quarta-feira, 5 de maio de 2010

Ilse Losa: Sob Céus Estranhos

O CAMINHO DE CASA

A obra de Ilse Losa, desde o inicial “O Mundo em que Vivi”, construiu-se tentando ensaiar uma noção de pátria, não no sentido de um qualquer nacionalismo, mas no sentido de uma localização íntima do indivíduo. É pois uma obra que não vale apenas o seu valor literário, mas que deve ser considerada também ao seu nível político, antropológico e sociológico.
As suas temáticas variam, mas sempre se movimentam em torno deste conceito. É um imaginário muito pessoal, e, de certa forma, único entre nós, já que, até hoje, não nos surgiu ainda um autor que possa ter reflectido tão profundamente sobre as questões de um mundo em transformação pela força de uma guerra, e, acima de tudo, no seu impacto humano. Os livros de Ilse Losa são, ainda hoje, testemunhos de uma época que em muito terá sido decisiva para uma formação do tempo que é este, o nosso. Exemplos disso são livros como “Aqui Havia Uma Casa” ou os poemas em prosa de “As Grades Brancas”.
“Sob Céus Estranhos”, no entanto, condensa todas as questões intrínsecas à temática da autora, mas destaca-se por ser uma obra de particular maturidade, como se retomasse os textos prévios de Ilse Losa, mas o recontasse de forma tão mais desenvolta e polida que se nos assomam completamente novos. É, ainda hoje, um romance de excepção, quer no contexto da vasta bibliografia de Ilse Losa, quer no contexto de uma literatura portuguesa.




O protagonista da trama, Joseph “José” Berger é um alemão refugiado no Porto. Encontramo-lo no primeiro capítulo vagueando pela cidade enquanto a mulher, Teresa, se encontra na maternidade, pronta a dar à luz. Ao longo dos capítulos seguintes, a história de José é contada, respeitando mais um tempo emocional do que um tempo cronológico. É num dos capítulos finais que encontramos uma passagem que, a meu ver, define bem o espírito deste romance, a ideia sobre que ele se questiona e reflecte: Joseph está pronto a casar com Teresa mas, no Registo Civil exigem-lhe a certidão de nascimento que não tem. Quando contacta os Serviços Administrativos da sua cidade natal, é-lhe dito que o edifício onde estes originalmente funcionavam fora incendiado e os documentos, perdidos. José é então forçado a forjar, junto do notário português, uma certidão de nascimento com base em testemunhas. De testemunhas servem-lhe dois amigos portugueses que afirmam ter sido convidados para as várias festas de aniversário de José na Alemanha, desde a infância. Esta história, que todos, incluindo o notário, sabem ser falsa serve, no entanto, para conceder a José a sua certidão de nascimento. Uma segunda certidão de nascimento, dada num país estranho com base em factos faseados. É esta a eterna questão de “Sob Céus Estranhos”: se é possível para aquele que fugiu do seu país de origem encontrar uma outra pátria num outro país. A verdade é que esta é uma pergunta que só pode ficar sem resposta, pois, mesmo casado e à espera de um filho, José continua a ser um estrangeiro, que não só é posto, de certa forma, à margem da sociedade portuguesa, como também não raras vezes ele mesmo se coloca fora dela. Acerca disto, cito uma passagem do vigésimo oitavo capítulo:

“Acontece quando a vida em público que decorre sem a presença de mulheres me simboliza atraso, enfado, falta de espírito e de graça, e apetece então romper as grades, respirar mais fundo, em qualquer parte onde haja resistência e luta, renovação e aventura ou, pelo menos, um pouco mais de exuberância”

(1ª edição, pag.187)

Também no final da história, outra problemática é colocada: José, já casado com Teresa, vai visitar a sua cidade natal à Alemanha. Ao contrário daquilo que esperava, o que encontra não é um “deserto”, mas também não é o lugar de onde saiu, aquando da guerra. É verdade que grande parte da cidade está destruida, mas ainda encontra pessoas que conhecia, que se recordam dele e o reencontram já numa nova vida, uma vida que acontece num outro país. São pungentes as ideias que passam pela cabeça do personagem:

“Onde estavam aqueles que me tinham derrubado na estrada e que se “estavam nas tintas” para comigo? Onde estavam os que escorraçaram o good old man? Os que encerraram toda essa gente num comboio selado que entrou, certa noite, na estação do Rossio? Ninguém parecia ter expulsado ninguém. (…) Ninguém parecia ter assassinado ninguém. E nenhuma dessas pessoas solícitas tinha cara de ser assassino de crianças. Lamentavam, sentiam muito, por vezes até choravam. Mas não se apresentou um único que tivesse estado presente nos dias da carnificina. Estiveram todos ausentes, todos.”

(1ª edição pág. 196-197)

Ou seja, mais do que a questão de muito provavelmente não ser possível para quem foge de um país conseguir “habitar” outro, mostra-se também impossível reencontrar o país de origem. Ele encontra-se geograficamente, mas não se encontra emocionalmente. Aqui, a cisão que a Guerra, nos seus impactos social e político, cria num indivíduo, bem como num povo inteiro.
É este, acima de tudo, o drama que “Sob Céus Estranhos” relata, na primeira pessoa: a perda de identidade. O indivíduo que foge é obrigado a ter uma espécie de “segundo nascimento” que nunca é encarado como nascimento, pelo menos de forma plena, porque não se consegue eliminar o registo do primeiro. O refugiado é arrancado à força de tudo o que conhece, e entregue à sua sorte para reconstruir algo semelhante a uma vida num outro lugar. Mas verdadeiramente nunca o consegue, por mais que a sua vida siga aquilo que é o esquema mais normal: o casamento, uma casa, filhos…
A sensação que “Sob Céus Estranhos” mais parece deixar é a de que se perdeu alguma coisa que nunca verdadeiramente se vai recuperar. Alguma coisa que é impossível nomear precisamente, tanto quanto é impossível obter respostas concretas para as muitas perguntas que essa perda levanta.
Além da questão individual, que Ilse Losa conheceu na primeira pessoa (E só isso permitiria um romance tão profundo.), há também a questão vista de um prisma de colectivo: as movimentações de imigrantes que passam pela cidade do Porto, o café Superba onde se reuniam para contar as suas histórias que, sendo todas diferentes, eram todas, na realidade, muito iguais, porque todos haviam perdido essa identidade, e todos se encontravam, para todos os efeitos, perdidos num mundo em que não podiam encaixar.
O choque cultural é também uma componente muito marcada neste romance. José depara-se, no Porto, como uma sociedade ainda atrasada, descriminatória, misógina e que se recusa terminantemente à cultura, é um “mundo fechado” como Agustina disse no seu primeiro romance. Há, neste aspecto, algo de queirosiano em “Sob Céus Estranhos”, no sentido em que a figura de José, mesmo vindo de um país destruído pela guerra, tem da vida uma noção mais evoluída do que a maioria em que se vê inserido, tal como acontece muitas vezes nas prosas de Eça, ainda que essas se centrem mais num antagonismo romantismo/realismo-naturalismo, sendo, portanto, mais direccionadas do que o que encontramos em Ilse Losa que ultrapassa em muito a literatura e se refere à política e à sociedade.
O estilo de escrita vem na linhagem seca e fluida que encontramos, por exemplo, em Irene Lisboa: Ilse Losa não perde tempo em detalhes, não se desvia da história que está a contar, é acutilante e extremamente observadora: não só em relação às pessoas que descreve, mas à visão de uma cidade, o Porto, uma visão que só é possível a quem vem de fora e se confronta com uma cidade nova.
Romance de primeira água, “Sob Céus Estranhos” é um livro que, em muitos aspectos, não perdeu a sua modernidade e que coloca questões sobre o nosso país que, ainda hoje, não têm uma resposta concreta.

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