sábado, 24 de setembro de 2011

A Jornada dos Cabisbaixos


Eu não acredito em eternidades. Acredito no entanto que há tempos que tanto duram, que nos parece realmente que se prolongam para sempre, ainda que essa percepção possa ser errónea. 
A imagem de um bebé numa piscina, com os braços abertos para uma nota, como se lhe fosse dar um afectuoso abraço é uma imagem que tem tudo para nos dar essa impressão de durar para sempre. A 24 de Setembro de 1991, exactamente há vinte anos atrás, era lançado um álbum com essa imagem na capa. 'Nervermind' era o segundo LP dos Nirvana, que vinte anos depois continua a ocupar um estatuto mais que especial, verdadeiramente único na história do rock. Talvez ainda hoje não consigamos entender porquê. 
'Nevermind' está longe de ser o melhor álbum dos Nirvana, no entanto, ele é o mais emblemático. Smells Like Teen Spirit é a canção que abre o álbum, foi o single e é justo dizer que, ao lado de Zombie dos The Cranberries, é um dos hinos de toda uma geração. Não será de todo inadequado dizer que a geração que por estas duas canções fica marcada é a minha, pois, apesar de eu ser pouco mais que uma criancinha quando esta canção aparece, a verdade é que elas vão, ao longo da década de noventa conquistar o seu estatuto, precisamente junto daqueles que têm hoje a minha idade ou próxima.
O que diz então 'Nevermind' que outros álbuns não disseram? Olhar o rosto de Kurt Cobain, ler-lhe as entrevistas ou ler as letras que escrevia pode muito bem responder a esta pergunta. Kurt Cobain era o homem de rosto belo, mas cujos olhos denunciavam o cumprir de uma penitência que era imposta de dentro, e não pelo exterior. Na capa do álbum, o bebé alegremente aceita a nota que lhe deitam como um isco, e que representa todo um sistema -capitalista e outro- que a sociedade espera que todos aceitemos assim, de braços abertos, e sorrindo inscientes. E esta é a história de 'Nevermind': a história de uma geração que está presa no momento da fotografia: o momento antes de aceitar o isco, o momento em que nos perguntamos se realmente devemos aceitá-lo, ou se devemos agarrá-lo para o destruir, ou se devemos terminantemente recusá-lo. O resultado, cantado e tocado, teria que ser desconcertante, e assim é. Onde Smells Like Teen Spirit é um relato de uma certa leviandade, de um não querer saber, as outras canções são construídas com base na banalidade do quotidiano, de onde o autor, Cobain, sabe extrair a violência de um pensamento invasor, de uma imagem perturbante, de um sentimento de repulsa e de nojo que causa a vontade da auto-destruição. Como na melhor poesia, aqui encontramos o avesso do visível: é um mundo interior que se volve nocivo quando confrontado com um mundo exterior em que não temos lugar. In Bloom, Come as You Are, Lithium ou Territorial Pissings são exemplos dessa dualidade, entre a vontade de aproximação e a mágoa de se ser consciente da impossibilidade.
Musicalmente, tudo em 'Nevermind' é sujo, explosivo e, de certo ponto de vista, quase excessivo. Onde as guitarras e a bateria parecem criar tensões doentias e violentas, a voz surge entre o berro e o sussurro, as palavras mal pronunciadas. Tudo nos dá a sensação de estarmos dentro da mente de alguém, onde o que interessa não é exactamente a realidade, mas o efeito que ela tem em nós, esse que, como já foi dito, é nocivo.

'Nevermind' não tem a qualidade que tem, por exemplo, 'In Utero' (1993), mas tem outras características, suficientes para fazer dele uma insígnia, de falar daquilo que passou ao lado da maioria dos músicos. E, acima de tudo, 'Nevermind' é um relato na primeira pessoa do plural, e não uma observação por terceiros. Isso o faz tão altissonante.
A fechar o álbum está uma das canções mais famosas dos Nirvana, Something In The Way, que é quase uma crónica de uma morte anunciada. Difícil será encontrar uma outra peça artística onde estejam tão nítidos os contornos da dor, da culpa, do luto e do arrependimento. Esta canção tão simples vem confirmar 'Nevermind' como o diário de uma jornada, a jornada dos cabisbaixos, que não assistiam a 'Beverley Hills', não sonhavam com Hollywood e, se calhar, não sonhavam com nada mesmo. E como existirão sempre os cabisbaixos, aqueles que tiveram o azar de nascer com os olhos abertos, eu creio que não é só a capa de 'Nevermind' que permanecerá nesse tempo longo que por ilusão de óptica parece eternidade: as canções do álbum também ficarão, como uma prova de que sempre haverá alguém que se recusa a morder o isco, mesmo que o preço seja o da própria vida, como aconteceu com Kurt Cobain que hoje saúdo, mais do que nos outros dias.

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