segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A Mãe de um Rio


Em 1981, a Contexto editora publicava, com fotografias de Jorge Molder, um conto de Agustina Bessa-Luís, cujo sugestivo título era 'A Mãe de um Rio'. Três anos depois, reeditar-se-ia o segundo volume de contos de Agustina, 'A Brusca' (1971), numa versão aumentada, que contaria com 'A Mãe de um Rio'. Este conto, escrito de certa forma sob uma certa influência da literatura fantástica, fala-nos de uma mulher de vocação algo ancestral, de contornos religiosos, que vive desde o princípio do mundo numa pequena casa junto a um rio. Essa figura algo divina será visitada por Fisalina, uma rapariga invulgar da comunidade mais próxima do rio, que acabará por suceder à mãe original.
Agustina escreveu muito menos contos do que romances, mas os contos que escreve são de uma suprema força, comparável de certeza à dos romances. 'A Mãe de um Rio' é um exemplo de como, em poucas páginas, Agustina consegue criar uma história densa, que arrasta consigo uma subtil carga política, social e religiosa, cuja lucidez e invulgaridade se farão sentir ainda no leitor de hoje.
Aliás, como praticamente tudo aquilo que Agustina tem vindo a escrever desde 'Mundo Fechado', a novela com que se estreou em 1948. Apesar de obras como 'A Sibila' (1954), 'A Muralha' (1957), 'O Concerto dos Flamengos' (1994) ou a trilogia 'O Princípio da Incerteza' (2001-2003), Agustina foi sempre, como ela mesma dizia, mais conhecida do que lida, o que não se perdoa. A sua obra, intensa, árdua, irónica, é uma eterna tragicomédia cujo centro é o mais óbvio e também o mais difícil: o ser humano. E por isso a obra de Agustina, profundamente portuguesa, torna-se universal: porque universal é o génio que a move.
Já no seu último romance, 'A Ronda da Noite' (2006), Agustina fala-nos dum mutante, um estranho homem cuja inteligência aparta do resto da humanidade. Esse homem, contemplando uma reprodução da pintura de Rembrandt vai descobrindo, definindo e redifinindo o mundo, entretido na tentativa de compreender a eternidade, ou aquilo que, no mundo, se pode chamar eterno _maravilhado nessa tentativa que engloba por vezes o erro, mais do que obcecado por encontrar respostas certas, atitude própria de quem se recusa a estar numa situação de inferioridade perante a vida, e portanto não se leva muito a sério. Melhor retrato de Agustina dificilmente se faria.
Dessa contemplação, não de Rembrandt, mas do mundo, nasce a obra, que corre em direcção a um lugar mais vasto, mas sem se preocupar excessivamente em acelerar a chegada ao seu destino, como um rio. E portanto, hoje que Agustina completa 90 anos, que me seja permitido usar o título desse conto, e chamar à escritora a mãe de um rio, um rio que é a obra, que, creio eu, perfeitamente poderá correr enquanto durar o mundo.

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