terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Autobiografia



Lembro-me que houve um tempo
em que escrevia coisas.
Um tempo em que fechava portas e janelas
e saía de mim
e percorria o espaço cerebral.
Lembro-me que mais tarde
tudo me correu mal.
Foi como se tivesse morrido nas palavras
tão carinhosamente
tão cuidadosamente escolhidas
entre as outras palavras.
Lembro-me que houve noites de insónia
e de lua
e de passeios em branco pela rua
com uma vontade doida de chorar
subindo na garganta.
Lembro-me de não poder falar
e de sentir saudades perseguidas
do primeiro tempo
em que escrevia coisas.
Saudades.
Então fui ter com elas.
Estranhas damas de dentro
que não saem de casa
estranhas damas sentadas
em cadeiras mentais
fui ter com elas
porque em verdade lembro-me
que não podia mais
e tinha de as matar.
Para começar sentei-me
numa cadeira ao lado.
Falei do tempo
e do espaço
e do momento marcado
no relógio.
Depois disso agarrei no ponteiro das horas.
Uma pancada seca na cabeça.
Fim.
Lembro-me ainda que saí
deixando a porta aberta
atrás de mim.

Yvette K. Centeno
O Barco na Cidade
1965, ed. Guimarães
imagem de Hans Bellmer

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