"Lillias Fraser" é um dos romances mais viciantes que tenho lido nos últimos tempos, tanto que o li em dois dias, completamente incapaz de parar.
Hélia Correia começou o seu percurso no campo da novela, com narrativas curtas e imaginosas como "O Separar das Águas" (1981), "Montedemo" (1984) ou "Villa Celeste- Novela Ingénua" (1985). "Lillias Fraser", de 2001 marca já como definitivo o terreno do romance como o mais favorável à escrita poética e desenvolta de Hélia Correia, que, já que estamos no assunto, lançou recentemente "Adoecer" (2010), recriação da biografia de Elishabeth Siddal.
"Lillias Fraser" funciona dentro de uma dinâmica que já rendeu bons frutos em Portugal, que é a recriação de personagens, umas vezes mais outras vezes menos célebres da História, mas que são muito ricas no que toca ao recriar de um tempo e dos seus espaços e das suas situações política, social, cultural, etc. A título de exemplos, relembro alguns romances de Agustina Bessa-Luís, como "O Mistério da Légua da Póvoa" (Sobre Maria Adelaide Coelho da Cunha.) ou "Fanny Owen" (Onde encontramos Camilo Castelo Branco.); "O Ano da Morte de Ricardo Reis" ou "Memorial do Convento" (Onde encontramos D. João V.); "O Mal" de Paulo José Miranda (Sobre Camilo Pessanha.) ou o romance já anunciado que Maria Teresa Horta lançará em breve, "As Luzes de Leonor" (Sobre a Marquesa de Alorna.).
No caso de "Lillias Fraser", a protagonista que dá nome ao romance não é uma figura histórica, no entanto elas não faltam no romance. Não se trata de um romance histórico, ou pelo menos de um romance histórico comum: Lillias não representa uma ponte para o tempo em que a acção se desenrola (entre a Escócia em 1746 e Portugal em 1762.), o tempo, o século XVIII, é que é uma ponte para perceber Lillias. E uma ponte bem construída: na descrição deste tempo encontramos uma série de factos históricos, como a Batalha de Culloden, ou o Terramoto de Lisboa, que Hélia Correia sabe explorar sem excessos, encontramos personagens da nobreza e, e é isso o mais interessante, toda uma análise que não se coíbe de se assumir nos nossos dias: é um facto que lemos sobre o século XVIII mas lemos sobre ele na actualidade. Hélia Correia não procura a análise objectiva, escolhe por vezes pontos de vista pouco usuais, de certa forma intimamente liagdos com as mentalidades populares, com ocultismos, explicações que de alguma forma se prendem com toda uma mitologia popular e nada científica; e é também de notar que a autora sabe como não ser excessivamente historicista, escolhendo muitas vezes um caminho de ironia nas análises e assumindo, em algumas partes, haver factos, histórias, que é impossível serem sabidas. Daí que diga que este não é o comum romance histórico, porque tem muito de uma visão pessoal, de muito interpretativo, em detrimento de um relato mais austero.
Outro aspecto que já tinha realçado quando aqui falei de livros de Hélia Correia é a questão da linguagem que, nos seus livros, é toda uma construção que é tão importante na percepção da história como aquilo que essa linguagem narra. É uma linguagem pouco dada a barroquismos, mas cheia de pequenas subtilezas, que por norma compreendem uma adaptação da linguagem mais arcaica, aquela que, à primeira vista, poderia ser confundida com uma linguagem antiquada ou vernácula.
"Lillias Fraser" é a história de Lillias Fraser, menina escocesa, filha e irmã de rebeldes de guerra que se insurgiram contra os ingleses, que tinha o poder de antever a morte das pessoas quando esta se aproximava delas, de ver o futuro, a chamada "terceira visão". A este poder devemos o arranque do livro, um arranque fortíssimo, em que Lillias prevê a violenta morte de Tom Fraser, o seu pai. Guiada pelo espírito da mãe, Lillias encontra refúgio junto de Anna MacIntosh, e andará sempre entre casas diferentes até que, a pedido de um padre, é levada para fora do Reino Unido. A Portugal chega de barco em 1751. Acaba por ser entregue ao Convento de Santa Brígida, onde habitavam as freiras católicas inglesas (Minoria de um povo protestante anglicano, relembre-se.) de onde acaba por fugir, por não suportar as visões que lhe mostram o convento em ruínas. A meio da sua fuga pela floresta, dá-se o terramoto. Nessas circunstâncias conhece Cilícia que a adoptará mesmo depois do frenesi que o terramoto origina. Um pouco como as várias mulheres que vão estando à volta de Lillias, Cilícia acaba por perceber os poderes de Lillias e pede-lhe que os use para trazer o seu filho para casa. Jayme acaba por aparecer, ainda que seja um tanto indefinido o papel que Lillias teve nesse regresso. Paixões, partidas, uma gravidez da menina, deserção e uma nova guerra são os assuntos que tomam parte no destino de Lillias e de Portugal.
Mas Lillias é a personagem que se quer seguir, muito mais do que propriamente os destinos do país. É que Lillias Fraser questiona todo o tipo de conceitos e coloca toda a sorte de questões. A primeira e eventualmente a mais interessante é a da relação da identidade de um indivíduo com o seu passado: Lillias é obrigada, ainda na Escócia a ocultar o seu aplido verdadeiro e ao longo da história é chamada Lillias MacLean e mais tarde Lília Peres; quando por fim revela o seu verdadeiro aplido, já em Portugal, toda a sua vida é virada do avesso, pois o nome Fraser, banido, é lembrado ainda entre os soldados ingleses. Outra questão é a da possibilidade de prever a morte: ainda que primeiramente essa capacidade seja uma benesse para Lillias pois, depois de prever a morte de Tom Fraser consegue ela mesma salvar-se da morte; a verdade é que no desenrolar do romance, Lillias começa a ser prejudicada por esse dom, porque as mulheres, dadas a estranhas intuições, o entendem e acabam por se sentir ameaçadas por ele, achando, como seria de esperar, que é um poder conferido pelos demónios, e uma heresia, etc, etc, etc; e a própria Lillias, quando se apaixona por Jayme evita olhá-lo para não lhe prever a morte.
Aqui mesmo, onde muitos poderiam encontrar uma justificada semelhança com o "Memorial do Convento" de José Saramago, Hélia Correia cruza subtilmente Blimunda Sete-Sóis com Lillias Fraser, quando a primeira decide cuidar da gravidez de Lillias. E, quando comparam os seus dons, Blimunda conclui "Então sou mais feliz do que tu és" (pag. 280).
O final do romance é ele mesmo uma tremeda ironia que confirma a ideia de que o narrador, que podemos assumir, pelo segundo capítulo da primeira parte ser a própria Hélia Correia, é uma "figura" que sabe umas coisas e outras não, o que lhe permite conduzir desta forma mirabolante a história e até questionar ou rebater a História: "Foi por um triz que o Carniceiro da Escócia não se sentou no trono português" lemos, ao mesmo tempo que sabemos que apesar de não ter entrado pelo trono, não quer dizer que não tenha entrado em Portugal...
A "Lillias Fraser" seguiu-se um silêncio de nove anos, que "Adoecer" veio quebrar em Fevereiro deste ano. Se o novo romance tiver pelo menos uma parte da força do de 2001, estou certo de que será já um grande romance.
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