sexta-feira, 23 de julho de 2010

Le Temps Qui Reste de François Ozon

O CARÁCTER PERFEITO DA MORTE
Então, numa manhã a Morte mostrou-me o seu carácter perfeito
Isabel de Sá


Foi-me inevitável pensar em poesia ao ver, finalmente, “Le Temps Qui Reste” (2005) de François Ozon. Vejo-o anos já depois da estreia e do fecho da editora responsável pelos filmes de Ozon em Portugal: sim é isso mesmo, actualmente é impossível encontrar as versões legendadas em português dos filmes do realizador de “Sous Le Sand” e “8 Femmes”, que aliás formam com este filme uma espécie de trilogia sobre a morte, analisada de distintos pontos de vista.
Dado que não tinha nenhuma forma de ver o filme por meios legais, tive que fazê-lo através de outros menos ortodoxos. Já toda a gente percebeu que fiz, ou melhor, me fizeram o download do filme.
Mas, e era por aí que este texto ia iniciar-se com o paralelismo entre a poesia e esta brutalíssima obra de Fraçois Ozon. Ao vê-lo são inegáveis as imagens que descobrem a verdadeira poesia nas imagens desta história tão triste.





Romain (Melvil Poupaud), fotógrafo profissional aos 30 anos recebe, depois de um desmaio durante uma sessão fotográfica, o diagnóstico de um cancro, em estado avançado e com muitíssimas possibilidades do tratamento não resultar, uma vez que grande parte dos órgãos estão já afectados. Tem três meses de vida.
“Le Temps Qui Reste” é portanto o atravessar dessa condenação. Inicialmente, observamo-lo numa espécie de auto-isolamento penoso: insulta a irmã grávida, agride o namorado, sai de casa.


Parte depois para visitar a avó Laura (Jeanne Moreau), a única a quem contará a verdade. Pelo caminho conhece Jany (Valeria Bruni Tedeschi), empregada de café, que será a maior reviravolta na história, quando lhe conta que o marido é estéril, perguntado a Romain se ele estaria disposto a ser pai do filho do casal. A resposta fica em suspenso.
Quando Romain regressa a casa, Sasha (Christian Sengewald), o namorado já a deixara. Cada vez mais sozinho, Romain procura espaços comuns, ligados à infância e ao passado.
Um dos elementos que mais me leva a ver este filme como um poema filmado é precisamente a força da tristeza e do desespero- e Melvil Poupaud mostra-se nisso muito competente: não precisa de falar muito nem de se movimentar-se particularmente: as suas expressões faciais, o realismo extremo dos seus choros constantes são suficientes para dar “o murro no estômago” que, a meu ver, demarca o filme da obra de arte que “Le Temps Qui Reste” sem sombra de dúvida é. Vemos um ser humano efectivamente a confrontar-se com a sua morte e com a forma como decidiu encará-la: o silêncio.
Vê-mo-lo caminhar pela cidade, chorando desesperadamente, e mais desesperadamente ainda fotografando pequenos detalhes, como se recolhesse imagens que levasse para a morte, ainda que sabendo que tal será impossível.
A questão do choro parece-me também digna de grande referência: vemos Melvil Poupaud chorar em inúmeras cenas, sem que no entanto seja excessivo. O curioso é ver como esse choro se vai alterando, e através dele, vamos recebendo sinais de que a sua relação agora tão estreita com a morte, assunto afinal fulcral neste filme, se vai alterando. Esse é um dos aspectos que considero mais importantes em “Le Temps Qui Reste”: a sua densíssima poética, o seu tom profundamente elegíaco e desesperante. E repare-se que no filme não há grandes diálogos, e dos que há, poucos têm realmente um substrato importante para o que vemos: é um filme construído a partir do poder ilimitado da imagem, de um conteúdo que dispensa palavras. Ainda que tenha falado em poesia a propósito deste filme, e mantenho que me parece um poema filmado, da poesia refiro-me ao que possa ter de pungente e marcante, e menos das palavras que a escrever. “Le Temps Qui Reste”, poema ou não, não poderia ser um livro: necessita destas imagens, só com elas pode fazer sentido. É um dos casos em que uma imagem definitivamente vale mais do que mil palavras, porque nem toda a mestria de escrita deste mundo poderia produzir um efeito tão forte como estes planos de Ozon.
Ao reencontrar o ex-namorado, Romain pede-lhe que lhe pouse a mão no peito e diz-lhe

“Tu sens mon coeur… il bat encore”

e esse será provavelmente o diálogo mais decisivo de todo o filme: é o momento em que Roman decide aceder ao pedido de Jany. Poderá parecer um cliché a ideia do moribundo que deixa um filho, mas a verdade é que a forma como acontece consegue mesmo ser surpreendente e surpreendentemente triste, quando o vemos preso entre um sorriso e uma dor atroz, sabendo que e mulher deitada entre o seu marido e ele irão ser os pais do seu filho que ele nem irá conhecer.
Não se pode dizer que não é um filme angustiante, porque o é, profundamente. Mas é também de uma naturalidade que torna quase impossível ao espectador não se contagiar daquela angústia, e é aí que Ozon é verdadeiramente genial: é na sua capacidade de nos contaminar com o drama que nos coloca à frente: só há obra de arte onde há uma íntima agressão.
Somos nós que também nos confrontamos com a nossa morte que também está pronta a acontecer.
E o mais interessante é que, se acompanharmos o filme atentamente, vamos percebendo que Romain aceitou a sua morte, por perceber-lhe o “carácter perfeito, isento de mesquinhez” de que Isabel de Sá fala no seu poema inaugural.
Depois de uma visão mais parodística da morte com “8 Femmes”, François Ozon enveredou pelo lado mais realista da morte. E o resultado nunca poderia ter sido melhor, nem mais pungente, nem mais humano.
Um filme brutal e violento nos vários sentidos das palavras. Às pessoas mais susceptíveis à angústia só recomendo que sejam um pouco fortes, porque “Le Temps Qui Reste” merece o esforço. Definitivamente.

2 comentários:

Graça Martins disse...

mais uma vez é a partir da tua observação sentida que fico desejosa de ver este filme. Deste realizador conheço 8 FEMMES e SWIMMING POOL com uma das minhas actrizes preferidas, a icónica CHARLOTTE RAMPLING. alás devias gostar deste filme, se não o conheces ainda. Foca a temporada de uma escritora que vai para uma casa com piscina,cedida pelo seu editor, para terminar um romance, e atravessada pela VIDA,fica impedida do seu sossego. Talvez não saibas mas FRANÇOIS OZON é comparado a PATRICE CHÈREAU nesse lado imtimista que ambos exploram. Mas regressemos ao filme. Uma metáfora. Olhar a morte é um pouco como se confrontar a si mesmo como criança. As várias mortes que o destino nos impõe em vida, e que em função do nosso terreno emocional e registo biográfico que transportamos, nos prepara para esse confronto final - a nossa morte. Mas claro, palavras são palavras e não é fácil com 30 anos esse encontro. Fico à espera que me emprestes o filme...

Graça Martins disse...

esquecia-me, o cartaz é belíssimo. Um corpo em plena pujança com a vida a terminar e colado a um bébé que vai iniciar uma vida. Outra metáfora.