A CIDADE ÍNTIMA
Fernando Pessoa ditou o seu último poema precisamente no dia em que morreu.
Com excepção dele, é raro o poeta português que escreveu literalmente até à morte e que, além disso, teve hipótese de se despedir.
Egito Gonçalves é um desses raros casos.
O percurso poético do autor inicia-se em 1950 com a publicação de "Poema Para os Companheiros da Ilha". Dada a sua clara inclinação para uma poesia politizada é rapidamente atirado para a prateleira dos neo-realistas. E, logo desde o início, há uma característica que é por assim dizer atirada para segundo plano: a dimensão lírica. Numa época em que como está visto, todos tinham que escolher de que lado queriam ficar (A estética dos surrealistas ou a ética dos neo-realistas.) não são raros os casos dos que não se confinam nem a um nem a outro (Por exemplo Jorge de Sena.). O caso de Egito Gonçalves envereda claramente por uma dimensão ética mas em momento algum renuncia à estética (Sem no entanto resvalar para qualquer situação surrealista ou surrealizante.) e será talvez esse o ponto forte da sua poesia.
A sua obra poética foi-se desenvolvendo e desbravando novos terrenos ligados, por exemplo, ao erotismo, muito latente em obras como "Luz Vegetal" (Limiar, 1975) ou "Falo da Vertigem" (Limiar, 1983) até à palavra que quase caíra em desuso mas que Rosa Alice Branco aponta com muita pertinência no seu prefácio a "E No Entanto Move-se" (Quetzal, 1995), a ternura. É esta que irá pontuar nos últimos livros do autor: e se em "O Mapa do Tesouro" (Campo das Letras, 1997) esta "ternura" acaba por resultar em poemas menos conseguidos, em "A Ferida Amável", publicado conjuntamente com "Lettera Amorosa" (Campo das Letras, 2000) ela acaba por resultar com a maior das eficácias, colocando Egito Gonçalves entre os raros poetas contemporâneos que cantam o "amor feliz".
Antes de falar um pouco sobre o último livro do autor, publicado postumamente em 2006 pela Campo das Letras, penso ser pertinente referir o livro "E No Entanto Move-se".
Trata-se de uma recolha de poemas desde os anos 50 até ao início dos anos 90 (Alguns dos quais publicados em antemão na antologia "O Pêndulo Afectivo".) que se caracterizam por ser "poemas de viagem", uma classificação excessivamente resumida mas que explica bem a génese do livro aliás triplamente premiado. Nele o poeta se confronta com cidades estrangeiras, com a observação vantajosa e mais completa de se vir de fora, e, uma vez mais fazendo uso do prefácio de Rosa Alice Branco a este livro, é através de certos elementos como a Mulher ou a poesia ou determinado monumento que o sujeito poético encontra a sua ponte para a cidade estranha que percorre.
É importante falar disto porque "Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda um Copo de Crepúsculo" nos mostra precisamente a mesma situação: um confronto poeta-cidade: mas desta vez sem qualquer tipo de intermediário. A dedicatória do livro é sucinta, dedica-o à cidade do Porto. E desta vez, uma poesia que se pode dizer (Ainda que me pareça rebuscado.) ter uma dimensão geográfica é escrita com a maior intimidade. De certa forma, quase como se essa ternura que acima se referiu fosse sentida também pela cidade, quer seja a cidade construída, quer seja a cidade vivida. E é também um livro onde se colocam em confronto os dois pontos essenciais da vida: a infância e a morte. Se por um lado nos poemas iniciais lemos uma espécie de "memórias" da cidade do Porto nos anos 40 ou 50, é também neste livro que sentimos a proximidade da morte como se pairasse sobre essas mesmas memórias do passado. Talvez um verso de Isabel de Sá sobre Marguerite Duras faça sentido a propósito deste livro "começou a ser velh[o] no último livro". Velho apenas no sentido em que se confronta directamente com a morte.
Não há no entanto qualquer tipo de queixume ou de lamentação. Pelo contrário. As coisas são observadas com a naturalidade e o lirismo sobre o qual Egito Gonçalves edificou toda a sua obra. É quase como se houvesse uma espécie de ternura pela própria morte, precisamente porque esta é aceite como ponto essencial e natural da vida. E a cidade existe no livro como testemunha de todo um percurso e será talvez essa a razão que me leva a colocar este livro no topo dos livros de Egito Gonçalves: a noção de como a cidade enquanto organismo vivo e de algum modo intemporal é o espelho da vida. A mesma cidade em que lemos Egito Gonçalves e os amigos a ir ao Rivoli ou a brincar no Jardim da Cordoaria é a mesma cidade em que, no último poema, inacabado, o poeta sente as árvores dançando ao vento e onde vê o "copo de crepúsculo" que se interpõe entre ele e a sua morte.
Retomando o início deste texto, foram raros os poetas que tiveram a felicidade de se despedir. Egito Gonçalves foi um desses raros poetas. E despede-se, afirmo-o, com uma beleza e uma lucidez tão implacáveis que nos deixa verdadeiramente atónitos, ficamos nós mesmos frágeis e expostos à morte. A poesia que deve, segundo muitos que eu apoio, ser um murro no estômago. E o último poema de Egito Gonçalves é sem sombra de dúvida o derradeiro murro no estômago. E é também o final avassalador que a obra poética de Egito Gonçalves merecia.
Podem (E devem.) ler o poema em questão aqui
Sem comentários:
Enviar um comentário