As teorias de
Susan Sontag sobre forma, conteúdo e estilo _expressas essencialmente nos
ensaios Against Interpretation e On Style _ iniciaram brilhantemente o
diálogo sobre o problema dos motivos da obra de arte. O objecto artístico basta-se a si mesmo? Necessita de uma
razão, de um conteúdo? É certamente alguma coisa no mundo, mas deve ser um
comentário sobre esse mundo? Sontag respondeu a estes desafios, por vezes
brilhantemente, mas podemos afirmar, hoje, que as suas teorias já demonstraram
as suas falibilidades e não parece tão clara a valência da obra de arte só
enquanto objecto de estética ou estilo.
O problema do
motivo é um dos problemas essenciais da curta-metragem de João Pedro Rodrigues
‘’O Corpo de Afonso’’ (2013). O objectivo do realizador seria recriar a ideia
do corpo de D. Afonso Henriques. Desde as sucessivas dinastias monárquicas ao
Estado Novo e até ao pós-25 de Abril, Afonso Henriques tem sido alvo de
mistificações, distorções e recriações, desde aquilo que se encontra nas
crónicas históricas à famosa estátua de Guimarães.
Para
personificar possíveis aspectos do corpo de Afonso, João Pedro Rodrigues filma
24 homens a despir-se, falando sobre os seus trabalhos, explicando as suas
tatuagens e lendo textos históricos ou respondendo a perguntas sobre a formação
de Portugal. Estes homens são todos galegos, e é em galego que falam, o que é
já uma forma de subtilmente impor a presença do rei.
Os corpos são
filmados em frente à tela verde, onde muitas vezes se projectam várias imagens,
que pressupõem enquadrar determinada sequência, evidenciando-lhe o sentido.
Mas, apesar do
seu natural sentido de humor e da sua subtileza conceptual, algo falha
redondamente em ‘’O Corpo de Afonso’’. Há uma pesada ironia, que resulta
muitíssimo bem, nesta recriação de Afonso. A maioria destes homens são
desempregados, ou trabalham como strippers,
ou são culturistas que transpiram amor-próprio. Apresentar as possíveis
personificações do rei como pessoas financeiramente inaptas, sem ambição, com
vidas difíceis, sem qualquer cultura histórica e sem outro centro de interesse
próprio que não o corpo é uma piada cruel e deliciosa sobre a mística figura do
primeiro rei, é tomá-lo não como herói mas como ser humano contraditório e a
vários títulos falhado, como sabemos que Afonso Henriques também foi. Essa
ironia será o ponto de vantagem do filme. O que corre mal, então? É que ao
realizador de ‘’O Fantasma’’ (2000) faltou entender que essa ironia não se
devia ter detido na persona do rei,
deveria ter sido estendida ao seu aspecto físico, seria mais intensa se tivesse
um correspondente na faceta mais directamente erótica de Afonso.
Por um lado,
Rodrigues denuncia e destrói a mitificação do rei fundador, por outro, na
questão física, continua descomplexadamente essa mitificação. O filme, na sua
totalidade, parece incapaz de tomar uma decisão sobre o que quer fazer. Os
homens são filmados a ler uma crónica que descreve o corpo do rei como disforme
e feio, e é impossível que João Pedro Rodrigues não saiba que é praticamente
impossível que um nobre borgonhês da Idade Média tivesse um corpo robusto e
definido, por mais que tivesse vocação militar. Portanto, a opção de filmar
homens com físicos de culturista, ou, pelo menos, com físicos belos de atletas
gregos, a relembrar quase as recriações clássicas de Leni Riefenstahl em
‘’Olympia’’ (1938), não é, no filme, senão uma continuação da tendência que
precisamente o filme tenta contrariar.
Este problema
torna-se ainda mais intenso quando, em determinados momentos, se fica com a
impressão de que filmar estes homens quase nós é mais importante do que
propriamente o jogo com a figura de D. Afonso Henriques. Afonso quase se torna
uma espécie de desculpa para as imagens e as falas dos 24 galegos que são ora
cómicos, ora tristes, ora irritantes.
O que, acima
de tudo, é de lastimar em ‘’O Corpo de Afonso’’ é que João Pedro Rodrigues
pareça ser perfeitamente capaz de tomar uma figura histórica magnânima e de a
desmascarar. No entanto, ironizando com eficácia com a persona do fundador, o corpo do rei propriamente dito é um corpo
sem ironia que, nos seus piores momentos, roça a futilidade. A curta-metragem
torna-se assim confusa, e algo nela acaba por parecer estar à procura de um
motivo, que ora é encontrado, ora se perde de vista.
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