Multiplicidade
e Parcimónia
O poema
central deste livro, e que lhe dá também título, 'Goblin Market' conta-nos a
história de duas irmãs que vivem nas imediações de um pomar onde um bando de
duendes vende fruta amaldiçoada. Uma das irmãs, Laura, cede à tentação de ir
comer algumas das frutas vendidas pelos duendes, depois adoece pela falta de
mais, e a irmã, Lizzie, vai ela mesma ter com os duendes, de maneira a comprar
alguma fruta para curar a irmã. Acaba por ser atacada pelos duendes, mas
consegue salvar Laura através das polpas dos frutos que traz no corpo,
resultado da agressão. A história é, essencialmente, uma história sobre cair na
tentação e sobre a lealdade fraternal (que em certos momentos roça o
homo-erótico), e sobre como essa lealdade é resposta para a adversidade. A
narrativa desenrola-se, como não podia deixar de ser, em todo um processo
poético e estilístico subtil, sensível, detalhado e quase excessivo, o que
prova a afinidade entre Christina Rossetti e a Irmandade Pré-Rafaelita.
Em 1997, ou
seja, 135 anos depois da primeira edição do livro de Christina Rossetti, os
Morphine lançam o álbum 'Like Swimming'. Na última faixa, 'Swing it Low', Mark
Sandman escreve uma letra sobre uma outra história de lealdade, usando ainda
como símbolo da divagação a imagem dos pomares e das frutas. Independentemente
da ideia de que Sandman tenha lido o poema de Christina, o que será difícil de
apurar, a verdade é que os dois partilham uma pequena narrativa e também
algumas imagens que servem essa narrativa.
Fazendo um
contraponto entre os dois textos, é fácil constatar que onde o poema de
Christina é minucioso e sempre tentando aproximar-se de uma visualidade
extrema, a letra de Sandman é divagante, construída de frases contundentes,
como se o texto fosse construído de fragmentos de um discurso feito de si para
si.
Uma
observação da História da Arte mostra-nos que, a partir do momento em que a
invenção da fotografia liberta, de certa forma, a Pintura e a Escultura do
compromisso de imitar o real, se desenvolvem uma série de complexas formas de
expressão, sendo uma delas, o Suprematismo, aquela que irá simplificar a
representação ao máximo, a partir dos dois momentos essenciais do trabalho de
Kazemir Malevich - o 'Quadrado Negro Sobre Fundo Branco' (1915) e o
'Quadrado Branco Sobre Fundo Branco' (1918).
Na
Arquitectura, estas transições de estéticas mais depuradas para outras mais
complexas, para outras mais depuradas de novo, sente-se antes ainda de se
sentir nas restantes artes plásticas. O Renascimento vem reconduzir a
Arquitectura para as ideias de pureza, harmonia, proporção e ordem da
Antiguidade Clássica; o Maneirismo reinventa as estruturas do Renascimento,
conduzindo ao Barroco em que as mesmas estruturas se tornam complexas e
ornamentadas ao fundirem-se com uma gramática fortemente decorativa, que será
ainda mais exacerbada no Rococó. O Neoclássico trará de volta a simplicidade e
a depuração do Renascimento, o Romântico recuperará os estilos medievais,
valorizando-lhes a complexidade como forma de criação de uma ambiência poética
e misteriosa, a Arte Nova e a Art-Deco valorizarão ainda mais o sentido
decorativo, e o Modernismo irá, nalgumas das suas tendências, operar sobre a
Arquitectura uma forma extrema de depuração, que será a do Minimalismo.
Não é
difícil relacionar a tendência minimalista com a Teoria da Lei da Parcimónia,
de William of Occam. Entia non sunt
multiplicanda sine necessitate, ou seja, não usar a multiplicidade senão
quando o seu uso for imperativo. Esta teoria, levada ontologicamente a um
extremo, está, de certa forma, ligada ao cepticismo, uma vez que, no contexto
dos seus ensaios teológicos e teosóficos, William of Occam chega, com esta
teoria, à conclusão de que a única entidade necessária é deus, não sendo
necessário qualquer outro elemento.
No entanto,
o transporte desta ideia, directamente associada ou não a William of Occam,
para as disciplinas artísticas, tem sido recorrente e, de certa forma,
sobrevive sempre ao esquecimento e acaba por ser recuperada, talvez por se
associar a uma forma menos artificial ou menos fantasiosa de olhar o mundo,
pois, como enuncia lucidamente Agustina Bessa-Luís, A simplicidade é um aspecto superficial do complexo ou então a síntese
duma estrutura difícil. A simplicidade adquire-se com a maturação do espírito;
a sobriedade e a concisão obtêm-se por sistema de eliminação, e são obra duma
intensa experiência.
A Farnsworth House de Mies Van Der Rohe
Mies Van
Der Rohe, um dos percursores da Modernidade na Arquitectura, acreditava que a
criação de um estilo arquitectónico poderia ser representativa do espírito
filosófico da época em que é construído. Aos seus edifícios que ele definia
como 'Pele e ossos', fica associada eternamente à máxima 'Less is more', que se
coaduna perfeitamente com a Teoria da Lei da Parcimónia. Mies sentia particular
apreço pela Arquitectura Gótica, não no sentido em que pretendia recriá-la, mas
no sentido em que a via como uma manifestação perfeita do espírito da época,
exactamente aquilo que Mies procurou fazer, principalmente no período seguinte
à I Guerra Mundial apoiado tanto numa cultura arquitectónica como numa profunda
cultura filosófica.
Todo o
'poder' que a casa parece conter, a sua extrema força enquanto entidade capaz
de criar determinadas percepções e determinadas emoções, é, no entanto,
conseguida com uma simplicidade que pode bem ser um exemplo para corroborar a
ideia de Mies de que 'menos é mais'. O crítico Arthur Drexler descreveu a
Farnsworth House, na altura em que foi concluída, da seguinte maneira: um terraço, um chão e um tecto. Soldadas às
bordas de cada plano estão colunas de aço que os mantêm suspensas no ar. Porque
não se apoiam nas colunas, mas apenas passam nelas, estes elementos horizontais
parecem ser sustentados por magnetismo. Chão e tecto aparecem como planos
opacos definindo o topo e o fundo de um volume cujos lados são simplesmente
grandes painéis de vidro. A Farnsworth House é, de facto, uma quantidade de ar
entre um tecto e um chão. [tradução livre]
A
descrição, sucinta, mostra-nos exactamente a quantidade reduzida de elementos a
que Mies recorreu para projectar a Farnsworth House e os relatos de um dos seus
habitantes mostra-nos que, com tão poucos elementos como os que Drexler aponta,
é possível criar-se uma obra arquitectónica que potencia o espaço de tal forma
que quase nos 'dissolve' nele, o que nos leva a crer que, efectivamente, a
multiplicidade não fez aqui falta.
Para que
Mies pudesse projectar uma casa desta natureza, terá contribuído o facto de se
tratar de uma habitação temporária que, à partida, seria utilizada como lugar
de relaxamento, e também o facto da propriedade de Edith Farnsworth estar
bastante isolada. De acordo com isso, havia uma série de questões que Mies não
tinha que ponderar, uma vez que, à partida, elas não teriam ali lugar: a
necessidade de resguardar a privacidade, o acumular de património, ou a
desordem do dia-a-dia.
Hoje em
dia, a Farnsworth House é considerada não só uma das obras mais importantes e
mais representativas de Mies, como também uma das percursoras do chamado Estilo
Internacional, apesar dos vários aspectos 'folclóricos' que a história da casa
apresenta, com os processos judiciais entre Mies e Edith Farnsworth, com os
depoimentos depreciativos da primeira proprietária da casa,e do rumor de uma
relação amorosa entre os dois, cujo fim aziago teria sido a verdadeira causa
dos desentendimentos entre os dois.
Uma das
acusações que Farnsworth faria mais frequentemente ao projecto de Mies, seria o
de que era difícil viver dentro dele, pois a todo o momento estava exposta, e
também a de que o vidro embaciava com o frio, anulando os pressupostos de que
os limites entre exterior e interior seriam translúcidos. A preferência de Mies
pelo vidro já se fazia sentir desde o início da sua carreira como arquitecto,
quando projectara a Haus Lange (1930). O cliente recusou o projecto inicial,
com grandes áreas em vidro e, contrariamente ao que aconteceria com a Farnsworth
House, Mies cedeu. Posteriormente, ignoraria a Haus Lange, referindo-se a ela
sempre vagamente e como trabalho menos conseguido.
A Fundação
Calouste Gulbenkian de Ruy Athouguia
Os valores
do Modernismo chegam a Portugal cerca da década de 30, mas a sua difusão é, de
certo ponto de vista, minoritária, em parte devido ao regime ditatorial que na
Arquitectura teve um impacto considerável. A inclinação para um certo
tradicionalismo fez-se sentir ao longo da década de 40, tanto por causa das
imposições do regime político vigente, como também pela falta de trabalho
crítico e estudioso sobre, principalmente, a Arquitectura moderna que, noutros
países da Europa, desenvolvia novos valores e novas formas de conceber o
espaço. Como parece ter sido a tendência de todos os países em regime de
ditadura, em Portugal procurou-se um retorno ao neoclássico, por aquilo que o
classicismo simbolizava, em termos de ordem, monumentalidade, hierarquia e
também enquanto clarificação do Poder. O 'estilo' que ficaria conhecido como
'Português Suave' partia precisamente desta preferência pelo classicismo,
associado ao uso de materiais como o betão e o aço.
A meio da
década de 40, no entanto, ficou claro que o 'Português Suave' era insuficiente
para satisfazer as exigências que eram feitas à Arquitectura, enquanto resposta
para uma série de questões de ordem cultural e social. Assim, um estilo
conservador de Arquitectura dá, nos anos 50, lugar a uma nova chegada dos
valores da Modernidade à Arquitectura portuguesa, impulsionada por arquitectos
interessados em construir de acordo com as necessidades do tempo presente, o
que, em muitos aspectos, representou uma espécie de forma de resistência ao
regime fechado.
O 1º
Congresso Anual dos Arquitectos em 1948 vem, em muitos aspectos, conciliar o
que se estava a fazer tanto em Lisboa como no Porto, e, com os primeiros
grandes debates sobre o contexto social e económico da Arquitectura. A união
geral dos Arquitectos contra o 'Português Suave' é decisiva para que, mesmo da
parte do Governo, seja mais ou menos aceite a entrada dos valores da
Modernidade em Portugal.
O
arquitecto Ruy Athouguia foi um dos expoentes máximos da Modernidade em
Portugal, no entanto, não estava presente nesse 1º Congresso. Como relembra
Souto de Moura, quando perguntaram a Athouguia porquê, o arquitecto respondeu:
'Não influenciou o que eu estava a fazer porque eu já o estava a fazer'.
De facto,
mesmo não tendo estado presente nestes movimentos, o seu trabalho lida não
raras vezes com questões que muito preocuparam os arquitectos europeus do
Modernismo. Tal como Mies, Athouguia dá preferência à pureza das formas e dos
elementos, em detrimento das tendências para o orgânico que encontramos em, por
exemplo, Alvar Aalto. A sua preferência pela regularidade permitiu-lhe
trabalhar não só os espaços em si, como também a relação de uns edifícios para
os outros, sendo exemplos disso os vários prédios da sua autoria em Alvalade
(Lisboa), representando estes, portanto, algumas concepções urbanísticas de
Athouguia.
Assim, um
pouco como acontecia com a Farnsworth House de Mies, mas de uma forma bastante
diferente, o edifício Calouste Gulbenkian também tece relações sensíveis e
fortes entre espaço interior e espaço exterior, e entre edifício e paisagem, deixando também
vislumbrar aquilo que Mies procurou no seu projecto: os elementos impalpáveis
como a luz ou a passagem do tempo.
Bibliografia
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Impopulares, Guimarães editores, Lisboa, 3a edição, 1984
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Letras, in 'JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias', nº1073, Novembro de 2011
KLEINMEN, Kent e VAN DUZER, Leslie: Mies Van Der Rohe, The Krefeld Villas,
Princeton Architectural Press, New York, 2005
RIBEIRO, Helena Sofia da Silva Nunes Jales: Outras Casas Portuguesas
(Dissertação de Mestrado), FCTUC, Coimbra, 2010
ROSSETTI, Christina: Selected Poems, introd. & org. Katherine McGowran, Wordsworth
Poetry Library ed., Londres, 1999
ROSSETTI, Christina: O Mercado dos
Duendes e Outros Poemas, org. Ana Rosa Nobre, trad. Margarida Vale de Gato, ed.
Relógio d'Água, Lisboa, 2006
SOUTO DE MOURA, Eduardo: Prefácio a
'Ruy d'Athouguia: A Mordernidade em Aberto' de Graça Correia, ed. Caleidoscópio, Lisboa, 2008
VANDENBERG, Maritz: Farnsworth House, Ludwig Mies Van Der Rohe, Phaidon Press, Londres,
2003
1 comentário:
muito bom mesmo. Parabéns
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