segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Parcimónia e Arte


Multiplicidade e Parcimónia

Em 1862, a editora londrina MacMillan & Co. publica 'Goblin Market and Other Poems', o livro de estreia de Christina Rossetti, que seria o primeiro livro de poesia bem-sucedido, em termos críticos, da irmandade Pré-Rafaelita. Ainda que Christina não fosse propriamente um membro a tempo inteiro da irmandade, a sua poesia é das mais representativas do movimento e o seu livro de estreia (Tal como o seguinte, de 1966, 'The Prince's Progress and Other Poems'.) é um marco importantíssimo para a História dos Pré-Rafaelitas pois, além dos poemas, conta com gravuras desenhadas por Dante Gabriel Rossetti, irmão de Christina e um dos fundadores da Irmandade.
O poema central deste livro, e que lhe dá também título, 'Goblin Market' conta-nos a história de duas irmãs que vivem nas imediações de um pomar onde um bando de duendes vende fruta amaldiçoada. Uma das irmãs, Laura, cede à tentação de ir comer algumas das frutas vendidas pelos duendes, depois adoece pela falta de mais, e a irmã, Lizzie, vai ela mesma ter com os duendes, de maneira a comprar alguma fruta para curar a irmã. Acaba por ser atacada pelos duendes, mas consegue salvar Laura através das polpas dos frutos que traz no corpo, resultado da agressão. A história é, essencialmente, uma história sobre cair na tentação e sobre a lealdade fraternal (que em certos momentos roça o homo-erótico), e sobre como essa lealdade é resposta para a adversidade. A narrativa desenrola-se, como não podia deixar de ser, em todo um processo poético e estilístico subtil, sensível, detalhado e quase excessivo, o que prova a afinidade entre Christina Rossetti e a Irmandade Pré-Rafaelita.


Em 1997, ou seja, 135 anos depois da primeira edição do livro de Christina Rossetti, os Morphine lançam o álbum 'Like Swimming'. Na última faixa, 'Swing it Low', Mark Sandman escreve uma letra sobre uma outra história de lealdade, usando ainda como símbolo da divagação a imagem dos pomares e das frutas. Independentemente da ideia de que Sandman tenha lido o poema de Christina, o que será difícil de apurar, a verdade é que os dois partilham uma pequena narrativa e também algumas imagens que servem essa narrativa.
Fazendo um contraponto entre os dois textos, é fácil constatar que onde o poema de Christina é minucioso e sempre tentando aproximar-se de uma visualidade extrema, a letra de Sandman é divagante, construída de frases contundentes, como se o texto fosse construído de fragmentos de um discurso feito de si para si.
Podemos considerar as várias diferenças entre a escrita de um poema e a escrita de uma letra de canção, mas atribuir a estas diferenças um papel demasiado decisivo seria negligenciar a ideia de que muitas vezes a escrita de letras utiliza muitas técnicas recorrentes na poesia, aproximando-se desta muitas vezes. A questão da época será talvez mais razoável para compreender por que, na segunda metade do século XIX uma narrativa era escrita liricamente de uma forma quase oposta a uma escrita no final do século XX.

Uma observação da História da Arte mostra-nos que, a partir do momento em que a invenção da fotografia liberta, de certa forma, a Pintura e a Escultura do compromisso de imitar o real, se desenvolvem uma série de complexas formas de expressão, sendo uma delas, o Suprematismo, aquela que irá simplificar a representação ao máximo, a partir dos dois momentos essenciais do trabalho de Kazemir Malevich - o 'Quadrado Negro Sobre Fundo Branco' (1915) e o 'Quadrado Branco Sobre Fundo Branco' (1918).

Na Arquitectura, estas transições de estéticas mais depuradas para outras mais complexas, para outras mais depuradas de novo, sente-se antes ainda de se sentir nas restantes artes plásticas. O Renascimento vem reconduzir a Arquitectura para as ideias de pureza, harmonia, proporção e ordem da Antiguidade Clássica; o Maneirismo reinventa as estruturas do Renascimento, conduzindo ao Barroco em que as mesmas estruturas se tornam complexas e ornamentadas ao fundirem-se com uma gramática fortemente decorativa, que será ainda mais exacerbada no Rococó. O Neoclássico trará de volta a simplicidade e a depuração do Renascimento, o Romântico recuperará os estilos medievais, valorizando-lhes a complexidade como forma de criação de uma ambiência poética e misteriosa, a Arte Nova e a Art-Deco valorizarão ainda mais o sentido decorativo, e o Modernismo irá, nalgumas das suas tendências, operar sobre a Arquitectura uma forma extrema de depuração, que será a do Minimalismo.
Não é difícil relacionar a tendência minimalista com a Teoria da Lei da Parcimónia, de William of Occam. Entia non sunt multiplicanda sine necessitate, ou seja, não usar a multiplicidade senão quando o seu uso for imperativo. Esta teoria, levada ontologicamente a um extremo, está, de certa forma, ligada ao cepticismo, uma vez que, no contexto dos seus ensaios teológicos e teosóficos, William of Occam chega, com esta teoria, à conclusão de que a única entidade necessária é deus, não sendo necessário qualquer outro elemento.

No entanto, o transporte desta ideia, directamente associada ou não a William of Occam, para as disciplinas artísticas, tem sido recorrente e, de certa forma, sobrevive sempre ao esquecimento e acaba por ser recuperada, talvez por se associar a uma forma menos artificial ou menos fantasiosa de olhar o mundo, pois, como enuncia lucidamente Agustina Bessa-Luís, A simplicidade é um aspecto superficial do complexo ou então a síntese duma estrutura difícil. A simplicidade adquire-se com a maturação do espírito; a sobriedade e a concisão obtêm-se por sistema de eliminação, e são obra duma intensa experiência.



A Farnsworth House de Mies Van Der Rohe


Mies Van Der Rohe, um dos percursores da Modernidade na Arquitectura, acreditava que a criação de um estilo arquitectónico poderia ser representativa do espírito filosófico da época em que é construído. Aos seus edifícios que ele definia como 'Pele e ossos', fica associada eternamente à máxima 'Less is more', que se coaduna perfeitamente com a Teoria da Lei da Parcimónia. Mies sentia particular apreço pela Arquitectura Gótica, não no sentido em que pretendia recriá-la, mas no sentido em que a via como uma manifestação perfeita do espírito da época, exactamente aquilo que Mies procurou fazer, principalmente no período seguinte à I Guerra Mundial apoiado tanto numa cultura arquitectónica como numa profunda cultura filosófica.

Um dos exemplos mais eminentes do pensamento de Mies é a Farnsworth House (1946-51). Construída como uma casa de fim-de-semana nas imediações de Chicago para uma médica, a dra. Edith Farnsworth, esta casa tinha como materiais básicos o vidro e o aço e Mies consegue trabalhar de uma forma tão intensa com eles e com o espaço florestal envolvente que, provavelmente, o estudioso de Arquitectura Lord Peter Palumbo, segundo proprietário desta casa, não exagera quando diz que esta casa é um poema, uma qualidade de luz, uma expiação, uma maneira de ser, uma nostalgia, um sonho [tradução livre]. No mesmo texto, Palumbo descreve ainda, adequadamente, uma espécie de elo romântico que a casa cria com o espaço em que está inserida, sendo que a transparência a que a casa está sujeita faz com que qualquer alteração na paisagem, como a marca da passagem das estações, tenha um impacto no próprio interior da casa, que, podemos depreender pelas descrições de Palumbo, escritas da perspectiva de quem habitou a casa, parece ser uma espécie de miradouro sobre elementos como a luz, o passar do dia ou o passar do tempo, fazendo com que o isolamento geográfico da casa seja anulado pela sensação de que estamos não retirados do mundo, mas mais próximos daquilo que nele é essencial.
Todo o 'poder' que a casa parece conter, a sua extrema força enquanto entidade capaz de criar determinadas percepções e determinadas emoções, é, no entanto, conseguida com uma simplicidade que pode bem ser um exemplo para corroborar a ideia de Mies de que 'menos é mais'. O crítico Arthur Drexler descreveu a Farnsworth House, na altura em que foi concluída, da seguinte maneira: um terraço, um chão e um tecto. Soldadas às bordas de cada plano estão colunas de aço que os mantêm suspensas no ar. Porque não se apoiam nas colunas, mas apenas passam nelas, estes elementos horizontais parecem ser sustentados por magnetismo. Chão e tecto aparecem como planos opacos definindo o topo e o fundo de um volume cujos lados são simplesmente grandes painéis de vidro. A Farnsworth House é, de facto, uma quantidade de ar entre um tecto e um chão. [tradução livre]

A descrição, sucinta, mostra-nos exactamente a quantidade reduzida de elementos a que Mies recorreu para projectar a Farnsworth House e os relatos de um dos seus habitantes mostra-nos que, com tão poucos elementos como os que Drexler aponta, é possível criar-se uma obra arquitectónica que potencia o espaço de tal forma que quase nos 'dissolve' nele, o que nos leva a crer que, efectivamente, a multiplicidade não fez aqui falta.
Para que Mies pudesse projectar uma casa desta natureza, terá contribuído o facto de se tratar de uma habitação temporária que, à partida, seria utilizada como lugar de relaxamento, e também o facto da propriedade de Edith Farnsworth estar bastante isolada. De acordo com isso, havia uma série de questões que Mies não tinha que ponderar, uma vez que, à partida, elas não teriam ali lugar: a necessidade de resguardar a privacidade, o acumular de património, ou a desordem do dia-a-dia.


Hoje em dia, a Farnsworth House é considerada não só uma das obras mais importantes e mais representativas de Mies, como também uma das percursoras do chamado Estilo Internacional, apesar dos vários aspectos 'folclóricos' que a história da casa apresenta, com os processos judiciais entre Mies e Edith Farnsworth, com os depoimentos depreciativos da primeira proprietária da casa,e do rumor de uma relação amorosa entre os dois, cujo fim aziago teria sido a verdadeira causa dos desentendimentos entre os dois.
Uma das acusações que Farnsworth faria mais frequentemente ao projecto de Mies, seria o de que era difícil viver dentro dele, pois a todo o momento estava exposta, e também a de que o vidro embaciava com o frio, anulando os pressupostos de que os limites entre exterior e interior seriam translúcidos. A preferência de Mies pelo vidro já se fazia sentir desde o início da sua carreira como arquitecto, quando projectara a Haus Lange (1930). O cliente recusou o projecto inicial, com grandes áreas em vidro e, contrariamente ao que aconteceria com a Farnsworth House, Mies cedeu. Posteriormente, ignoraria a Haus Lange, referindo-se a ela sempre vagamente e como trabalho menos conseguido.





A Fundação Calouste Gulbenkian de Ruy Athouguia


Os valores do Modernismo chegam a Portugal cerca da década de 30, mas a sua difusão é, de certo ponto de vista, minoritária, em parte devido ao regime ditatorial que na Arquitectura teve um impacto considerável. A inclinação para um certo tradicionalismo fez-se sentir ao longo da década de 40, tanto por causa das imposições do regime político vigente, como também pela falta de trabalho crítico e estudioso sobre, principalmente, a Arquitectura moderna que, noutros países da Europa, desenvolvia novos valores e novas formas de conceber o espaço. Como parece ter sido a tendência de todos os países em regime de ditadura, em Portugal procurou-se um retorno ao neoclássico, por aquilo que o classicismo simbolizava, em termos de ordem, monumentalidade, hierarquia e também enquanto clarificação do Poder. O 'estilo' que ficaria conhecido como 'Português Suave' partia precisamente desta preferência pelo classicismo, associado ao uso de materiais como o betão e o aço.
A meio da década de 40, no entanto, ficou claro que o 'Português Suave' era insuficiente para satisfazer as exigências que eram feitas à Arquitectura, enquanto resposta para uma série de questões de ordem cultural e social. Assim, um estilo conservador de Arquitectura dá, nos anos 50, lugar a uma nova chegada dos valores da Modernidade à Arquitectura portuguesa, impulsionada por arquitectos interessados em construir de acordo com as necessidades do tempo presente, o que, em muitos aspectos, representou uma espécie de forma de resistência ao regime fechado.
Em 1946 surge em Lisboa o grupo ICAT (Iniciativas Culturais de Arte e Técnica), dirigido por Keil do Amaral, e que reúne vários arquitectos, interessados em discutir e reinventar a Arquitectura para Portugal, e muitas das suas conclusões teóricas seriam publicadas na segunda série da revista 'Arquitectura'. No Porto, Carlos Ramos vai-se destacando como dinamizador, e, do seu trabalho junto de vários arquitectos resulta o ODAM (Organização dos Arquitectos Modernos) em 1947.
O 1º Congresso Anual dos Arquitectos em 1948 vem, em muitos aspectos, conciliar o que se estava a fazer tanto em Lisboa como no Porto, e, com os primeiros grandes debates sobre o contexto social e económico da Arquitectura. A união geral dos Arquitectos contra o 'Português Suave' é decisiva para que, mesmo da parte do Governo, seja mais ou menos aceite a entrada dos valores da Modernidade em Portugal.
O arquitecto Ruy Athouguia foi um dos expoentes máximos da Modernidade em Portugal, no entanto, não estava presente nesse 1º Congresso. Como relembra Souto de Moura, quando perguntaram a Athouguia porquê, o arquitecto respondeu: 'Não influenciou o que eu estava a fazer porque eu já o estava a fazer'.

De facto, mesmo não tendo estado presente nestes movimentos, o seu trabalho lida não raras vezes com questões que muito preocuparam os arquitectos europeus do Modernismo. Tal como Mies, Athouguia dá preferência à pureza das formas e dos elementos, em detrimento das tendências para o orgânico que encontramos em, por exemplo, Alvar Aalto. A sua preferência pela regularidade permitiu-lhe trabalhar não só os espaços em si, como também a relação de uns edifícios para os outros, sendo exemplos disso os vários prédios da sua autoria em Alvalade (Lisboa), representando estes, portanto, algumas concepções urbanísticas de Athouguia.
Outro exemplo da preferência de Ruy Athouguia pela pureza dos volumes é o edifício da Fundação Calouste Gulbenkian. Tendo sido a última encomenda para edifícios públicos que o arquitecto recebeu, em 1969, esta obra é representativa de uma série de outras questões importantes. É o caso da relação entre interior e exterior, que é também muito importante para Mies, conseguida também por grandes painéis de vidro, colocados de maneira a que, em determinados espaços interiores do edifício, possamos perceber que estamos rodeados pelos jardins, ou, num caso específico, para podermos observar, desse ponto de vista, a escultura do arquitecto Artur Rosa (de 1968); o que significa que também do exterior nos é possível perceber o espaço interior. Outra questão importante neste edifício é a materialidade. Trata-se de um edifício de aspecto sóbrio, que, em termos de composição usa, no fundo, poucos e discretos elementos, conseguindo então essa sobriedade tanto pela regularidade harmoniosa com que está desenhado, mas também dado o uso do betão armado e do betão pré-esforçado. A textura algo rude destes materiais parece criar uma relação, essa sim, quase orgânica, entre aquilo que é o material de construção e os vários elementos naturais que o circundam e que, em certos casos, o tocam ou mesmo crescem nele, como é o caso de várias heras. Por útlimo, o edifício Calouste Gulbenkian é pensado de maneira a integrar-se no espaço dos jardins. Esta integração, subtil e delicada (o que poderia parecer quase impossível num edifício tão maciço), faz o edifício, em muitos momentos, desaparecer entre a vegetação, dividindo, noutros, o protagonismo com ela, ao passo que, durante o inverno, o edifício ganha um destaque maior entre as árvores sem folhas.

Assim, um pouco como acontecia com a Farnsworth House de Mies, mas de uma forma bastante diferente, o edifício Calouste Gulbenkian também tece relações sensíveis e fortes entre espaço interior e espaço exterior, e entre  edifício e paisagem, deixando também vislumbrar aquilo que Mies procurou no seu projecto: os elementos impalpáveis como a luz ou a passagem do tempo.












Bibliografia

BESSA-LUÍS, Agustina: Contos Impopulares, Guimarães editores, Lisboa, 3a edição, 1984
GRAÇA MOURA, Vasco: Sobre a Escrita de Letras, in 'JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias', nº1073, Novembro de 2011
KLEINMEN, Kent e VAN DUZER, Leslie: Mies Van Der Rohe, The Krefeld Villas, Princeton Architectural Press, New York, 2005
RIBEIRO, Helena Sofia da Silva Nunes Jales: Outras Casas Portuguesas (Dissertação de Mestrado), FCTUC, Coimbra, 2010
ROSSETTI, Christina: Selected Poems, introd. & org. Katherine McGowran, Wordsworth Poetry Library ed., Londres, 1999
ROSSETTI, Christina: O Mercado dos Duendes e Outros Poemas, org. Ana Rosa Nobre, trad. Margarida Vale de Gato, ed. Relógio d'Água, Lisboa, 2006
SOUTO DE MOURA, Eduardo: Prefácio a 'Ruy d'Athouguia: A Mordernidade em Aberto' de Graça Correia, ed. Caleidoscópio, Lisboa, 2008
VANDENBERG, Maritz: Farnsworth House, Ludwig Mies Van Der Rohe, Phaidon Press, Londres, 2003

1 comentário:

Graça Martins disse...

muito bom mesmo. Parabéns