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sábado, 4 de janeiro de 2014

Paragem

























O pássaro fendeu os ares e tombou morto.
Caiu sobre um canteiro onde floresciam lírios
E imediatamente as vísceras comunicaram a desagregação.
Então vieram as formigas.
Assaltaram-no,
Sugaram-no em milhões de partículas...
E o pássaro foi coberto de negrura movediça
Foi diminuindo de volume
Esquecido dos sóis que procurara.


Egito Gonçalves
Um Homem na Neblina
1950, ed. Germinal
desenho de  Hubert Duprilot

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Poetas de Quarenta Anos


Quarenta anos têm os poetas
quando se suicidam,
quando a espinha fura
a garganta das árias,
quando a carne se estragou
no frio dos frigoríficos
e o peixe nos mercados
deixou de ser fresco.

Quarenta, quando os colegas
te ensinam a escrever, a viver,
quando nos seus olhos vês olhares vazios,
quando os seus dedos apontam priscas
e o seu pensamento aponta para a bebida.

Cees Nooteboom
trad. de August Willemsen e Egito Gonçalves
Um Mundo Claro, Um Dia Escuro (Oito Poetas Holandeses)
1988, ed. Limiar
pintura de Renée Magritte

domingo, 20 de novembro de 2011

[Sempre te procurei na solidão mais funda, o seu]



Sempre te procurei na solidão mais funda, o seu
novelo_ uma figura destacou-se. Seria
apenas uma imagem de espera, o grande
e nervoso esqueleto de faia desfolhada. Vinhas
longe, ainda sem abrigo, sem paredes, os lábios
frios entre os poderosos castanheiros. Pretendias
trocar as estações, a posso dum lugar escolhido, ser
uma folha de chama no rastilho de uma ideia poída,
fender a água como fissura aberta
onde se afundaram os barcos solenes do passado.

Egito Gonçalves
Luz Vegetal
1975, ed. Limiar
pormenor de uma pintura de John Everett Millais

domingo, 24 de abril de 2011

A Outra Face do Vidro (fragmento)

É sempre um corpo o que vem povoar
este horizonte,
o espaço íntegro em que a vida se move,
e no entanto a febre não teve aí o seu núcleo
-ou melhor:
o que iluminou o deserto foi então uma voz.
As coisas mudavam de sentido, a sede
estagnada
despertava; a pele caía; uma visão
de raízes aumentava
-ninguém aceita a perda-, braços
apertam água como peixes, apertam
a vida: assim
recebi essa voz que chegava pelo silêncio
dos olhos; silêncio móvel
através do qual as coisas começavam
insensivelmente
a pertencer-me; uma espiral de esquecimento
subia da praça escura
em cujo fundo
dormem as árvores. Há
decerto
em tudo isto um exorcismo; não sei
em que escala se mede
a extensão daquilo em que me transformo;
não há plasma encerrado, é
um desenho livre
que apressa os dias, mãos azuis
que sobem para a conquista
e se aninham
no beiral da alegria. A voz golpeia,
tem inflexões de talismã que estilhaçam
a dor; ouço
o riso que desenha as pupilas e fico
como se tivesse descoberto
num momento
a outra face do vidro.

Egito Gonçalves

Os Pássaros Mudam no Outono

1981, ed. Limiar

pintura de Felix Labisse

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O Sistema Interrogativo (IV)


Às vezes
no coração da noite
debruço-me sobre ti e interrogo
a sombra da tua pele.

Pergunto com o olhar, depois
os lábios movem-se,
toco-te, todo um ciclo
recomeça.

Que gesso aprisiona o sangue
que nos morde? Que navio espero
no final dos meus gestos?

O importante é saber
onde dói.

Egito Gonçalves
O Fósforo na Palha seguido de O Sistema Interrogativo
1971, ed. Dom Quixote
fotografia de Henri Cartier-Bresson

quinta-feira, 6 de maio de 2010

um poema



As sereias transformaram-se em gaivotas.
Repousavam
sob essa forma aérea entre a duna
e a onde, banhando-se no sol. Duas ternuras
moviam-se em charneira, faces
de concha bivave que formavam- era
ainda uma composição marítima onde
os próprios anjos
se inscreviam (é certo
serem anjos primários, sem metafísica,
um deles mesmo repetente.) Cito
esse conjunto
porque me pareceu paradigmático: chave
em plena tarde
rodando a lingueta de um nirvana;
a minha boca dizia no siêncio
as orações correspondentes. A vida
estava imóvel
como um tecido celular e dediquei
ao oceano
o último acto: voz de água
na linha exacta da praia, calma vital,
língua na bainha, olhos
postos no carregar de imagens ao relógio.
Ali o ser
e o tempo atravessavam o anel
onde se prende
a erva renascente. Escrevo
a partir daí este poema, a fidelidade
a um céu sem nuvens; também
no mesmo anel me enrolo
e o tema
é que o momento se eternize. O tema
e o seu código: as zonas
quentes do inverno.






Egito Gonçalves
As Zonas Quentes do Inverno
1977, ed. Inova
imagem de Edward Hooper

terça-feira, 6 de abril de 2010

2 poemas de Roberto Juarroz



Por vezes a morte roça-nos os cabelos,
despenteia-nos
e não entra.
É um grande pensamento que a detém?
Ou talvez nós pensemos
algo maior que o próprio pensamento?

A morte já não afronta os espelhos.
Tem medo de os apagar ou os partir.
E medo, um medo bem maior,
de se apagar ou se partir.

No entanto
resta sempre um espelho que se olha na morte
como se ela fosse simplesmente
um espelho de espelhos,
um espelho em frente de outro
sem mais nada entre eles.





Roberto Juarroz
trad. Egito Gonçalves
Limiar, nº1
ed. Limiar, 1992
imagem de Cláudia Melo

quarta-feira, 24 de março de 2010

Egito Gonçalves: Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda Um Copo de Crepúsculo

A CIDADE ÍNTIMA


Fernando Pessoa ditou o seu último poema precisamente no dia em que morreu.
Com excepção dele, é raro o poeta português que escreveu literalmente até à morte e que, além disso, teve hipótese de se despedir.
Egito Gonçalves é um desses raros casos.
O percurso poético do autor inicia-se em 1950 com a publicação de "Poema Para os Companheiros da Ilha". Dada a sua clara inclinação para uma poesia politizada é rapidamente atirado para a prateleira dos neo-realistas. E, logo desde o início, há uma característica que é por assim dizer atirada para segundo plano: a dimensão lírica. Numa época em que como está visto, todos tinham que escolher de que lado queriam ficar (A estética dos surrealistas ou a ética dos neo-realistas.) não são raros os casos dos que não se confinam nem a um nem a outro (Por exemplo Jorge de Sena.). O caso de Egito Gonçalves envereda claramente por uma dimensão ética mas em momento algum renuncia à estética (Sem no entanto resvalar para qualquer situação surrealista ou surrealizante.) e será talvez esse o ponto forte da sua poesia.
A sua obra poética foi-se desenvolvendo e desbravando novos terrenos ligados, por exemplo, ao erotismo, muito latente em obras como "Luz Vegetal" (Limiar, 1975) ou "Falo da Vertigem" (Limiar, 1983) até à palavra que quase caíra em desuso mas que Rosa Alice Branco aponta com muita pertinência no seu prefácio a "E No Entanto Move-se" (Quetzal, 1995), a ternura. É esta que irá pontuar nos últimos livros do autor: e se em "O Mapa do Tesouro" (Campo das Letras, 1997) esta "ternura" acaba por resultar em poemas menos conseguidos, em "A Ferida Amável", publicado conjuntamente com "Lettera Amorosa" (Campo das Letras, 2000) ela acaba por resultar com a maior das eficácias, colocando Egito Gonçalves entre os raros poetas contemporâneos que cantam o "amor feliz".
Antes de falar um pouco sobre o último livro do autor, publicado postumamente em 2006 pela Campo das Letras, penso ser pertinente referir o livro "E No Entanto Move-se".
Trata-se de uma recolha de poemas desde os anos 50 até ao início dos anos 90 (Alguns dos quais publicados em antemão na antologia "O Pêndulo Afectivo".) que se caracterizam por ser "poemas de viagem", uma classificação excessivamente resumida mas que explica bem a génese do livro aliás triplamente premiado. Nele o poeta se confronta com cidades estrangeiras, com a observação vantajosa e mais completa de se vir de fora, e, uma vez mais fazendo uso do prefácio de Rosa Alice Branco a este livro, é através de certos elementos como a Mulher ou a poesia ou determinado monumento que o sujeito poético encontra a sua ponte para a cidade estranha que percorre.



É importante falar disto porque "Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda um Copo de Crepúsculo" nos mostra precisamente a mesma situação: um confronto poeta-cidade: mas desta vez sem qualquer tipo de intermediário. A dedicatória do livro é sucinta, dedica-o à cidade do Porto. E desta vez, uma poesia que se pode dizer (Ainda que me pareça rebuscado.) ter uma dimensão geográfica é escrita com a maior intimidade. De certa forma, quase como se essa ternura que acima se referiu fosse sentida também pela cidade, quer seja a cidade construída, quer seja a cidade vivida. E é também um livro onde se colocam em confronto os dois pontos essenciais da vida: a infância e a morte. Se por um lado nos poemas iniciais lemos uma espécie de "memórias" da cidade do Porto nos anos 40 ou 50, é também neste livro que sentimos a proximidade da morte como se pairasse sobre essas mesmas memórias do passado. Talvez um verso de Isabel de Sá sobre Marguerite Duras faça sentido a propósito deste livro "começou a ser velh[o] no último livro". Velho apenas no sentido em que se confronta directamente com a morte.
Não há no entanto qualquer tipo de queixume ou de lamentação. Pelo contrário. As coisas são observadas com a naturalidade e o lirismo sobre o qual Egito Gonçalves edificou toda a sua obra. É quase como se houvesse uma espécie de ternura pela própria morte, precisamente porque esta é aceite como ponto essencial e natural da vida. E a cidade existe no livro como testemunha de todo um percurso e será talvez essa a razão que me leva a colocar este livro no topo dos livros de Egito Gonçalves: a noção de como a cidade enquanto organismo vivo e de algum modo intemporal é o espelho da vida. A mesma cidade em que lemos Egito Gonçalves e os amigos a ir ao Rivoli ou a brincar no Jardim da Cordoaria é a mesma cidade em que, no último poema, inacabado, o poeta sente as árvores dançando ao vento e onde vê o "copo de crepúsculo" que se interpõe entre ele e a sua morte.
Retomando o início deste texto, foram raros os poetas que tiveram a felicidade de se despedir. Egito Gonçalves foi um desses raros poetas. E despede-se, afirmo-o, com uma beleza e uma lucidez tão implacáveis que nos deixa verdadeiramente atónitos, ficamos nós mesmos frágeis e expostos à morte. A poesia que deve, segundo muitos que eu apoio, ser um murro no estômago. E o último poema de Egito Gonçalves é sem sombra de dúvida o derradeiro murro no estômago. E é também o final avassalador que a obra poética de Egito Gonçalves merecia.








Podem (E devem.) ler o poema em questão aqui

Notícias do Bloqueio



Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
.....................e a esperança reproduz-se






Egito Gonçalves
A Viagem com o Teu Rosto
1958 edição Europa-América
imagem de Félix Labisse

domingo, 21 de fevereiro de 2010

último poema de Egito Gonçalves, incompleto e sem título




Entre mim e a minha morte
há ainda um copo de crepúsculo.
Talvez pequenas coisas
ainda respirem, não as distingo,
há uma névoa que me mantém na sombra.
Sei que lá fora as árvores
dançam ao vento, o que perdem
no outono ganham na primavera.
Nós vamos deixando pelo caminho
os farrapos da pele


Egito Gonçalves
Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda Um Copo de Crepúsculo
2006, edição Campo das Letras
aguarela de António Cruz