segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O Corpo Espacejado



Perdia-se-lhe o corpo no deserto, que dentro dele aospoucos conquistava um espaço cada vez maior, novoscontornos, novas posições, e lhe envolvia os órgãos que,isolados nas areias, adquiriam uma reverberação particular.Ia-se de dia para dia espacejando. As várias partes de quesó por abstracção se chegava à noção de um todo come-çavam a afastar-se umas das outras, de forma que entreelas não tardou que espumejassem as marés e a própriavia-láctea principiasse a abrir caminho. A sua carne exer-cia aliás uma enigmática atracção sobre as estrelas, queem breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos dequem o não soubesse, como luminosas cicatrizes cujobrilho, transmutado em sangue, lentamente se esvaía. Elemais não era, nessas ocasiões, do que um morrão, nascinzas do qual, quase imperceptível, se podia no entantodetectar ainda a palpitação das vísceras, que a mais pe-quena alteração na direcção do vento era capaz de pôr denovo a funcionar. Resolveu então plastificar-se. Principiou pelas extremidades, pelos dedos das mãos e pelos pés,mas passado pouco tempo eram já os pulmões, os intes-nos e o coração o que minuciosamente ele embrulhavaem celofane, contra o qual as ondas produziam um ruído aterrador. A noite A noite veio de dentro, começou a surgir do interior de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro. Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros. Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que, apesar de a noite também se desprender das coisas, havia nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde, num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo a treva nasalada.




Luís Miguel Nava
O Céu Sobre As Entranhas
1984- edições limiar


imagem: Francis Bacon

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