuns, antes até de pensarmos uma relação com a discografia total.
'Explode' era um álbum que mostrava uns Gift redondamente diferentes daquilo que deles esperávamos, ainda que, ao longo do seu percurso, em mais que um momento eles tenham dado mostras de que facilmente poderiam trabalhar o lado mais pop-rock da sua personalidade. 'Explode' era, por isso, o álbum que vinha reiniciar o processo que 'Digital Atmosphere' viera começar em 1996. Algumas grandes canções dos Gift estavam nesse álbum, assim como algumas das canções menos interessantes deles também estavam nesse álbum. O facto é que, a partir de 'AM-FM' (2004) os Gift pareciam muito convictos em afirmar o lado pop da sua música, ainda que, se olharmos friamente a música dos primeiros três álbuns, tenhamos que convir que de pop ali temos pouco material, o que, para mim, não deixa de ser uma coisa boa. Mas, se 'Explode' nos vinha dizer alguma coisa, é que a música pop pode realmente ser boa, quando feita por bons músicos. Assim sendo, uma vez assentada a poeira, fica-nos na mão um álbum que tem muito de bom mas que, mais do que nunca, nos deixa a dúvida sobre o que se segue.
Curiosamente, não demorou muito até que a dúvida fosse esclarecida e, logo no princípio de 2012, recebemos este 'Primavera' que, na pior das hipóteses, já nos diria o que fizeram os Gift depois de 'Explode'.
O título, primeiro em português para os Gift, cria de imediato uma relação com o álbum anterior, uma vez que era também o título de uma das canções que o integravam. E, de facto, logo ao vermos o alinhamento, vemos como, de certa forma, este álbum tem, de alguma forma, o seu berço em Primavera e, portanto, em 'Explode': aqui temos três Variações sobre, e ainda uma versão acústica dessa canção.
A abertura de 'Primavera' faz-se com Black, uma canção instrumental que efectivamente nos introduz naquilo que irá ser o álbum. É uma canção essencialmente acústica, bastante despojada, serena e bastante concisa. Por isso, já não nos surpreenderá quando começarmos a ouvir La Terraza, outra canção acústica, construída essencialmente sobre a voz de Sónia Tavares e o piano de Nuno Gonçalves. Para o bem e para o mal, a verdade é que Sónia Tavares é, senão a melhor, certamente pelo menos uma das melhores vozes da música portuguesa actual e, portanto, será sempre a sua voz uma das linhas de força da música dos Gift. La Terraza faz, portanto, o melhor uso da voz de Sónia, que, mais do que nunca, nos parece perfeitamente capaz de uma larga paleta emotiva, o que acaba por ser bastante positivo, principalmente pelo facto da letra ser bastante longa, tornando-se, assim, sempre irregular e nunca enfadonha ou monocórdica.
Open Window segue basicamente a mesma estrutura, de voz e piano, e ainda alguns arranjos discretos. A aparente serenidade da canção é depois interrompida por um coro que canta alguns versos em português e que, tão de repente quanto começa, é calada pelo retomar da voz de Sónia em inglês, desta vez também também acompanhada de uma electrónica subtil. A Variação sobre a Primavera I é outro momento instrumental, curto, bastante simples, quase a fazer lembrar os tempos de 'Vinyl' (1998), com uma certa melancolia. Senhsucht é cantada em português, confirmando a vontade que os The Gift já vêm manifestando desde há algum tempo, de dar maior ênfase à sua produção em português. A canção é construída na mesma estrutura de voz e piano, desta vez com arranjos de cordas, como costumava ser hábito dos Gift, até 'Explode'. No entanto, desta vez, os arranjos, que, além do mais, não têm exactamente protagonismo, contribuem mais para enfatizar a melodia do que propriamente para tornar a canção mais grandiosa, se assim se pode dizer. Também Variação sobre a Primavera II nos faz lembrar um pouco os Gift iniciais, com o som de uma voz no rádio à mistura com uma série de sons sintéticos num aparente efeito de cacofonia, um pouco como acontecia antes do último refrão de Changes ou no final de Real (Get Me For).
A canção que se segue é, a meu ver, não só a melhor de todo o álbum, como também a mais conclusiva. Blindness é construída com base numa letra repetitiva ao ponto da obsessão, de uma linha de piano, uma beat sintética e voz. É uma canção de construção absolutamente simples, mas que consegue, com a maior eficácia, fundir a música de dança com aquele lado mais melancólico que a música dos Gift costumava ter. Por assim dizer, esta canção é uma canção daqueles Gift que conhecíamos de Cube, de Next Town, de Wake Up, de Dream With Someone Else's Dream ou de Butterfly, mas completamente contaminada por um tipo de música aparentemente oposto, completamente próxima do downtempo ou até do house. E, de certa forma, esta canção vem mostrar-nos aquele que poderá ser um caminho para os Gift depois do díptico 'Explode'/'Primavera', uma vez que, melhor do que nunca, as duas vertentes parecem conjugar-se neste Blindness.
Meaning of Life é um regresso à canção de voz e piano, sendo os arranjos desta feita conseguidos com coros e alguns tratamentos de voz. O resultado acaba por ser invulgar e quase bizarro, mas Meaning of Life é uma canção realmente boa. A Variação sobre a Primavera 3 parece, de certa forma, retomar a primeira variação, com piano e guitarra acústica, trabalhando ambos sobre a melodia original de Primavera. Les Tulipes de Mon Jardin (The Perfect You) será, de facto, a canção menos conseguida do álbum. Apesar da música que faz pensar realmente num renascer, muito consonante com o título do álbum, a letra não deixa de parecer completamente excessiva e também cheia de lugares comuns e, por mais que, no geral, possamos ficar com a impressão que esta é uma canção esperançosa, acaba por ser uma canção que, no fundo, não faz grande falta ao álbum.
Segue-se a versão acústica de Primavera, versão que resulta tão bem quanto a versão original. De facto, apesar da letra ter dois versos um tanto mal conseguidos, a canção não deixa por isso de ser uma grande canção e, no geral, esta é uma roupagem diferente, e não uma versão mais pobre.Aliás, a voz de Sónia Tavares fulgura aqui com outra força, o que só favorece a canção.
O final de 'Primavera' é também instrumental, com Long Time, uma canção de tonalidade agridoce e quase elegíaca, em que, de certa forma, o álbum se reinicia, como se esta canção nos pedisse que voltássemos a Black e, daí, continuássemos a ouvir.
Ouvido o álbum, percebemos com facilidade a relação que 'Primavera' tece com 'Explode': no fundo, são dois lados, opostos, da mesma banda, e mostram-nos que os Gift não esqueceram as suas raízes, ainda que não estejam dispostos a repeti-las ispsis-verbis. Tal como 'Explode' nos deixava algumas grandes canções pop-rock, 'Primavera' deixa-nos algumas grandes canções acústicas e depuradas. E, em cada um dos álbuns, temos uma canção que resume aquilo que cada um tem de melhor: Always Better if you Wait For the Sunrise em 'Explode' e Blindness em 'Primavera'. Se ouvirmos estas duas canções seguidas, verificamos que, a partir daquilo que elas formam, muito pode ser feito, o que nos deixa grandes expectativas para o próximo álbum dos Gift. Além disto, 'Primavera' também nos mostra que a banda está numa fase muitíssimo criativa e também muito livre. Mais ainda, para aqueles que reagiram mal a 'Explode', 'Primavera' que, como já disse, tem com ele uma relação bastante intensa, pode muito bem ser a prova de que 'Explode' merece ser ouvido com redobrada atenção.
E uma coisa é certa: os Gift estão no bom caminho, e não numa fase pobre ou comercial, pelo que, deles, justifica-se ter a imagem que temos desde 'Vinyl': que são uma das grandes bandas portuguesas, perfeitamente capaz de ombrear com tantas bandas por esse mundo fora.
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