quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Maria Teresa Horta: As Luzes de Leonor

POESIA, PAIXÃO E LUZ(ES)

Maria Teresa Horta é uma poetisa. Esta afirmação é, por si só, bastante básica, dadas as mais de oitocentas páginas de poesia que em 2009 foram reunidas na Dom Quixote. Além dos vinte e um livros de poesia que Maria Teresa Horta publicou desde 1960 (Três dos quais no Brasil e um outro em França.) é autora ainda de cinco obras de ficção, 'Ambas as Mãos Sobre o Corpo' (1970), 'Ana' (1975), 'Ema' (1983), 'Cristina' (1987) e 'A Paixão Segundo Constança H' (1999), além das 'Novas Cartas Portuguesas' (1974) escritas com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, e de vários contos dispersamente publicados (Ocorre-me O Grito que fecha 'Espelho Inicial' e que, tanto quanto sei, nunca foi reeditado, ou um conto publicado no volume colectivo 'Amor, Luxúria e Morte' de 1987.). 
Serve este breve levantamento para continuar a frase com que comecei esta nota de leitura. É que mesmo nas novelas e romances que Maria Teresa Horta tem vindo a publicar, aquilo que lemos são ficções escritas por uma poetisa. Há uma linguagem em tudo poética que nunca desaparece da escrita de Teresa Horta, por isso, ela é uma poetisa, mesmo quando não está a escrever poesia. E talvez seja essa presença poética que faz da sua prosa tão apaixonante e intensa (Leia-se, como exemplo, 'Ema', um texto verdadeiramente contundente.).
Já foi dito, inclusivamente pela própria escritora, que onde a sua poesia é luminosa, a prosa é obscura. Concordo. É verdade que onde essa linguagem poética serve para revelar no texto poético, serve para ocultar no texto em prosa.
No entanto, uma leitura da 'Poesia Reunida' mais recente vem mostrar-nos algo de curioso: é que nos primeiros três livros, pelo menos, os poemas de Maria Teresa Horta surgem-nos de alguma forma obscuros, enigmáticos, cheios de imagens explosivas cujo encadeamento nos exige um certo trabalho de desocultação. É mais ou menos isto que vai acontecendo com o seu trabalho em ficção.



Após treze anos de trabalho intensivo de pesquisa e de escrita e reescrita, em 2011 surge-nos 'As Luzes de Leonor', romance de peso (E não me refiro apenas às mais de 1000 páginas que tem.), e, de uma forma muito geral, é possível que este romance marque na prosa de Maria Teresa Horta aquilo que 'Verão Coincidente'  (1962) marcou na sua poesia. A figura central neste romance é Leonor de Almeida Portugal, Condessa de Oyenhausen e, mais tarde, quarta Marquesa de Alorna. 
Neta dos Marqueses de Távora, protagonistas do famoso processo judicial que terminou com a execução em praça pública da família e do encarceramento dos seus descendentes, Leonor foi presa no Convento de Chelas em 1758, quando tinha apenas 8 anos, juntamente com a mãe, Leonor de Lorena, e a irmã Maria Rita. Só foi libertada aquando da morte de D. José I, e da perda do poder de Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal. Durante os dezanove anos em que está enclausurada, Leonor conquista a reprovação da maioria das freiras que ali viviam, ao mesmo tempo que se dedicava ao estudo das Luzes, que fariam dela não só mais culta do que a grande maioria das mulheres do seu tempo, mas também mais culta do que a maioria dos homens. Paralelamente, a sua poesia é notada na grade do convento e, quando sai, é uma invulgar e fascinante mulher de 27 anos, que levará uma vida onde a independência e a determinação existirão ao lado de dissabores, desgostos e da frustração de estar muito à frente do seu tempo.
É este percurso que Maria Teresa Horta escreve no seu romance, até ao encontro com Henri Forestier, general de Vendeia, quando Leonor conta cinquenta anos.
Mas o que mais me interessa aqui notar é a forma como este romance está escrito. Muitos já se referiram a este livro como uma biografia. Nada mais errado. E dois indícios nos bastam para nos comprovar que não só 'As Luzes de Leonor' não é uma biografia, como não tem sequer a pretensão de o ter: primeiro, porque termina aos cinquenta anos de Leonor, que viveu até aos noventa e quatro; segundo, porque muito do que aqui lemos não está documentado, não pode ser comprovado, sendo disso exemplo maior o capítulo respeitante à Revolução Francesa, por onde Leonor passou, mas de que não há documentos que nos digam como. Este é, no entanto, um romance histórico, e fruto de muita investigação. Ainda assim, histórico não seria uma das primeiras palavras que me ocorreriam para falar deste livro depois de o ter lido. Isto porque, ainda que realmente este romance decorra nos séculos XVIII e XIX, está escrito de uma forma que não denuncia directamente a pesquisa que para ele existiu: tudo está escrito com tal naturalidade, com tal verosimilhança, que, enquanto o lemos, não lemos sobre um passado, estamos nesse passado, que assim se torna presente. Página após página temos apaixonadas descrições de cenários, de roupas, de comida, com um verdadeiro deleite nos sentidos, com tacto, com paladar, com som. E é muito aí que está a voz da poetisa: na preferência dada às sensações e ao psicológico, em detrimento de um levantamento histórico, que muito nos diria das referências de Leonor, mas pouco nos dariam dela enquanto pessoa. Porque é essa a verdadeira meta de Maria Teresa Horta: encontrar a mulher que foi Leonor de Almeida, o que é muito mais ambicioso do que querer traçar-lhe um perfil intelectual. O perfil intelectual está lá. No entanto, estão também os sentimentos, está o erotismo, estão as angústias e os desejos, estão as confusões, as contradições, enfim: está uma dimensão totalmente humana, e é difícil conseguir-se uma humanidade tão grande em literatura, o que também nos leva a pensar que este é um romance de maturidade, que não podia ter sido escrito por um autor inexperiente. 
Falo de uma dimensão humana, mas, mais específica do que essa, há a dimensão feminina. É importante referi-la, não só pelo feminismo que Maria Teresa Horta tem sempre defendido, mas também porque a questão da mulher é orgânica ao caso de Leonor de Almeida. O facto de ter sido mulher foi decisivo para o curso que a sua vida tomou, pois não só lhe marca, evidentemente, a sensibilidade, como lhe condicionou todas as escolhas e lhe vedou muita coisa que estava disponível para os homens. Ainda hoje a sociedade é, no geral, machista. Mas, naquele tempo, nem de machismo se pode falar, mas sim de misoginia. Foi desta que Leonor foi vítima, ainda que com pontuais excepções, todas elas conseguidas dentro de um meio cultural de elite que muitas vezes era insuficiente para a proteger de dissabores como o facto de não poder ter sido Ministra Plenipotenciária na Áustria ou o exílio ordenado por Pina Manique. Sempre movida por um exemplar espírito crítico, de justiça e de insubmissão, Leonor marca uma espécie de pré-feminismo em muitas destas páginas.

Tenho falado até agora da (re)criação de Leonor feita por Maria Teresa Horta, no entanto, interessa não esquecer que este romance, ainda que recuse terminantemente ser uma sistematização de informações e documentos, não está escrito sem apoios. Não só sabemos que Teresa Horta investigou a fundo a vida da Marquesa de Alorna, que, aliás, é sua avó; como muitos desses documentos nos surgem integrados no texto: cartas e páginas de cadernos e diários.
Retomo então a ideia que acima apontava, de que talvez 'As Luzes de Leonor' marque na prosa de Teresa Horta aquilo que 'Verão Coincidente' marcava na poesia. Isto porque, é certo, este romance parte de uma certa obscuridade. No entanto, a forma facetada como Leonor é olhada, que passa por ela e pela maioria daqueles que estão à sua volta, acaba por iluminá-la, torná-la clara e nítida. E por isso, este é um romance verdadeiramente luminoso.
Interessa ainda apontar a questão estrutural, muito importante em 'As Luzes de Leonor'. O romance está dividido em capítulos, que, por sua vez, se dividem entre um poema da Marquesa de Alorna, uma secção Raízes onde lemos a história de família de Leonor, textos de Memória onde Leonor, já mais velha, analisa os acontecimentos passados, fragmentos narrativos sem título, e ainda apontamentos de Caderno e Diário, Cartas, a secção Angelus, onde nos fala um anjo que segue Leonor numa paixão obsessiva e platónica, e ainda, por vezes, monólogos. Assim a história é contada com pequenos espaços de reflexão e de meditação, como que dando-nos o outro lado dos acontecimentos, que é o da sua percepção psicológica, que tem um papel preponderante neste livro. É uma arquitectura complexa mas perfeitamente lógica e que organiza a leitura.
Por fim, interessa sempre pensar na questão do romance que parte de uma personagem real. A verdade é que é difícil escrever um romance desses, porque a procura de alguém, neste caso de Leonor de Almeida, terminaria na Leonor de Maria Teresa Horta (E na nossa, quando lemos o livro.). Porém, isto não impede que a Leonor aqui encontrada se afaste da Leonor que realmente existiu. O epílogo do livro retoma a epígrafe inicial, de Virginia Woolf.

Vivi em ti durante todo este tempo -agora, que eu parto, com quem te pareces tu, verdadeiramente? Será que existes, ou inventei-te dos pés à cabeça?
(p. 13)

diz-nos Woolf,

E ao pretender conhecer-te, em tudo te descubro e te reinvento.
Tão depressa mulher como poetisa ou política ou sábia e sonhadora, mas sempre personagem, porque eu não faço a tua biografia: tento recriar-te minha avó, inventando-te do grão de luz ao bago de romã.
(p. 1054)

diz-nos Maria Teresa Horta. É facto que de outra forma não poderia ser. No entanto, ao terminar o livro, é impossível que não fiquemos com a sensação de que esta Leonor está realmente muito próxima daquela que efectivamente existiu, e de que lemos as cartas e os poemas. Uma mulher em tudo apaixonante e apaixonada e que não só está à frente do seu tempo, como nalgumas coisas, parece estar à frente do nosso. 
Parece-me interessante notar que este livro surge depois da edição da 'Poesia Reunida', pois, no fundo, todas as preocupações e temas que lemos na poesia de Maria Teresa Horta, estão de alguma forma presentes neste romance: a questão da mulher, a sexualidade, a análise histórica (Que encontramos em 'Cronista não é Recado' (1967).), a intelectualidade, a luta pela justiça, a sensibilidade, o sonho, o exercício da paixão e o exercício da poesia como um só.
Podendo parecer que o livro é longo, asseguro que a sua leitura é tudo menos enfastiante. Bem pelo contrário, de tal forma 'As Luzes de Leonor' nos atrai para a Marquesa de Alorna, que ficamos a imaginar como seriam os restantes quarenta e quatro anos de vida de Leonor escritos por Maria Teresa Horta.
Mais ainda, a autora anunciou para breve a edição de um poemário que acompanhou a escrita do romance. Eu, pelo menos, espero ansioso.

4 comentários:

Graça Martins disse...

Parabéns pela coragem e persistência na leitura deste tijolo da Maria Teresa Horta. Tenho aqui o exemplar a olhar para mim todos os dias, no meu atelier, já faz parte da casa, e ainda não arranjei energia para mergulhar na densidade poética das Luzes de Leonor. Gostei muito da tua observação, sempre com um olhar atento à problemática feminina e descriminatória da época, e também apreciei a tua chamada de atenção para a escrita da Teresa, sensível, táctil e a revelar-se com os sentidos todos envolvidos nas palavras.

Supermassive Black-Hole disse...

É verdade que o livro tem um aspecto um tanto agressivo, mas vale mesmo a pena ler. Longe de ser light, de ser uma leitura propriamente fácil, é na verdade viciante e apaixonante (Acho que usei esta palavra muitas vezes no texto.). E é de facto importante ser-se sensível a toda uma linguagem intensa e a toda uma poética que atravessa o livro. De facto, é uma espécie de 'poesia reunida', mas em romance...

miguel fernandes disse...

Indeciso perante o facto de comprar ou não este livro, o texto aqui representado foi de uma grande ajuda. Literatura de qualidade. Aconselho.

Unknown disse...

Encontro_me na pag 500...confesso q qd chegou na 400 ternou_se cansativo ...questionavel..triste... Mas este livro tera que acabar ate o final do proximo mes... A historia que a personagem envolve e interessante... Vale apena ler...e para quem nao teve coragem de comecar a ler esta biblia qd comecar nao vai mais largar... :)