sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Maria Ondina Braga: A Casa Suspensa

DENTRO

Em 1965, era editado o livro de crónicas 'Eu Vim Para Ver a Terra', de Maria Ondina Braga -que, na altura, assinava apenas Maria Ondina-, um livro que daria origem a um percurso literário fecundo, mas também muito discreto. No entanto, para falar de uma novela como 'A Casa Suspensa', talvez seja importante referir uma questão que escapa a muitos leitores: é que, aos 17 anos, por isso, em 1949, é que se deu a verdadeira estreia de Maria Ondina, com um livro de poemas chamado 'O Meu Sentir', a que se seguiria outro, em 1952, 'Almas e Rimas'. Estes dois livros apresentam poemas de uma certa ingenuidade, emotivos, sim, mas longe de poderem ter a relevância da obra em prosa que se iniciaria treze anos depois. Ficam, portanto, estes poemas como uma espécie de juvenília da autora.
Autora de uma escrita intimista, onde alteridade e auto-representação se fundem constantemente (Sendo disto exemplo maior o livro 'Estátua de Sal' de 1969.), não seria nunca de estranhar uma linguagem dita poética. No entanto, a presença da poesia sente-se em 'A Casa Suspensa' por razões outras que a linguagem. É o próprio conceito da história que nos remete para o universo poético, onde a metáfora, com toda a força, exerce um poder transfigurador sobre a história que está ser contada e sobre os meios usados para a contar.
Editado em 1982, 'A Casa Suspensa' é uma novela de certa forma epistolar. Digo de certa forma porque, apesar de todo o corpo do texto ser escrito como uma sucessão de cartas, essas cartas são escritas por Francisca Teresa a uma mulher inventada por ela. Isa, essa mulher, parece representar um conveniente oposto de Francisca Teresa, ou Chica, ideia subtilmente introduzida quando Chica justifica o nome escolhido para a sua 'personagem':

Perguntarás por que te nomeio Isa e não Isabel ou Isaura, como se pronunciasse só metade do teu nome. Escolhi Isa precisamente pela brevidade da palavra, um sopro, digamos, um suspiro.
(p.9)

ao passo que, do seu próprio nome, Chica dirá

chamo-me Francisca Teresa, da minha madrinha que tinha, aliás, muito desgosto do nome. Por sua vontade punha-me Noémia, punha-me Guiomar. Na nossa família, todavia, tradição vinha logo abaixo do temor de Deus (...) Nome antigo, fidalgo, Francisca Teresa, actualmente em voga entre os burgeses.
(p.11)

Quase instintivamente, poderíamos pensar que é escusada toda a história da invenção de uma destinatária para as cartas da personagem central. No entanto, vamos percebendo logo depois das páginas introdutórias que a escrita destas cartas é movida pela necessidade de Chica de revelar os seus segredos e as suas dúvidas ou, por outras palavras, a sua intimidade; mas que a sua própria personalidade, algo fechada e desconfiada, não lhe permitira fazê-lo a alguém real: a alguém que não ela mesma. E assim entendemos que Isa é uma segunda Chica, distante mas próxima, feita para ouvir quando a outra quer falar. A relação é portanto aquela que se opera num espelho, não porque Chica procure o seu reflexo, mas porque pretende dialogar com ele, servindo-se, para isso, dos aspectos em que o seu reflexo é oposto a si.
Ao longo das páginas da novela, vamos sentindo a hesitação e o reiterada incapacidade de Chica revelar o seu segredo, mesmo que a uma mulher inexistente. Assim sendo, para o revelar, Chica acaba por ir fazendo relatos de memória quer da casa onde vive, um chalé de campo, quer da história da sua família.
A casa, percebemos, ocupa um lugar central na narrativa, já que é ela que mais fielmente projecta a intimidade de Francisca Teresa

na casa que me deixou a avó e que se esfarela roída pela formiga branca.
(p.7)

O insecto que devora lentamente a casa, e que não pode ser eliminado, funciona aqui como o segredo de Francisca e, um pouco, como toda a sua história de vida: ele destrói lenta e cruelmente, mas certificando-se que deixa sempre alguma coisa, para a refeição não terminar.
Relativamente à história da família, encontramos uma muito contundente e expressiva explicação:

nas famílias, há geralmente anéis que passam de geração para geração, ou certas feições, ou, digamos, uma vocação artística. E doenças, esquisitices, tendências, por exemplo, para a  hipocondria, o suicídio. Na nossa é a falência do amor.
(p.24)

A história deixa de ser história individual e torna-se um padrão, padrão a que Francisca não consegue fugir. À viuvez prematura e não confirmada da avó, sucede-se a relação glacial entre a mãe a o pai, causa ou consequência das dúvidas quanto à verdadeira identidade do pai de Francisca. E, por fim, ela mesma, Francisca, encontra-se num casamento que é fruto de um erro, de uma má consciência dos afectos, onde a questão da traição vai ganhando terreno.
No fundo, esta história poderia ser uma espécie de representação de alguns aspectos da condição humana ou, particularmente, feminina, a que não são estranhos a rejeição de alguns códigos sociais a fatalidade associada a uma cedência forçada a estes. O resultado é uma mulher infinitamente só, que ganha em frieza o que perde em verdade, tornando-se exterior à sua própria vida, ao mesmo tempo que começa a sentir intimamente o mal-estar de viver contrariada e descrente daquilo que construiu, referindo-se à sua vida como vida que imit[a] viver (p.9).
E esse incómodo torna-se de tal modo exacerbado, funde-se tão profundamente na personalidade de Francisca que, derradeiramente, acaba por impedi-la de revelar concretamente a natureza do seu segredo à sua destinatária imaginada, limitando-se, portanto, a dar pistas suficientes para que ele seja subentendido.
A narração do isolamento, que deixa a mulher suspensa na vida, na casa isolada, é feita numa linguagem sóbria e delicada, como é habitual em Maria Ondina Braga, mas é feita, acima de tudo, com uma nitidez e um equilíbrio muito difíceis e que resultam numa novela densa, enigmática e bela, onde as forças destrutivas da mentira e da inércia são descritas de uma forma a um tempo crua e sonhadora.


No entanto, e aqui regresso à ideia inicial deste texto, é preciso sermos críticos o suficiente para perceber que, em termos de história, 'A Casa Suspensa' não vem trazer nada de assinalavelmente novo. O que o faz, portanto, ser um grande livro? A meu ver, é precisamente toda uma formação poética que se faz sentir, esse poder de transfiguração, em que a realidade, que tem sempre o seu quê de banal, levanta voo e se transforma em algo de grandioso. E todo este livro está, realmente, subordinado a um processo muito poético, conseguido através das torções psicológicas do tempo, em que aspectos da vida de personagens de gerações diferentes se fundem completamente; através da forma descarnada como os sentimentos são escritos, desdobrando-se frequentemente em vários sentidos; e até na ideia do diálogo com um 'eu' inventado, como um alter ego, mas cuja invenção nos permitirá dizer a verdade e revelar o rosto, fazendo-nos, em última análise, ultrapassar os limites do ego e do super-ego. Por isso a poesia está muito presente em 'A Casa Suspensa', quase que estruturando-o.
E, um pouco como vai acontecendo em quase todos os livros de Maria Ondina, sentimos alguns ecos da sua vida na vida da personagem, nomeadamente Paris, onde a escritora viveu e trabalhou, o que a confirma como uma das autoras da dita prosa intimista, um 'género' difícil e, em muitos aspectos, negligenciado, mas que deu já resultados tão importantes como os livros de Irene Lisboa, de Ilse Losa, de Luísa Dacosta ou alguns livros de Luiz Pacheco e, de certa forma, de muitas páginas dos 'Sinais de Fogo' de Jorge de Sena. E estou certo que este 'A Casa Suspensa' será outro desses 'filhos maiores' de um género onde o diário, a ficção e a poesia se confundem da forma mais sublime.

3 comentários:

Graça Martins disse...

PARABÉNS João Borges.
Li pela manhã esta bela análise de leitura ao livro "A Casa Suspensa" da escritora Maria Ondina Braga e fiquei encantada. Como desatas bem os meandros de um livro!!!
Embora tenha ilustrado e lido outros livros dela, fiquei curiosa pela leitura deste livro. Sei apenas pela editora dela, na altura Loy Rolim, que a Maria Ondina Braga era uma mulher muito solitária, passava muito tempo em Macau e morreu muito só...e como dizia a Loy: injustamente esquecida. Mas Portugal é pioneiro no esquecimento de mulheres criadoras. Revela sempre o seu machismo e misógenia encoberto nessas atitudes...

Supermassive Black-Hole disse...

Tens razão, Graça, Portugal é perito em esquecimentos, e, se se tratar de mulheres, pior ainda.
A Maria Ondina Braga disse numa entrevista:

'Sou uma mulher que escolheu a solidão'

e, de facto, foi. Este livro dela realmente surpreendeu-me, por conseguir transformar uma história prosaica num texto realmente forte, que mexe muito com questões de identidade; e também da relação com os outros, em que se nota que a figura central, que nalgumas coisas projecta a própria Maria Ondina, sente realmente uma certa hesitação perante o relacionamento com o outro, com o casamento, etc.
E foi um dos primeiros (Ou o primeiro mesmo.) livros editados pela Relógio d'Água.

Anónimo disse...


É verdade uma mulher extraordinaria ,que conheci desde criança .Não esqueço nunca as tardes passadas em Braga quando a ia visitar com a minha tia ,colega e amiga de família .
Recordo com muita saudade ,o seu ar sempre sereno ,mesmo no meio do grande barulho que faziamos a brincar ,
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