segunda-feira, 28 de outubro de 2013

corpo sem ironia


As teorias de Susan Sontag sobre forma, conteúdo e estilo _expressas essencialmente nos ensaios Against Interpretation e On Style _ iniciaram brilhantemente o diálogo sobre o problema dos motivos da obra de arte.  O objecto artístico basta-se a si mesmo? Necessita de uma razão, de um conteúdo? É certamente alguma coisa no mundo, mas deve ser um comentário sobre esse mundo? Sontag respondeu a estes desafios, por vezes brilhantemente, mas podemos afirmar, hoje, que as suas teorias já demonstraram as suas falibilidades e não parece tão clara a valência da obra de arte só enquanto objecto de estética ou estilo.
O problema do motivo é um dos problemas essenciais da curta-metragem de João Pedro Rodrigues ‘’O Corpo de Afonso’’ (2013). O objectivo do realizador seria recriar a ideia do corpo de D. Afonso Henriques. Desde as sucessivas dinastias monárquicas ao Estado Novo e até ao pós-25 de Abril, Afonso Henriques tem sido alvo de mistificações, distorções e recriações, desde aquilo que se encontra nas crónicas históricas à famosa estátua de Guimarães.
Para personificar possíveis aspectos do corpo de Afonso, João Pedro Rodrigues filma 24 homens a despir-se, falando sobre os seus trabalhos, explicando as suas tatuagens e lendo textos históricos ou respondendo a perguntas sobre a formação de Portugal. Estes homens são todos galegos, e é em galego que falam, o que é já uma forma de subtilmente impor a presença do rei.
Os corpos são filmados em frente à tela verde, onde muitas vezes se projectam várias imagens, que pressupõem enquadrar determinada sequência, evidenciando-lhe o sentido.
Mas, apesar do seu natural sentido de humor e da sua subtileza conceptual, algo falha redondamente em ‘’O Corpo de Afonso’’. Há uma pesada ironia, que resulta muitíssimo bem, nesta recriação de Afonso. A maioria destes homens são desempregados, ou trabalham como strippers, ou são culturistas que transpiram amor-próprio. Apresentar as possíveis personificações do rei como pessoas financeiramente inaptas, sem ambição, com vidas difíceis, sem qualquer cultura histórica e sem outro centro de interesse próprio que não o corpo é uma piada cruel e deliciosa sobre a mística figura do primeiro rei, é tomá-lo não como herói mas como ser humano contraditório e a vários títulos falhado, como sabemos que Afonso Henriques também foi. Essa ironia será o ponto de vantagem do filme. O que corre mal, então? É que ao realizador de ‘’O Fantasma’’ (2000) faltou entender que essa ironia não se devia ter detido na persona do rei, deveria ter sido estendida ao seu aspecto físico, seria mais intensa se tivesse um correspondente na faceta mais directamente erótica de Afonso.
Por um lado, Rodrigues denuncia e destrói a mitificação do rei fundador, por outro, na questão física, continua descomplexadamente essa mitificação. O filme, na sua totalidade, parece incapaz de tomar uma decisão sobre o que quer fazer. Os homens são filmados a ler uma crónica que descreve o corpo do rei como disforme e feio, e é impossível que João Pedro Rodrigues não saiba que é praticamente impossível que um nobre borgonhês da Idade Média tivesse um corpo robusto e definido, por mais que tivesse vocação militar. Portanto, a opção de filmar homens com físicos de culturista, ou, pelo menos, com físicos belos de atletas gregos, a relembrar quase as recriações clássicas de Leni Riefenstahl em ‘’Olympia’’ (1938), não é, no filme, senão uma continuação da tendência que precisamente o filme tenta contrariar.
Este problema torna-se ainda mais intenso quando, em determinados momentos, se fica com a impressão de que filmar estes homens quase nós é mais importante do que propriamente o jogo com a figura de D. Afonso Henriques. Afonso quase se torna uma espécie de desculpa para as imagens e as falas dos 24 galegos que são ora cómicos, ora tristes, ora irritantes.
O que, acima de tudo, é de lastimar em ‘’O Corpo de Afonso’’ é que João Pedro Rodrigues pareça ser perfeitamente capaz de tomar uma figura histórica magnânima e de a desmascarar. No entanto, ironizando com eficácia com a persona do fundador, o corpo do rei propriamente dito é um corpo sem ironia que, nos seus piores momentos, roça a futilidade. A curta-metragem torna-se assim confusa, e algo nela acaba por parecer estar à procura de um motivo, que ora é encontrado, ora se perde de vista.


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