segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Halloween de John Carpenter

GRANDES MATANÇAS

Por alguma razão, no cinema, entende-se que géneros como o horror, a fantasia e a ficção científica são géneros menores. E se a academia decide nomear para os Óscares filmes como 'Avatar', fica mais que claro que essas nomeações e até os galardões que arrecadou devem mais às insultuosas quantidades de dinheiro que esse filme rendeu, muito mais do que a uma possível mudança de valores da Academia. Mas suponho que é o que é preciso para que um filme desses géneros ditos menores tenha alguma visibilidade: chamar a atenção pela quantidade de FX e de dinheiro que se gastou para fazer um filme, arranjar um realizador conceituado para o dirigir e alguns nomes sonantes para o elenco. Pouco importa se o filme não tem assunto ou não serve mais propósito nenhum que o de justificar os efeitos especiais: gastou dinheiro, fez dinheiro, gente famosa teve parte nele, portanto, vale a pena ver e vale a pena dar-lhe prémios. Deve ser mais ou menos assim que as coisas funcionam na cada vez mais provinciana Hollywood.
Anos-luz à frente de toda essa orgânica que se orienta mais para o capital do que para a arte e a cultura estão alguns realizadores que têm sabido manter nestes géneros menores alguma qualidade e, pelo menos, um público mais ou menos fiel. Nestes géneros, como em todos os outros, não têm faltado filmes que, sendo bem-sucedidos na bilheteira, não deixam de ser verdadeiros fiascos artísticos.
Se hoje se pode falar de um verdadeiro mestre do horror, capaz de produzir filmes por onde passa todo um conseguimento artístico e ideológico e preocupado em trazer algo de novo ao género, ele é John Carpenter. Desde 1974, quando realizou o seu primeiro filme, 'Dark Star', Carpenter tem seguido uma carreira algo discreta, com filmes que, independentemente do sucesso comercial, se têm tornado filmes de culto dentro do cinema de horror, indubitavelmente influenciando uma nova geração de realizadores e também uma nova geração de espectadores que, decididamente, não terá um conhecimento satisfatório do género sem passar por filmes como 'The Fog' (1980), 'The Thing' (1982), 'Prince of Darkness' (1987), 'In The Mouth of Madness' (1995), 'Ghosts of Mars' (2001) ou 'Cigarette Burns' (2005). Cito estes filmes, de entre os vinte que Carpenter realizou, apenas como exemplos daquilo que o percurso deste realizador nos tem dado de um ponto de vista artístico. Evidentemente, cada um ocupa um lugar específico no legado de Carpenter, e se é verdade que um filme como 'The Fog' já foi alvo (E digo alvo no sentido em que lhe acertaram com um dardo.) de um remake, ainda não se compreendeu verdadeiramente a amplitude filosófica e analítica de outro como 'In The Mouth of Madness', um dos meus favoritos pessoais, senão o favorito mesmo.
 
 
Mas mesmo dentro dos filmes que mais se destaquem entre a filmografia de John Carpenter, 'Halloween' de 1978 ocupará um lugar sempre único. Muito mais do que por ter dado origem a uma longa saga (Com um total de oito filmes e dois remakes.), por comprovar a originalidade de Carpenter e por nos mostrar como, verdadeiramente, ele inovou o género e deu origem também a uma das tendências mais prolíferas dentro dele: o slasher, onde se contam alguns dos filmes mais incónicos de horror, mas também alguns dos piores e daqueles que estão ainda abaixo de se classificarem como os piores, não conseguindo classificar-se em nada.
Se havia um slasher antes de 'Halloween' seria 'The Texas Chainsaw Massacre' de Tobe Hoper de 1974, e ainda há algumas dúvidas, de resto pouco importantes, sobre se esse é um slasher. É um facto: toda a ideia do seral-killer que leva a cabo grandes matanças parte de Carpenter, antes de 'Friday the 13th' (1980) e antes de 'A Nightmare on Elm Street' (1982) portanto, muito antes de todos esses filhos bastarados que chegam ao cinema e a DVD todos os anos. Dos três, 'Halloween' é também, a meu ver, o melhor. Continua sendo um filme que o tempo não envelheceu (Como acontece com 'A Nightamente on Elm Street'.), que conserva a sua lógica e a sua estranheza (Como não acontece com 'Friday the 13th'.) e que, acima de tudo, é forte o suficiente para não ser destruído pelas sequelas, numerosas e quase todas terríveis a que foi condenado, o que não acontece com mais nenhum dos filmes, que hoje não conseguimos ver sem um grande esforço para nos distanciarmos da inépcia das sequelas.
Carpenter conta-nos uma história simples e que pouco recorre a explicações sobrenaturais: Na noite de Halloween de 1963, com seus anos apenas, Michael Myers mata a irmã Judith (Sandy Johnson) e é internado num hospital psiquiátrico. Quinze anos depois, na noite em que iria ser transferido para outro hospital, Michael consegue escapar, apesar das tentativas do seu psiquiatra, o dr. Sam Loomis (Donald Pleasence) e da enfermeira Marion Chambers (Nancy Stephens). No dia seguinte, dia de Halloween, Michael chega à sua terra-natal, Haddonfield.
O psiquiatra, que o seguira atentamente no hospital, prevendo que o paciente se desloca para Haddonfield, para lá se encaminha também, no sentido de prevenir a polícia e de conseguir trazê-lo de volta ao internamento.
Mas, à noite, Michael consegue assassinar duas raparigas e um rapaz, falhando apenas em matar a jovem Laurie Strode (Jamie Lee Curtis) que lhe consegue escapar.
O essencial do filme segue o sereno Michael que, durante o dia, observa as suas futuras vítimas e, de noite, leva a cabo os homicídios, conseguindo, no entanto, uma forte tensão ao intercalá-los com o percurso do dr. Loomis para encontrar Myers.
 
 
É um filme onde as matanças são poucas, no entanto perfeitamente eficazes em criar sensações de medo e de vulnerabilidade. Tanto o argumento, de Carpenter e de Sandy King, como a realização, são absolutamente prodigiosas na forma subtil, minimal e quase poética com que seguem o assassino e a sua estranha arte, a de matar. A começar pelo genérico perfeitamente simples: ele causa-nos um calafrio porque esperamos que vá acontecer alguma coisa e, no entanto, não acontece nada. Todo o filme, de resto, é feito com imensa contenção, praticamente sem sangue e sem efeitos especiais.
Mas talvez o mais significativo seja mesmo a figura de Michael Myers. Durante o seu tempo no asilo, entre os seis e os vinte e um anos, Michael esteve mergulhado num estado de completa catatonia, sem proferir uma palavra, no entanto, o seu psiquiatra está convencido de que ele é nem um ser humano, mas uma reencarnação do Mal. Aquilo que vemos escapar do asilo é um vulto vestido de branco, apenas.  E se na reencarnação do Mal esperávamos encontrar uma figura medonha, Carpenter também nisso nos desengana: no resto do filme, Michael é uma figura vestida com um fato-macaco preto e uma máscara branca, que se tornaria um ícone perene. E esta máscara consegue ser mais arrepiante do que qualquer cara trabalhada com efeitos de maquilhagem: é uma máscara branca, sem expressão qualquer, apenas com duas aberturas para os olhos, aberturas por onde nada se vislumbra,  um rosto como o de uma escultura grega clássica. Essas estátuas gregas representavam sempre deuses ou ideais de homem e Michael parece ser algo entre estas duas entidades: entre um deus e uma figura idealizada no sentido em que não é humana ou humanamente provável. Mais ainda, no branco do rosto não perpassam emoções nenhumas o que prolonga o estado catatónico de Michael, mesmo perante o acto extremo de matar, que se manifesta também nos movimentos serenos do assassino, que não corre, não tem movimentos violentos, não fala, não ameaça, não se regozija. É talvez esse vazio, essa ausência de emoções que o torna a tal personificação do Mal e que o torna temível aos olhos do espectador.
Como se disse, as matanças neste filme são poucas. Michael assassina, no total, cinco pessoas (Judith Myers em 1963 e 1978 um camionista que Michael mata para lhe ficar com o fato-macaco mais três amigos de Laurie Strode.) e um cão, ao longo de quinze anos. Mais não é preciso, porque não 'Halloween' não vive do número de homicídios, mas da forma como esses homicídios são perpetrados, porque Carpenter percebeu aquilo que a maioria dos realizadores não percebe: que aquilo que não é mostrado e que é apenas intuído, tangível ou pressentido, é definitvamente mais impactante, mais profundo e mais marcante do que qualquer homicídio realmente gore e agressivo. Um assassino como Fred Krueger, por exemplo, demonstra emoções (Por norma a sádica satisfação de matar alguém.) e, ainda que possamos não entender esses sentimentos, conseguimos nalguma coisa de muito básica identificar-nos com ele: como nós, ele sente, apenas sente coisas diferentes. Michael não sente. Tanto quanto este filme nos mostra, ele não tem qualquer prazer em matar, possivelmente não tem qualquer noção da diferença entre vida e morte, limita-se a recriar o cenário que mudou a sua vida.
A certa altura, o dr. Loomis fala do Halloween como sendo o aniversário de Myers. Efectivamente, essa é a noite em que ele nasce, em que começa a abandonar a sua condição humana e se converte num símbolo do Mal.


Carpenter filma o regresso de Michael com uma mestria que surpreende num realizador tão novo (Carpenter tinha em 1978 trinta anos e 'Halloween' era o terceiro filme que realizava.), criando cenas que se tornariam emblemáticas, sendo exemplo máximo a cena em que Jamie Lee Curtis se enconde no armário da roupa. Michael destroi as lâminas de madeira das portas lentamente com uma faca e depois irrompe pelo espaço estreito, criando uma sensação de asfixia cuja intensidade raramente se encontra noutros filmes, mesmo nos bons.
Por último, há que referir a capacidade de Carpenter de lidar com o som. Exímio compositor, Carpenter compreende perfeitamente não só o valor da música, como o valor do próprio som e é, portanto, capaz de criar os sustos e os momentos de suspense apenas utilizando determinados valores sonoros ou através da repetição da música do genérico, que se tornaria, também ela, emblemática.
Origem de uma saga que, estando longe de ser exemplar, também está longe de ser das piores, 'Halloween' é certamente uma das razões para que se reconsiderasse essa ideia de que o horror é um género cinematográfico menor. Indispensável também para que se perceba por que John Carpenter é um dos realizadores mais respeitados, apesar de ligado a um género pouco respeitado, este é um filme irrepetível (Shame on you Rob Zombie!), daqueles cuja existência, mesmo sendo de culto, será certamente perene.
 

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