"Começa Uma Vida" (ed. Seara Nova, 1940, reed. Presença, 1991) é, de certa forma, uma espécie de primeiro romance de Irene Lisboa. Fora os "13 Contarelos" (ed. autora, 1936), Irene publicara antes "Um Dia e Outro Dia- Diário de Uma Mulher" (ed Seara Nova, 1937) e "Outono Havias de Vir- Latente e Triste" (ed Seara Nova, 1938)- ambos reeditados em 1990 pela Presença no volume "Poesia I"- livros de poemas em verso e ainda a famosa "Solidão" (ed. Seara Nova, 1939, reed. Presença, 1991) que, ainda que leve de subtítulo "Notas do Punho de Uma Mulher" e tendo várias vezes em bibliografias elaboradas pela autora sido descrito como "notas e críticas", me parece ainda dentro de um registo muito poético. É discutível se "Solidão" pode ou não ser considerado um conjunto de poemas em prosa, e se o argumento contra pudesse ser o facto de nele encontrarmos frequentemente um registo diarístico, relembre-se o subtítulo do primeiro livro de poemas para percebermos que, dentro do estilo de Irene Lisboa, esse argumento se torna um tanto inválido.
"Começa Uma Vida" inicia com uma pequena introdução com a definição de "novela" em epígrafe. É de concluir que em definitivo Irene Lisboa pretendia que este livro fosse uma novela. Se com o tempo a distinção entre romance e novela foi desaparecendo, a verdade é que, considerando este livro à luz do ano em que foi lançado, ele representa mesmo uma novela, uma narrativa.
"Solidão" seguia mais o sabor do pensamento, da recordação, ao passo que "Começa Uma Vida" segue uma estrutura definida em termos cronológicos. E repare-se ainda que, reforçando a ideia de estrutura, "Começa Uma Vida" inicia com um texto sobre a madrinha da narradora, que será a própria Irene Lisboa, e termina com um texto sobre a morte da madrinha, ou seja, de certa forma, em termos estruturais, a madrinha é a personagem que mais define este livro.
Esta comparação entre "Solidão" e "Começa Uma Vida" poderá, de certa forma, ser inútil, mas faço-a com o propósito de justificar a minha ideia de que o segundo constituirá uma "novela" no sentido específico do termo, ao passo que o primeiro tem mais a ver com o registo do poema em prosa, evidentemente diferente do poema em verso por questões outras que a forma.
Centrando-me agora em "Começa Uma Vida", nele não encontramos a novela que é habitual encontrarmos (Salvo em questões de estrutura que acima expus.). Sem qualquer tipo de demérito, "Começa Uma Vida" não é uma história, no sentido em que não estamos perante um enredo que contém uma intriga e a sua resolução como "clímax" final. De facto, é raro encontrarmos em Irene Lisboa uma escrita que esteja dentro das convenções. Como já noutros textos advoguei, será esse o motivo por que a escrita de Irene se mantém tão extremamente actual. Este livro compreende a evocação de uma série de memórias, organizadas cronologicamente, que nos dão uma visão privilegiada da biografia da autora. É de notar a vontade explícita desta escrita obedecer à realidade, sem acrescentar nada.
Seria injusto, no entanto, dizer que "Começa Uma Vida" se esgota na descrição de memórias: note-se que existe a designação do livro de memórias, mas essa designação não se aplica, de todo, a este livro. Irene assume a distância que a separa das pessoas e dos acontecimentos que narra, e aí reside a sua inteligência: na capacidade de analisar, de chegar a uma interpretação de tudo. E essa interpretação começa no lado pessoal, mas passa também para o lado social. No fundo, aquilo que Irene Lisboa tem de interessante, e ainda mais para a sua época em que tanta prosa hoje nos soa frouxa ou pelo menos desactualizada, é a sua capacidade de cruamente falar do real. Não encontramos aqui artifícios nem dissimulação, mas precisamente um olhar livre sobre as pessoas e os acontecimentos: livre, no sentido em que não há qualquer tipo de preconceito ou de pré-categorização: Irene observa primeiro e analisa depois, ao passo que frequentemente encontramos na literatura a atitude contrária, que é a vontade de fazer coincidir determinada pessoa a uma categoria. Por isso em "Começa Uma Vida" não existem personagens-tipo, mas personagens que, justificadamente, têm determinado lugar.
Outra característica que gostava de apontar é a dualidade de visão que se nota no discurso da narradora: ele divide-se entre a visão cueva, a visão que a narradora teria de tudo na sua infância, e depois a visão presente, da idade adulta, que se umas vezes confirma a primeira, outras naturalmente a desmente ou, pelo menos, reformula.
Não sou também um apologista da separação ente literatura feminina e masculina, porque penso que tal distinção é obsoleta- senão completamente irreal- no entanto, penso ser de referir o facto de Irene Lisboa ser uma mulher. Não por querer fazer comparações, mas para apontar uma série de limitações que autora sofreria à altura: "Começa Uma Vida" é assinado como João Falco, pseudónimo que a autora manteve até este livro, um pseudónimo masculino. De certa maneira, seria impossível no início dos anos 40 uma mulher assinar textos desta natureza, porque não raras vezes se movimenta no sentido dos "assuntos dos homens": a análise muitas vezes se prende com a parte social, como acima referi, e essa leitura das coisas é essencialmente política; além disso a autora expõe de forma clara o universo do comportamento sexual masculino, na pessoa do pai, referindo os vários casos paralelos ao matrimónio e todos os problemas aí originados- questões de paternidade ilegítima, de heranças, etc. Num tempo em que o que se queria de uma mulher escritora era o louvor do macho- sina a que tão poucas escaparam- falar disto não era, de todo, conveniente. Não esqueçamos também que os motivos por que Irene Lisboa foi reformada pelo Estado do ensino não são, ainda hoje, claros.
E por estas e outras razões é absolutamente correcto afirmar que Irene Lisboa estava a anos-luz do seu tempo. A força essencial deste romance é realmente a verdade com que ele é escrito, a sua profundíssima humanidade; mas não se pode deixar de parte o facto de ele poder ter sido escrito nos nossos dias.
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