Maria Gabriela Llansol não é uma autora de fácil leitura. Seria interessante quantificar o trabalho crítico já desenvolvido sobre os seus livros (1). Não me presto a este trabalho, mas as críticas e ensaios com que ocasionalmente me tenho cruzado, mostram que as leituras possíveis de Llansol são tantas quantos leitores houver, ou até mais, porque o mesmo leitor não consegue ter apenas uma leitura desta obra. Acontece assim com toda a grande literatura, mas a natureza do texto Llansoliano é particularmente incitante a esta situação.
Falecida a autora em 2008, livros inéditos continuam e, esperemos, continuarão, a ser publicados. É importante que assim seja, pois cada novo livro é mais uma porta para um universo que pode ser fechado, mas não é blindado, e nele podemos penetrar através da leitura.
O projecto da série de Livros de Horas foi o último da autora, sendo o primeiro destes, 'Uma Data em Cada Mão' (2009), o livro pensado por Llansol para suceder a 'Os Cantores de Leitura' (2007).
O presente 'Um Arco Singular: Livro de Horas II' é pois o segundo volume desta série, cobrindo os anos de 1977 e 1978, passados em Jodoigne.
É com bastante pertinência que João Barrento e Maria Etelvina Santos assinalam na introdução algumas distinções entre os dois Livros de Horas até agora publicados. Por um lado predominam registos tendencialmente mais pessoais (por vezes mesmo íntimos) do que no primeiro volume. (...) Por outro lado, põe-se mais à vista a oficina de Llansol, sobretudo no que se refere ao trabalho de entrosamento da experiência com a narração e a escrita (pags 14,15).
Dois livros se encontram aqui em formação: 'A Restante Vida' (1982) e 'Na Casa de Julho e Agosto' (1984), segundo e terceiro volumes da trilogia Geografia de Rebeldes.
'Um Arco Singular' será, e aqui retorno à ideia da abertura do mundo fechado, uma excelente leitura a fazer paralelamente à destes livros, em particular de 'Na Casa de Julho e Agosto'. Aqui encontramos diversos registos das pesquisas de Llansol sobre as beguinas e a alquimia -dois universos que em muito definem o livro de 1984 -e também a aproximação, que se dá a nível de uma intimidade reflexiva, às personagens que integram os livros -caso de Luís M., das Damas do Amor Completo e de Hadewijch. A informação que temos aqui sobre estes assuntos menos comuns, pelo menos na cultura portuguesa, e as aproximações de Llansol às suas figuras podem, portante, ser boas formas de acedermos à génese dos livros que a escritora desenvolvia à data, e também uma forma de perceber a sua origem -o momento em que estas figuras e estes universos chegam à escrita de Maria Gabriela Llansol (2).
Os processos são complexos e por vezes demorados, mas -por isso mesmo -extremamente fiéis ao que terá sido a dinâmica de escrita dos livros. Tão fiéis que, não raras vezes, a fulgurância destes escritos diarísticos é capaz de nos surpreender, de nos comover.
É aqui que entra outra característica que me parece crucial nestes Livros de Horas e que é o seu valor enquanto texto isolado. Ou seja, se bem que a leitura de 'Um Arco Singular' seja um bom paralelo aos dois livros cuja escrita acompanha, é importante que não se pense que a leitura do diário é mero complemento. Pelo contrário, estes textos demonstram-se auto-suficientes e, na maior parte das vezes, acabados. Ainda que a escrita llansoliana tenha sido sempre pródiga em assumir o fragmentário e dele aproveitar as melhores potencialidades, muitos destes textos são realmente textos acabados, dispensando qualquer outro apoio para a leitura.
Voltando ao adequado apontamento dos introdutores, 'Um Arco Singular' também dá uma visão da vida pessoal de Maria Gabriela Llansol. São raros os textos realmente íntimos, mas muito menos raros são os textos que nos dão uma perspectiva do quotidiano da escritora. Não se trata de textos confessionais, mas, na maioria dos casos, de textos bastante analíticos sobre as condição em que, à data, viviam Llansol e o marido, Augusto Joaquim. Dentro deste tema encontramos as dificuldades económicas, os crescentes problemas na Quinta de Jacob, as pesquisas de Llansol sobre a sua família, e ainda alguns trabalhos, como cozer o pão ou costurar. E se em 'Uma Data em Cada Mão' a situação editorial de Llansol não lhe merecia grandes comentários, 'Um Arco Singular' contraria essa tendência. Recorde-se que o diário anterior inicia em 1972, um ano antes da edição de 'Depois de Os Pregos na Erva', e a ausência de anotações sobre ela pode causar alguma estranheza (Além de Llansol ter assegurado os custos da edição na Afrontamento, representa também o encontrar de um editor após onze anos sem publicar.), talvez isso se possa explicar pelo facto de Llansol não ter dado particular importância a esse livro -dos três textos que o compõem, apenas um foi reeditado.
Neste segundo livro, encontramos já em fase de edição 'O Livro das Comunidades' (1977), e com a edição, não só análises da situação editorial como até cartas ao editor, a antologiadores, a amigos, família e críticos; e ainda algumas notas sobre reacções ao livro, particularmente a primeira de duas críticas de João Gaspar Simões.
Um outro assunto recorrente neste Livro de Horas é o das leituras de Llansol. Talvez este assunto possa ser um meio-termo entre a escrita e o quotidiano da autora. Porque se a leitura preenche uma considerável parte do dia-a-dia de que o livro dá conta, a leitura muitas vezes é fonte de reflexão -que pode ou não ter parte nos romances em formação -e também recolha de informação necessária para a escrita. Assim encontramos autores que não têm uma relação especial com os livros que Llansol escrevia, caso de Katherine Mansfield ou Virginia Woolf; e também outros que são procurados pela informação que fornecem, caso de Henri Corbin, Regine Pernoud, Julius Evola, entre muitos outros.
A escrita deste diário é também em parte paralela a 'Finita' (1987), segundo diário publicado em vida pela autora, que cobre os anos de 1974 a 1977. Uma comparação nem muito profunda entre os dois livros, partindo do princípio que 'Finita' é um conjunto seleccionado por Llansol de cadernos como os que dão origem à nova série, pode elucidar-nos sobre as diferenças entre os três diários editados em vida e estes, que se prendem essencialmente com a questão do texto acabado. De certa forma, 'Finita' tem também uma certa presença em 'Um Arco Singular'.
Acima de tudo, este livro dá-nos a observar uma mulher que luta pela sua escrita -por descobri-la, por formulá-la, por solidificá-la. E daí nos fica também a consciência de que foi essa a ocupação e a preocupação de Maria Gabriela Llansol. O título deste volume, seleccionado pelos organizadores, é sugerido a Llansol pela leitura de Rilke. Porém, a mim fez-me pensar na famosa Arte Poética II de Sophia de Mello Breyner Andresen: O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos (3). O mesmo podemos dizer do texto de Maria Gabriela Llansol.
NOTAS:
(1) O presente texto tem data de 8 de Outubro de 2010. Nas Terceiras Jornadas Llansolianas, em Sintra, a 24 e 25 de Setembro de 2011, foi editado um 'Caderno de Leituras' (ed. Mariposa Azual) que recolhe alguns textos críticos publicados sobre a autora, particularmente nos livros em que está presente a temática da Europa.
(2) Também nas Terceiras Jornadas Llansolianas foi lançado o livro/álbum 'Europa em Sobreimpressão: Llansol e as Dobras da História' (ed. Assírio e Alvim) em que esta questão, entre outras, tem lugar.
(3) Poema publicado pela primeira vez na revista Távola Redonda em Janeiro de 1963; e depois coligido no livro 'Geografia' (ed. Moraes), de 1967.
Sem comentários:
Enviar um comentário