quinta-feira, 10 de outubro de 2013

as duas perguntas

A arte romântica é, até hoje, um campo de experimentação fascinante a nível da relação do Homem com o Mundo e do papel da arte nessa relação. A rejeição dos princípios algo castradores do segundo Neoclássico permitiu aos artistas do Romântico utilizar toda a técnica magistral de representação em favor de um universo que privilegiava o Homem, enquanto ser emotivo e psicológico. Se mais tarde a arte abstracta ou não-figurativa deu o salto definitivo na abordagem destes temas, o Romântico, que não existiu sem espartilhos, foi obrigado a ser muito mais imaginativo. As imagens da pintura romântica são representações de cenários possível, realistas, mas a sua poética fá-las ultrapassar-se a si mesmas. É a primeira era do ouro para o conteúdo, para o subtexto, para a subjectividade e a interpretação.
O ''Mar Gelado'' do alemão Caspar David Friedrich é um dos exemplos mais impressionantes e ousados da pintura romântica. Ousado porque a sua representação das placas quebradas de gelo tende para a abstracção, é uma paisagem de tal forma idealizada que parece não encontrar correspondência senão na nossa psicologia.

Noutros trabalhos, Friedrich não é tão extremista, mas não deixa nunca de ser subtil. É poderosíssima a imagem do seu ''Caçador na Floresta''. Numa primeira observação, a presença humana passa quase despercebida. A minúscula figura do caçador, de costas, não passa de um vulto estático no fim do caminho. É de facto um caminho que está diante de nós, um caminho definido no espaço vazio entre árvores altíssimas, que se cerra naquele ponto que o caçador enfrenta. As árvores estão secas, há neve presa nalguns galhos e pouco se avista do chão senão neve também.
O caçador assume-se como uma projecção nossa, ele é o nosso lugar naquela imagem. E Friedrich parece colocar assim duas perguntas: Que floresta é esta? e Quem somos nós/ sou eu nesta floresta? Trata-se de uma das distinções cruciais entre a arte do Neoclássico e a arte do Romântico: a primeira faz afirmações, a segunda faz perguntas.
A floresta assume o lugar do próprio Mundo: as árvores são de uma escala monumental e irrealista, em face delas o caçador é uma formiga, e cada uma das árvores não tem particular identidade: os galhos vão-se misturando até formarem um difícil emaranhado, uma massa asfixiante e incompreensível. O céu cinzento não é visível senão no topo, entre as árvores perpassa apenas escuridão.
Em termos pragmáticos, no entanto, não há nada de dificultoso naquele lugar. Por próximas que as árvores cresçam umas das outras, seria sempre possível ao caçador passar por entre elas. É, por isso, a nossa percepção que transforma a pintura na obra grandiosa que é. O próprio Friedrich conta com isso. A prova está no elemento primeiro da composição: ainda entre o espectador e o caçador, encontra-se um tronco decepado. De repente, parece-nos que não só aquele homem não pode avançar, como que não pode voltar para de onde veio. E se o tronco, por si só, não é bloqueio suficiente, pousado nele está ainda um corvo. É o único elemento, além do caçador, que não parece ali totalmente desprovido de vida  _no entanto, a sua presença é tudo menos apaziguadora. Ele funciona como uma espécie de guardião dos portões, é o elemento mais diminuto de toda a pintura, mas o seu poder é extraordinário: ele zela o fechamento desse mundo imenso e intrincado em que o caçador está encurralado.  O que nos leva à segunda pergunta de Friedrich: Quem é o Homem em face daquela floresta? À resposta não falta a poética, a beleza e a angústia tão características do Romântico. O Homem é aqui elemento de pouca significação, é um vulto esvaziado de traços específicos, uma presença cabisbaixa perdida num lugar sem identidade que em tudo o ultrapassa, um espaço confinado do qual, mesmo podendo sair fisicamente, nunca poderá escapar psicologica e emocionalmente.
Essa ideia torna-se ainda mais intensa quando nos lembramos que na floresta, o caçador está na mesma posição que nós, perante o quadro.

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