Um
pensador desiludido e sem esperança como E.M. Cioran pôde
reconhecer com bastante acuidade que [n]ous devons la
quasi-totalité de nos découvertes à nos violences, à
l'exacerbation de notre déséquilibre*.
Ao reconhecer a violência como
móbil da actividade humana (e consequentemente, da actividade
criativa), Cioran atribui-lhe um valor edificante que, em muito, não
pode ser negado. Sem discórdia, não há evolução nem revolução.
O rock reconhece esta
violência. O que ele pressupõe é uma experiência profunda do
mundo, que é depois transformada em música. Por isso as grandes
canções rock se
fazem a partir da agressividade, da raiva, da violência, da
angústia, da luxúria: trata-se de reconhecer que vamos à
descoberta do mundo através de uma experiência aprofundada da nossa
violência.
As
páginas do ensaio Penser contre soi
podem constituir uma explicação bizarramente verosímil da
estrutura básica do rock
enquanto género. A expressão extrema pressupõe uma experiência
extrema do mundo, uma pesquisa por aquilo que de mais elementar e
incontrolável existe na natureza e na consciência humana. Ao ler
certas páginas mais angustiantemente realistas de Cioran, não é
difícil imaginá-lo a ouvir uma banda como as referidas acima.
Aliás, estando em causa essa experiência violenta e derradeira da
consciência, não seria estranho dizer que Cioran, bem como
Nietzsche, Sade, Kafka, Artaud, Lovecraft, Edvard Munch, Hans
Bellmer, Michelangelo ou Caravaggio, se vivessem nos dias de hoje e
fossem músicos, estariam provavelmente numa banda de rock.
Os seus inquéritos aos estados últimos da consciência deixam-nos
estranhamente próximos do trabalho dos melhores músicos rock.
Porque esse inquérito é o que o rock
tem de mais elementar, e é esse também o seu maior perigo.
Encontramos em Cioran: La formule de l'enfer? C'est dans
cette forme de révolte et de haine qu'il faut la chercher, dans le
supplice de l'orgueil renversé, dans cette sensation d'être une
térrible quantité
négligeable, dans les affres du «je», de ce «je» par quoi
commence notre fin**.
De
acordo com isto, o que fica claro é que não outra saída para a
experiência realista e profunda do mundo senão a própria
violência. Mas, nessa violência, esconde-se igualmente a nossa
aniquilação, a possibilidade de encontrar o inferno. O rock
reconhece sempre o risco da anulação do próprio «eu», que é o
perigo de ir longe demais no conhecimento do mundo e de si mesmo, e
de ser incapaz quer de regressar a um estado de inocência ignorante,
quer de sobreviver àquilo que encontrou.
Mas
nesse sentido, nenhum género tem uma valência tão filosófica e
antropológica quanto o monosprezado rock. Só ouvido «de fora»,
ou então pela estirpe exclusivíssima e mui cultivada dos nossos intelectuais da alta cultura (altíssima até!) o rock parecer um
género de 'gente a gritar com guitarras eléctricas estridentes
atrás'.
Perante
qualquer canção de uma das cinco bandas de que falei, corremos o risco
de ver ruir a barreira que nos separa da realidade e de perdermos a
ilusão de um mundo que é ainda capaz de se equilibrar. Há algo de
sagrado na ilusão que nos mantém sãos. Sãos, mesmo que iludidos:
este podia ser o lema da nossa hipermodernidade (como lhe chama Lipovetsky) .
Mas,
utilizando um verso de Coraline dos
Ash is a Robot, we are crashing waves on sacred ground. E
essa coragem não será necessariamente extensível a todos. Por
outro lado, assume Cioran, [s]euls nos séduisent les
espirits qui se sont détruits pour avoir voulu donner un sens à
leur vie***.
Porque só com esses aprendemos
a procurar (mesmo que não encontremos) uma saída, ou a tentar
diminuir a distância entre essa sagrada ilusão e a temível
realidade.
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*Cioran,
E.M. (1956). La tentation d'exister. Ed.
Gallimard, Paris, 2011. p.9
**Cioran,
E.M. (1956). op.cit. p.22
***Cioran,
E.M. (1956). op.cit. p.24
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