sexta-feira, 28 de maio de 2010

[o jardim cortado]



quando eu tinha muitos sonhos vivos que me faziam ter uma idade superior à que a palavra idade me daria, fugia muitas vezes para o quintal de minha casa, doente de toda a gente, e abraçava as árvores mortas. elas encostavam a seiva ao meu coração, e eu aspirava uma vida omnipotente de ventre e de força. ouvia-as naufragar dentro do meu coração com a sua voz de rio morto. aí nasciam as metáforas, os longos jardins cortados, a minha forma afásica de dizer ao mundo que me desejava apenas a mim o próprio fim, cortado por todas as espécies de perversão amorosa; aí eu aprendia que tinha que correr uma distância por dentro até chegar aos vários degraus que implicavam a minha morte.
a árvore que dava nêsperas na minha infância morreu quando eu tinha doze anos. havia uma cobra encostada á raíz. disse-me que era em tudo igual ao instrumento mais potente do meu corpo, o mais elástico de vontade, o mais atento ao cérebro, à memória, ao inesperado. deu-me depois um livro. eu comi o livro, como o apocalipse mandava.
perguntei-lhe o nome. disse-me apenas que se chamava crevel. eu disse-lhe que já tinha lido um livro de apelido parecido, mas ela fugiu para dentro do livro e nunca mais a vi a ela, nem à árvore. mas um destes dias, fazendo amor violentamente, uma cabeça da cobra deitou dentro de ti uma seiva de livro, e os meus galhos de asas cortadas abriram os teus ombros.


Pedro Sena-Lino
As Flores do Sono: Prelúdios e Fugas
2002, ed. Litera Pura

imagem de Magritte

Sem comentários: