terça-feira, 4 de maio de 2010

Salette Tavares: Lex Icon

O SÍMBOLO REVISITADO

Em 1971, “Lex Icon” (Moraes ed.) haveria de ser o último livro de originais publicado por Salette Tavares. Como podemos ler no texto de Rui Torres no catálogo da recente exposição “Desalinho das Linhas”, a produção de Salette Tavares não parou nem abrandou após 1971, mas a maioria dos textos posteriores permanecem, por alguma razão, inéditos, mesmo depois da morte da autora, em 1994. Salvam-se os poemas inéditos que vão de 1957, data da edição de “Espelho Cego” (ed. Ática), primeiro livro, a 1971, data da edição de “Lex Icon”, recolhidos ainda na edição da “Obra Poética 1957-1971” de 1992 (ed. Imprensa Nacional- Casa da Moeda).
No entanto, mesmo sabendo que existe produção depois de 1971, que inclui poesia, poesia visual, prosa e ensaios, “Lex Icon” não deixa de parecer, ainda agora, uma espécie de livro testamentário. Testamentário no sentido em que completa perfeitamente o projecto iniciado com “Espelho Cego” e se posiciona como quase uma base teórica para a poesia visual de Salette Tavares, provavelmente a mais interessante da poesia experimental portuguesa, ao lado da de Ana Hatherly.

O livro é formado por três capítulos: “Lex”, “Icon” e “Lex Icon”. Será interessante analisar o peso das palavras para que se compreenda este livro. “Lex” poderá ser uma abreviatura para “léxico”, que compreende um campo de palavras relativo a determinada ideia, e “Icon” é evidentemente um símbolo.
O primeiro capítulo, formado por um poema, “As Lições”, parece realmente explorar as possibilidades de criação de um campo lexical relacionado com a poesia. São assim colocadas lado a lado ou em contraponto palavras como “falar”, “escrever”, “ler” e “ver” entre outras, parecendo-me, no entanto, serem estas as mais significativas para uma leitura da obra de Salette Tavares, pois a sua poesia, gráfica ou outra, não passa sem incorporar a fala (O efeito sonoro.) através da escrita, as referências literárias e filosóficas e, claro, o lado visual. Mas este poema centra-se essencialmente no acto de inverter ou subverter estes verbos:

“Ensinaram-me a falar
aprendi a escrever.

Ensinaram-me a escrever
aprendi a falar.

Ensinaram-me a ler
aprendi a ver.

(…)”

(pag.11)

Este trecho pode perfeitamente funcionar como uma arte poética, uma explicação da poesia de Salette Tavares.
“Icon”, segundo capítulo, é também formado por apenas um poema, “Os Objectos”, mas este ícon é algo abstracto, é um “produto” que se “fabrica”. Poderá este pequeno poema dar continuação ao primeiro capítulo, pois se um explora a origem remota da criação poética, o outro foca-se no acto da criação em si, ou, de outra maneira, um vai ao passado (E é escrito efectivamente no passado, na dualidade “ensinaram-me”- “aprendi”.) e o outro ao presente:

Fabricar é o mais religioso serviço do homem.
A fábrica é uma igreja de pé.
Os produtos são salmos para uso diário
dos ofícios permanentes da fé.


(pag.15)

O terceiro capítulo, “Lex Icon” faz a junção das duas possibilidades abertas pelos dois primeiros capítulos. Lança um “icon”, na maioria das vezes no título, e o poema abrange todo um léxico sobre ele, mantendo a regra de ouro de o subverter, criando muitas vezes jogos de distorção e inversão de sentidos, momentos de originalidade. Por exemplo em “A Luva”:

“Uma luva é uma escultura morta
quando jaz ou quando se transporta
dentro do bolso da carteira ou da mão.

Uma luva é uma escultura viva nova
quando se deixa penetrar pelo amor da mão.
(…)”

(pág.23)

Esta (des)multipilicação de sentidos ou léxicos ou visões de determinado símbolo- o referido “icon”- não só pauta a concepção da poesia de Salette Tavares, como também funciona como base teórica da poesia visual da autora, como acima referi: em poemas visuais como “Porta das Maravilhas” que é, além de visual, tridimensional, escultórico, existem dois elementos distintos: o poema em si, que poderia perfeitamente integrar uma recolha como “Lex Icon”, e a porta de acrílico sobre o qual está o poema serigrafado, ou seja, o novo sentido atribuido ao objecto da porta pela poeta é sobre uma porta colocado. Não é difícil, na leitura dos poemas de “Lex Icon” imaginar o mesmo processo com a maioria dos poemas. Assim como uma considerável parte da poesia gráfica da autora poderia perfeitamente estar inserida num livro, não se esgotando na possibilidade visual (Ainda que haja, claro, poemas que são exclusivamente visuais, como o caso da famigerada “Aranha” de 1963.).
Além destes poemas existem, como dificilmente poderia deixar de ser, alguns mais marcados pela atmosfera da época a que pertencem, e particularmente aos tiques da poesia experimental. Um caso flagrante disto é o famoso “O Bule”, um poema que legitima o sentido sonoro acima referido a propósito do primeiro poema do livro. Poemas como este, ou então “O Sapato”, poema dramático, são talvez aqueles que mais abrem caminho para aquilo que seria a exposição “Brincar” em 1979, na Galeria Quadrum, que afirmou em definitivo o nome de Salette Tavares como um dos mais originais da poesia experimental portuguesa.
Ainda sobre a componente visual desta poesia, interessa sempre referir a organização do texto sobre a página, uma característica que à partida se perde numa leitura em voz alta, mas que tem o seu interesse numa leitura do próprio livro, uma vez que introduz no poema momentos de pausa, enumeração ou divagação: é importante referir isto porque não faltam na poesia portuguesa poemas onde esta organização do poema na página é gratuita, mas não é o caso de Salette Tavares: como disse, á partida essa organização perde-se numa leitura oralizada, mas, dada a sua real importância na leitura, a organização funciona no sentido oposto, ela dá indicações para uma leitura do poema, quase como no teatro as indicações cénicas. Serve este comentário de plataforma para outra ideia que me parece presente em “Lex Icon”: a ideia de que precisamente estes poemas precisam “fugir” da página, ganhar uma outra dimensão que, se não é espacial ou gráfica, é pelo menos em voz alta, o que não deixa de ser uma outra dimensão para o texto escrito. Como se estes poemas não tivessem sido escritos para ser lidos silenciosamente.
Interessa, se calhar, neste momento, olhar um pouco para trás na produção poética de Salette Tavares. Para isso, foco-me no primeiro livro da autora, o “Espelho Cego”: o espírito do texto é bastante mais difuso, menos focado, mas é interessante verificar que, apesar disso, “Espelho Cego” não deixa de lançar as ideias que serão levadas à plenitude em “Lex Icon”: no primeiro livro há já uma vontade de incidir sobre ideias ou símbolos e explorar os campos mais habitualmente a eles associados, e há já também este interesse pela organização do poema na página, como se logo nos primeiros poemas já houvesse a exigência de uma leitura em voz alta, de uma vertente física no poema. Mas claro que estas ambições são mais plenamente preenchidas em “Lex Icon”, por assim dizer, Salette Tavares demonstra-se no seu último livro publicado muito mais à vontade para resolver os problemas que coloca do que no primeiro. O que é natural.
Sem um conhecimento da obra posterior a “Lex Icon” é difícil perceber se o trabalho de Salette Tavares terá ido ainda mais longe na exploração destas possibilidades. No entanto, e retomando a ideia com que iniciei esta nota de leitura, penso que será difícil ir mais além. Julgo que estamos perante uma situação de contornos semelhantes à de Luiza Neto Jorge neste sentido: “Os Sítios Sitiados” vinha fechar o ciclo aberto por “A Noite Vertebrada”, 13 anos antes. A produção seguinte de Luiza era já outra coisa, muito distinta, de que “A Lume” de 1989 é um testemunho perfeito. Até que apareçam esses textos posteriores a 1971, ficará por saber para que campo se moveu a obra de Salette Tavares, mas, de acordo com o texto de Rui Torres já referido, a produção compreende pelo menos duas narrativas, o que já demonsta uma alteração de percurso, ou pelo menos um alargamento do mesmo.
Face a um livro como “Lex Icon” penso que é clara a importância de Salette Tavares no contexto de uma poesia experimental portuguesa, bem como no contexto de uma poesia portuguesa. No entanto, penso que resta apurar até que ponto o seu envolvimento na poesia experimental não terá acabado por ter um efeito negativo. Ou seja, até que ponto Salette Tavares, ao ser rotulada como experimental, não passa a ser vista como uma poeta de época, incapaz de ser inserida num contexto mais vasto? Uma leitura da sua obra completa pode demonstrar que é perfeitamente capaz, mas é sabido que para jugar um poeta, nem sempre a sua poesia é o critério principal.

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