sexta-feira, 7 de maio de 2010

Estrada da Luz



Fica o arroubo e cinza dos pombos,
a luz rosa caída no teu peito,
filtrada pelas casas
pelos ninhos de muitas vidas.
Só a pele da tua língua pede um verso.
Talvez ele se decida a descer as colinas
pitorescas, num correr de criança
ou num tropeço de velho
na mais frugal viagem das palavras.

Quem promete mais luz?
Repara nos andaimes, como eles se ergueram
na calada beleza
de um domingo sem missa.

Dois meninos de Deus ao fundo da rua
parecem querer subir à eterna glória.
Eu fico aqui parado, realmente parado,
à espera do teu corpo,
debaixo dos martelos desse piano gigante
em que puseste as mãos
como quem pega pela primeira vez
num talher de prata.

É sempre melhor voltar a casa
voar dentro da sala no vento da tua boca.

O azul não cansa a vista e a mata de Monsanto,
outrora um crime inesquecível,
é feita para nela me deitares
com todos os teus insectos e anjos.

Comiam caracóis, calados, jovens, bebiam coca-cola.
O teu marido, eu sei, é um vencedor.
Aos vinte e cinco anos- na era de sessenta-
tornou-se milionário com alma de budista
se é que um budista tem alma.
De pé, o empregado aguarda que percorras
as tábuas da nossa lei
e esgotes numa palavra o sentido
da vida.

Num domingo sem danças, os andaimes
sem gente, e Deus sem hóstia,
há amigos intocáveis,
mas a língua
retoca-os
à sombra da nossa voz.

Só um sorriso borrado de grenat
destoa
na boca desta tarde e da cidade.


Armando Silva Carvalho
Lisboas
ed. Quetzal, Janeiro de 2000

1 comentário:

Graça Martins disse...

"Só um sorriso borrado de grenat
destoa
na boca desta tarde e da cidade."

Este verso final do Armando é brutal. Autêntica imagem urbana de Pina Bausch.

Algo de decadente. O Armando tem uma rebeldia que me agrada.