Um
dos subgéneros do rock, que sofre influências directas do
punk, do grunge e de algum metal, tem sido
particularmente prolífero nos últimos anos. O que este subgénero
parece compreender melhor é uma energia frenética associada à
revolta e à tristeza. É uma espécie de avesso da
realidade, uma versão interiorizada das situações mais penosas do
dia-a-dia, o lado da vontade, em oposição ao lado do comportamento
correcto. The greatest rock creations have come out of lust and
agression, diz-nos Camille Paglia*. Esta variante específica do rock
parece estar de acordo. Daí que seja ruidosa e alta, que assuma uma certa guturalidade e uma
visceralidade muito contrárias àquilo que seria socialmente
tolerável e aceitável. Esta é a música pré-civilizada, a expressão sorridente e trocista do que subsiste da natureza do ser humano, o pièce-de-resistence das ideias de Hobbes, Nietzsche, Freud e da própria Paglia sobre natureza e cultura. Nessa regressão, o que nos é
devolvido é mais real e mais palpável do que todas as concepções
sociais que nos possam ser incutidas. Aqui não há espaço para a
restrição e a imposição civilizacional. As bandas que fazem este
tipo de música dão-nos a besta humana libertada finalmente. A
energia fortíssima que atingem é, por isso, uma energia adversária,
combativa e revolucionária, sem a qual nenhuma sociedade deveria
existir.
É
esse o caso da banda belga The Black Box Revelation (BBR), originária
da cidade flamenga de Dilbeek. Desde 2007, a dupla formada por Jan
Paternoster (voz e guitarra) e Dries Van Dijk (bateria) lançou dois
EP, 'Introducing The Black Box Revelation' (2007) e 'Shiver of Joy'
(2011) e três álbuns, 'Set your head on fire' (2007), 'Silver
threats' (2010) e 'My perception' (2011).
Num
registo mais agressivo e descomplexado, com referências ao rock
psicadélico e ao blues, os BBR trazem qualquer coisa que por
vezes relembra vagamente a fase inicial dos Pearl Jam, mas absorve
também Jimi Hendrix, os White Stripes (também eles constituídos por
um vocalista/guitarrista e uma baterista), os Black Lab ou mesmo os
Pink Floyd ou ainda a rouquidão pesada de uma Janis Joplin. Este
tipo de mistura não é estranha àquilo que fazem, neste momento,
outras bandas, começando pelos Black Keys ou os We are the ocean.
Mas o que os BBR têm que parece não ser tão claro noutras bandas
(e particularmente nos sobrevalorizados Black Keys) é a capacidade
de recriar toda uma atmosfera em que a restrição e a rejeição
veemente dessa restrição soam de uma forma bastante intensa. Os BBR
têm pouco dos Nirvana, mas partilham com a banda de Kurt Cobain um
certo ambiente ao qual o ouvinte é remetido. Ouvindo as canções
ora enérgicas e explosivas (como I think I like you,
o magistral High on a wire, Cold cold hands, Set your head
on fire, Run wild ou Madhouse)
ora tensas e contemplativas (2 young boys, Sleep while
moving ou Never alone
always together) não é difícil
colocarmo-nos a nós mesmos numa pequena cidade-dormitório flamenga
à saída de Bruxelas, um lugar pequeno cuja potencial calma é
contrabalançada por um peso excessivo sobre a liberdade dos
indivíduos.
A música dos BBR parece emergir da necessidade de
expressão, da necessidade de movimento. Os solos de guitarra
eléctrica que pontuam grande parte das canções são como derivas,
agitações interiores que funcionam como um terramoto na quietude de
onde surgem, um teste aos limites da consciência. A alternância, em todos os álbuns, entre canções de
rock puro e duro e
outras mais melódicas e pausadas mantém presente uma dicotomia que
cria bissectrizes ou mesmo oposições: eu vs. o mundo;
explosividade vs. contenção; acção vs. meditação.
Há,
por isso, uma certa espessura, uma certa tridimensionalidade na
música dos BBR, que parece ser uma forma de sinceridade mais do que
uma premeditação. Nas letras, essa ideia confirma-se. Muitas delas
são marcadas por uma vontade de evasão sem destino (High
on a wire, Sleep while moving)
justificada por um ressentimento quanto ao lugar onde se existe
(Sealed with thorns, Shadowman, Our town has changed for
years) ou
por um romantismo que, sendo desencantado, não é inteiramente
derrotista (Love Kicks, I think I like you, Bitter).
Jan Paternoster, como autor de letras, várias vezes fica a dever
pouco a poetas contemporâneos: pelo contrário, as suas letras são
imaginosas sem esquecerem a escrita de canções clássicas para o
género.
Há
ainda que assinalar que, de álbum para álbum, os BBR têem-se
mostrado capazes de amadurecer e de equilibrar de uma forma mais
subtil e densa as duas linhas de força que se encontravam mais
polarizadas em 'Set your head on fire'. Por outro lado, o LP mais
recente, 'My perception' aposta também numa vertente um pouco mais
experimental, liga ao rock progressivo, o que é bastante claro no
som estranho de 2 young boys ou
na energia estranhamente sensual e sinistra de Skin.
A
banda portuguesa Ash is a Robot (AIAR) recebe algumas influências
que podemos também ligar ao punk
e ao metal. Reviver
estas tendências, como aprendemos com os Green Day, é
uma ideia que fica gasta rapidamente. No caso dos AIAR, no entanto, a
fusão entre o punk
(ou pós-punk) de
bandas como os Mars Volta, os Led Zeppelin, os Sonich Youth ou os Big
Black, e o rock
musculado dos Nine Inch Nails (sem a electrónica), dos Mastodon, de
Marilyn Manson ou dos Tool, é tão extrema que se torna
fantasmática. Há qualquer coisa muito reconhecível, muito
familiar, na música dos AIAR, ao mesmo tempo que se torna
extremamente difícil explicitamente saber de onde vem essa
familiaridade, porque o som desta banda soa verdadeiramente puro e,
paradoxalmente, novo.
Originária
de Setúbal, a banda formada por Cláudio Aníbal (voz), Francisco
Caetano (voz e guitarra), Renato Sousa (voz e guitarra), Bernardo
Pereira (baixo) e Gonçalo Santos (bateria) editou nos últimos dois
anos vários singles
que por fim convergiram no álbum 'Ash is a robot' (2013).
Aquilo
que ouvimos nos AIAR é menos atmosférico e mais intimista. O
recurso ao metal
traz consigo os resíduos de uma espécie de força natural demoníaca (que encontra na voz de Cláudio Aníbal uma expressão
bastante perfeita) que é contraposta não pela complexidade barroca
do gothic ou mesmo do
black metal, mas antes
por uma sonoridade mais suja que parece mais improvisada e mais
linear. Sendo uma banda em que encontramos uma certa maturidade
(relembre-se que quase todos os elementos da banda passaram por
outros projectos previamente), o formato que por vezes nos remete
para o rock de garagem
não deixa de soar como uma auto-interpretação bastante irónica.
Se
Coraline ou Karma
never sleeps se fazem valer de
um esquema aparentemente arbitrário entre a raiva e a meditação em
voz alta, Philophobia (nas
suas duas partes) ou Ariadne são
exemplos de canções que alternam entre uma explosividade sólida e
uma guturalidade torturada, como se Cthulhu tivesse conhecido a linguagem.
Disse
acima que a música dos AIAR é menos atmosférica do que intimista,
mas ela pressupõe, como não poderia deixar de ser, um determinado
ambiente, que é, na música, mais sugerido do que declarado (apesar
de ser confirmado pelas letras, particularmente a de Karma
never sleeps). Numa expressão
tão descontrolada, é impossível não imaginarmos uma espécie de
raiva a partir da qual floresce a raiva que caracteriza a
música. Essa atmosfera é possivelmente muito própria das cidades
próximas de grandes centros urbanos ou mesmo de capitais. Em
Portugal, Lisboa nunca foi capaz de criar uma banda rock
verdadeiramente densa. O facto dos AIAR virem de Setúbal, cidade de
uma personalidade muito marcada, associada a todo um contexto
político, laboral e social de resistência muito stand
your ground, talvez explique um
pouco aquilo que ouvimos na música da banda. As próprias letras não
passam ao lado de uma consciência politizada (mais do que
declaradamente política), que é notória em Something
something dark side ou em Karma
never sleeps, e de uma
insubmissão que é a única saída lógica para a própria estrutura
das canções e do esquema instrumental, todo ele desmedido e
fugidio.
(Parte 4: ler aqui)
(Parte 4: ler aqui)
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