domingo, 24 de abril de 2011

A Outra Face do Vidro (fragmento)

É sempre um corpo o que vem povoar
este horizonte,
o espaço íntegro em que a vida se move,
e no entanto a febre não teve aí o seu núcleo
-ou melhor:
o que iluminou o deserto foi então uma voz.
As coisas mudavam de sentido, a sede
estagnada
despertava; a pele caía; uma visão
de raízes aumentava
-ninguém aceita a perda-, braços
apertam água como peixes, apertam
a vida: assim
recebi essa voz que chegava pelo silêncio
dos olhos; silêncio móvel
através do qual as coisas começavam
insensivelmente
a pertencer-me; uma espiral de esquecimento
subia da praça escura
em cujo fundo
dormem as árvores. Há
decerto
em tudo isto um exorcismo; não sei
em que escala se mede
a extensão daquilo em que me transformo;
não há plasma encerrado, é
um desenho livre
que apressa os dias, mãos azuis
que sobem para a conquista
e se aninham
no beiral da alegria. A voz golpeia,
tem inflexões de talismã que estilhaçam
a dor; ouço
o riso que desenha as pupilas e fico
como se tivesse descoberto
num momento
a outra face do vidro.

Egito Gonçalves

Os Pássaros Mudam no Outono

1981, ed. Limiar

pintura de Felix Labisse

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