sexta-feira, 12 de outubro de 2012

29 de Dezembro, Matosinhos [1998]

 
Duas? Três horas da madrugada?
A chuva tinha começado, tocada a vento. Depois, torrencial, acordara-a. Da janela, podia vê-la empoçar-se, junto dos passeios. Na paragem, o painel do reclame e o seu reflexo, vertical, tornava ilusória a profundidade do charco, como se tivesse a altura de um homem, mas que a luz dos faróis e os carros cortavam facilmente. Aquela ilusão impunha-lhe a terra, fofa, do cemitério. O que restaria dela? A linha tão pura, do nariz e das sobrancelhas? Na sua campa, nem o caixão lhe seria abrigo. A água estava a torná-la uma Ofélia de lama, os cabelos, que lhe enquadravam o rosto, como se estivesse apenas adormecido e não rígido e morto, teriam, agora, o visco de cobras.
Ouço a chuva a ensopar a terra e pesa-me no coração.
 
Luísa Dacosta
Um Olhar Naufragado (Diário II)
2008, ed. Asa
desenho de Tiago Manuel


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