Nas badanas de “Um Cão Que Sonha” (3ª edição, 1998, Guimarães editores) fala-se da influência que a escrita de John Cowper Powys poderá ter neste romance de Agustina Bessa-Luís. No entanto, ao terminar a sua leitura, ocorreram-me mais imediatamente alguns textos de “Un Certain Plume” de Henri Michaux (vd. “Antologia” trad. Margarida Vale de Gato, Relógio d’Água, 1998). Nestes textos de Michaux encontramos uma espécie de anti-herói, Plume, que se vê apanhado nas mais complicadas situações sem que, no entanto, tenha feito alguma coisa por isso. É então um herói acidental, é um protagonista mas não é um carácter especial, como requer o cânone do herói. Nas palavras da tradutora de Michaux, “Plume [é] o “homem pacífico” que “não esteve a par do assunto”; um herói passivo, sim, mas que por isso mesmo resiste(…)”.
Passa-se o mesmo com Léon Geta Fernandes, que apesar de protagonista, parece ser absolutamente exterior a (mais) esta história que Agustina nos traz. “Um Cão Que Sonha” vive, isso sim, da figura de Maria Pascoal, que está morta na maioria dos capítulos. É a reconstituição da vida dela que realmente faz a trama deste romance. Léon Geta, o viúvo, tem apenas a “ingenuidade de um cão que sonha”, atravessa o seu tempo sem nada de interessante, não tem particulares afectos por ninguém, não tem profissão, não tem ocupação, não tem amantes (Parece ser, de certa forma, assexual.). O seu casamento com Maria Pascoal foi, na verdade, uma decisão da avó, a La Roque, mais do que dele, e mesmo assim, “o que houve entre ambos foi uma boa inteligência e não amor” (pag.175). Depois da morte de Maria Pascoal, Léon nem sente propriamente a falta dela, muda-se para Lisboa completamente indiferente à fortuna que lhe caberia como herdeiro do longínquo Comendador Faustino, relegando esta responsabilidade para José Stuart.
A sua vida, verdadeiramente, só dá alguma volta quando, anos depois da morte de Maria Pascoal, é descoberto o manuscrito de um romance que esta teria escrito na sua casa de férias em Monte-Faro, para onde se evadia constantemente, tendo até morrido num acidente de viação quando viajava de regresso dela. O documento de Monte-Faro, do qual não temos praticamente excerto nenhum, e nem sequer um título preciso, é-nos descrito como um romance extraordinário. Amálio Correia de Sá, um escritor falhado que está próximo de Léon (Ainda que este não o considere propriamente um amigo.), acaba por publicar o documento, com o nome de Léon Geta como autor. No entanto, dado que Léon não passa de “um cão que sonha”, expressão aliás citada do documento de Monte-Faro, naturalmente não publica mais nenhum livro e, quer nas suas relações pessoais quer nas raras intervenções públicas que faz acerca do livro, mostra-se definitivamente muito pouco à altura da grandiosidade do livro que, suposto, terá escrito. Daí que, citando, “O documento de Monte-Faro, que seguramente não podia ser atribuído a um homem ou a uma mulher, teria, com o tempo, de ser alvo de toda a sorte de dúvidas e complicadas análises.” (pag. 232).
A presença das “três mulheres más” é particularmente importante neste ponto. Elas são mulheres que odeiam profundamente Léon, ainda que estejam perdidamente apaixonadas por eles, pois lemos inclusivamente que “não se pode odiar muito sem amar um bocadinho” (pag. 193). E, portanto, ao mesmo tempo que tentam encontrar todas as possíveis maneiras de seduzir o “inseduzível”, congeminam também a melhor forma de o destruir, ou, no mínimo, de destruir a fama que ele granjeou com a publicação do romance. Com o humor do costume, Agustina descreve assim as três mulheres más: “As mulheres más não são propriamente más. Uma fazia versos, outra fazia figura e a terceira consagrava-se a um marido fanático dos romances que escrevia(…)” (pag. 200). É precisamente esta terceira quem, mais afincadamente, tentará retirar Léon do pedestal em que o colocaram, precisamente porque teme que ele possa fazer frente ao marido. É também ela quem percebe que Léon não tem o mínimo interesse pelo estrelato, e, mais tarde, mais convicta fica de que Léon não é, na verdade, o autor do romance de Monte-Faro. Léon nem sequer leu o livro, apenas colheu dele algumas ideias mais vagas.
Entre as “dúvidas e complicadas análises” feitas ao livro, conta-se inicialmente a ideia de ele ter sido escrito pela defunta mulher de Léon, mas esta teoria “foi arrefecendo, enquanto que ganhava terreno a ideia seguinte: ele pertencia antes a um jovem seminarista adiantado no curso ou jovem noviço que, na casa de férias da Companhia, conhecendo a família dos Arcos, privasse com Maria durante alguns dias, tendo deixado á sua guarda o manuscrito que ela provavelmente copiara. Não estava assinado e a letra era regular e bem desenhada, como a de um copista.” (pag. 232). Entre as alucinadas análises ao livro, Agustina traça um interessante paralelismo com a teoria de que também a “Odisseia” não será na realidade obra de Homero, mas sim de uma mulher, a “princesa siciliana”, como Amálio, o único que sabe inequivocamente a verdade sobre o livro de Monte-Faro começa a referir Maria Pascoal. No meio de tudo isto, Léon permanece invariavelmente indiferente.
O seu interesse, no entanto, prende-se com um grande mistério da vida de Maria Pascoal: antes de casaram, no tempo em que a vida de Léon era entre os amigos do Bando, um bando de cães que sonham afinal, certa noite em que ele pernoitara na casa semi-abandonada do avô Osvaldo, tocaram-lhe à porta a meio da noite. Era uma rapariga, fugida da sede do MUD que havia sido descoberta pela PIDE e que ali vinha procurar esconderijo. Desapareceu na manhã seguinte e só depois da morte de Maria Pascoal, Léon fica com a impressão de que se tratava, na verdade, da sua futura mulher. Facto impossível de averiguar ao certo, dado que a mulher está morta e dela, pouco mais resta do que o referido documento de Monte-Faro.
E é esta, essencialmente, a grande particularidade de “Um Cão Que Sonha” face à restante obra de Agustina: a impossibilidade de averiguar a verdade dos factos. É certo que o romance acaba, como não podia deixar de ser, exactamente como termina. Com o seu herói acidental que pouco mais faz do que comer e dormir a toda a hora, e a verdade sobre a estudante do MUD e a autoria do documento de Monte-Faro por saber.
É também neste romance que Agustina afirma “Nasci adulta, morrerei criança”, através da personagem de Maria Pascoal. E nada mais apropriado, se estamos perante uma personagem que escreve um romance avassalador mas que morre, deixando atrás de si um acumular de mistérios, como uma criança que deles vive rodeada.
Sem comentários:
Enviar um comentário