sexta-feira, 7 de maio de 2010

Fiama Hasse Pais Brandão: Âmago 1, Nova Arte

SER UM COM O MUNDO


Logo no primeiro poemas de “Âmago 1: Nova Arte”, publicado na Limiar em 1985, Fiama Hasse Pais Brandão fala n’ “um espelho para reproduzir/ as mutações da vida.” E, no poema seguinte, “Gota de Água”, o sujeito poético experiencia uma gota de água a cair numa corola. Mas experiencia esta queda não como observadora:

A gota de água cai na corola. Essa
queda também me movimenta. Assisto a
um condão estranho. Ser gota e ser
figura. (…)


A palavra “figura” vai ser essencial para atravessar este livro e tirar dele o seu “âmago” primeiro, a “nova arte” que o título anuncia. É de figuras, efectivamente, que este universo parece construir-se. No poema “O Gamão” encontramos uma possível definição da “figura”:

(…) O meio corpo na meia realida
de. Anda compassadamente pelo seu li
toral. Mesmo quando é comparsa das
figuras do gamão, a minha silhueta
diferencia-se.
(…)
Sou eu que ainda
estou presa à minha figura.


Daqui, retiramos já algumas conclusões: a de que a figura compreende meio corpo na meia realidade. É portanto um corpo dividido ou, de outra forma, incompleto. Nos últimos dois versos citados, o sujeito poético assume-se preso à sua figura. Uma figura, portanto, de corpo dividido e cuja silheta se diferencia de outras figuras. Regressando ao poema já citado “Gota de Água”, já vimos que o sujeito poético é também movimentado pela queda da gota de água. E fala-nos de um “condão estranho. Ser gota e ser/ figura”. Assume-se, portanto, desde o início como figura. E, retomando ainda o momento que esse poema, um dos melhores do livro de 1985, descreve, podemos assumir que, de certa forma, a corola em que a gota cai faz parte da figura do sujeito poético, porque essa queda também o movimenta. Se retomarmos a ideia da figura com meio corpo na meia realidade, talvez não só o corpo de uma figura esteja dividido, mas também o real: um real dividido entre os elementos e a percepção sensitiva, psíquica, que o sujeito poético tem deles.

Neste livro, tudo se transforma em figura, tudo tem o seu lado visível, como em “Morte no Plano”: O siêncio em fios.
Esta anulação das distinções “ser humano”, “ser vivo”, “ser não vivo”, que todos passam à categoria de “figura” tem evidentemente o seu peso. Peso que é explicado ainda no poema “Gota de Água”:

(…) An

do afastada das coisas. Mas sou visí
vel para elas. Aquela pápebra vê
-me. Tem os signos incrustados no arb
usto e mais simples é a brancu
ra. Ainda sou arguta. Incito a escri

ta a porvir das palavras. Como é
pungente manter-me no ardor
das figuras. (…)


Aqui, como vemos, as “coisas”, classificação vulgarmente atribuido ao que não tem vida, ou então “aquela pálpebra” vêm o sujeito poético, que vulgarmente seria “ser humano”. A redução de tudo a “figuras” é, por isso, um nivelamento entre o Homem e os restantes elementos da natureza, as plantas, os animais (Em cima a silhueta da figura do sujeito poético é comparada à de um gamão.), etc.
Não deixa, depois deste ponto da “figura”, de ser importante destacar um verso do poema “Flamingos” onde Fiama escreve “Nenhuma metáfora me assassine.” Tem este verso particular interesse porque, se podíamos ter, por exemplo, a queda da gota na corola sentida pelo ser humano como metáfora, fica aqui esclarecido que disso não se trata. Pelo contrário. Quanto mais entramos no universo deste livro, mais percebemos que não é de metáforas que se fala, mas de uma postura perante a natureza, a de ser um com ela. Será essa a “Nova Arte” anunciada pelo título, experienciar a natureza sendo parte intrínseca dela, tornando-nos mais uma das suas figuras. Mais à frente, no poema “Arte” esta recusa da metáfora é levada ainda mais longe: “Mas nada/ por efeito da metáfora me/ arrebata para dentro.”
No poema “Lince” encontramos ainda uma interessante abordagem da morte, outro dos assuntos essenciais de “Âmago 1: Nova Arte”.

Aprendendo a mímica do lince podes
amar a morte. Uma aprendizagem exa
cta. Seguir o contorno parado, ponteagudo,
das pequenas orelhas.
(…)
Não
temas o fim como os outros seres
vivos que amam a própria morte.
A sua silhueta articula-se como um o
bjecto artificial.
(…)
Aprender um desenho
mais profundo do que o prateado
do vulto. O que nos fulmina é
belo como a última queda depois
de um salto livre entre as montanhas.


Repare-se que o desenho não é necessariamente um desenho no sentido em que é um aglomerado de linhas e manchas sobre o papel. Pelo contrário, o desenho parece ser feito como que para incorporar a própria figura, numa espécie de fagia: fagia no sentido em que a “figura” que tomamos por uma figura humana deve assimilar o “desenho” do tigre para aprender a amar a morte. É preciso não esquecer que esta poesia, a de Fiama, desde sempre teve como maior objecto a natureza, livro após livro, a obra de Fiama parte e chega à natureza. Mais ainda, na bibliografia da autora, aquando da publicação de “Âmago 1: Nova Arte”, é anunciado um próximo livro “Âmago 2: Nova Natureza”, que acabaria por ser publicado no volume que reunia três livros de Fiama, “Três Rostos”, publicado pela Assírio e Alvim em 1989.
Voltando ao assunto da morte, é também de referir o poema “Morte no Plano” de que transcrevo a primeira estrofe:

Chuva tão firme como a mor
te num plano. Árvores turvas.
O silêncio dividido em fios.
Corte na cadeia dos desejos. A ca
sa acidulada. O açúcar sem
boca. Nada ou zero. Morrer atrás
das sombras. Ir e vir. Miserável
morte.


O funcionamento entre a morte e a natureza é aqui bastante mais subtil do que no outro exemplo, porque o poema incia com uma comparação entre a chuva e a morte. E, as imagens que de seguida fornece, abrem possibilidades tanto a uma como a outra. O siêncio interrompido ou dividido, as árvores que parecem desfocadas, o corte no desejo, a casa acidulada, o açúcar que ninguém come, etc. Neste poema parece-me, portanto, estar mais do que provada a ideia da figura humana, que pode ser o sujeito poético, se funde completamente no elemento natural. O mesmo se poderia dizer, acerca desta fusão, a respeito do poema “Erez”, onde lemos nos primeiros versos que “A praia sobe até aos dedos/ mínimos.”
Parece-me relevante referir o poema “O Começo da Obra”, que encontramos mais à frente:

Na manhã tão densa como a noite
encontrei o amanhecer perdido. Dedo
a dedo encho-o com música. Som
sobre som vejo-a.
(…)
Reencontro o mundo que pulsa. E o
meu passo conduz-se pelo compasso.
A sombra dos sons que há na musicali
dade da sombra. A noite para construir
a manhã.
(…)
Esta obra está em ruína. Um silêncio
entre-dentes. Calaram-se. As ferramen
tas não gemem. Dormi e não estou.
Morro mas vivo. Os materiais
transcendem-me e o tempo bebe
-me.

Ao longo do poema é descrita uma fusão na natureza, como uma forma de vida, o indivíduo existe nela e em função dela. O título do poema, bem como a última estrofe citada dão o indício de se tratar de um elemento iniciático da escrita. Pode ser, efectivamente, uma arte poética, e, em última análise é esta a “nova arte” proposta no título, uma arte poética mas também uma espécie de “arte de vida”, uma vez que, recusada a metáfora, a obra obrigatóriamente coincide com a vida.
Outro aspecto que importa sempre referir é a presença da poesia. Uma vez mais porque, a poesia de Fiama Brandão teve sempre como uma das suas principais linhas de força a análise e por vezes a completa subversão do acto de escrever, e procurando, aliás, formas insólitas de construir a poesia, em projectos algo conceptuais ou experimentais, mas bem explicados.
Nesse aspecto, a presença da poesia ao longo do livro é particularmente explorada em “As Cartas”:

Esperas os sinais da minha existência.
Eu transcrevo-te mas não vivo no poema.
Morro na mancha do papel. Uma carta cai
no matagal como um pássaro.
(…)


O poema enquanto forma de comunicação seria a ideia mais rápida que à primeira vista se poderia retirar daqui, no entanto, parece-me claro que essa ideia é algo ténue. Ainda que no primeiro verso haja um “eu” que se dirige a um “tu” dizendo-lhe que esse “tu” aguarda sinais da sua existência, note-se que no segundo verso, o verbo utilizado é “transcrevo-te”, e não “escrevo-te”. Poderemos olhar este “desvio” da seguinte maneira: é o próprio poema ou a própria poesia esse “tu”, e o sujeito poético, o “eu” admite transcrever o poema, mas não vive nele, mais ainda, acrescenta que morre “na mancha do papel”, e por mancha podemos interpretar um borrão, uma escrita mal sucedida, e, quando o papel cai, nele não vai um poema mas “uma carta” que “cai/ no matagal como um pássaro.”
No entanto, não é de desprezar a ideia de que a autora se estivesse a escrever a si mesma, ou a outra pessoa. Mais ainda porque a transformação em “figura” não elimina elementos biográficos e até muito concrectos da biografia. Exemplo directo disso é o poema “Estuário de um Tejo”, cujo título será suficiente para que se entenda que a “natureza” com a qual estes poemas se fundem, ou com a qual estes poemas fundem o seu sujeito poético, não é uma natureza, como poderia pensar-se, em estado selvagem: muitas vezes nem o é campestre, é pontualmente urbano com reminiscências à cidade de Lisboa, por exemplo. E, ainda sobre os elementos biográficos, não faltam referências literárias (Junqueiro e Eugénio de Castro são citados em “Oaristos IV”.), inclusivamente aos livros anteriores da autora (“Era” é evocado em “A Criança Antiga”.)
Outra questão interessante no que toca a falar sobre poesia, é sempre a diferenciação entre “sujeito poético” e “sujeito biográfico”. E, um pouco instintivamente, diríamos da poesia de Fiama Hasse Pais Brandão que ela compreende um sujeito poético mas não um sujeito biográfico. No entanto, um olhar mais incisivo sobre “Âmago 1: Nova Arte” (E até sobre outros livros, mas esta nota de leitura é sobre este livro específico.) seria suficiente para se perceber que nesta poesia existe um, e bem demarcado, sujeito biográfico. O que se não pode dizer é que se lhe notem momentos confessionais ou de revelações íntimas. No entanto, é sabido que a biografia compreende bem mais do que confissões e intimidade. No caso de Fiama, o indicador de biografismo nos seus livros acabam por ser outros livros, referências, citações, glosas (Não esqueçamos que estamos perante uma poesia que nunca recusou a intertextualidade e que foi, talvez a mais original na forma de o fazer entre a nossa poesia.). Assim sendo, não é ao acaso que em “Graficolíquido” Fiama escreva “Tudo na minha biografia/ a todo o momento se repete.” e no poema segunte, “Oaristos IV” diga “Eu disse-o já/ quando escrevi sobre o prestígio/ estético em oitocentos.”, mais à frente, em “A Criança Antiga” fará referência ao poema “Pomba”, pertencente ao livro “Era” (in “O Texto de João Zorro”, Inova, 1974) e “Vem Noite” não pode deixar de nos relembrar que a autora viria a traduzir os “Hinos à Noite”, podendo este título ser uma espécie de alusão com a obra de Novalis.
Penso que é importante referir todos estes aspectos para que se entenda que a comunhão com a natureza não representa, na poesia de Fiama Hasse Pais Brandão, um exílio forçado nem nada semelhante. Pelo contrário, é um acto quotidiano, quotidianamente repetido, tanto numa quinta (Que poderia ser a quinta da autora em Carcavelos.) como na cidade de Lisboa, que muitas vezes sentimos presente.
Ainda sobre a relação com a natureza, essa comunhão ou fusão, parece-me pertinente acrescentar que nem sempre ela é pacífica ou agradável. Por exemplo em “Prosódia do Texto e Música” lemos no final:

(…) Depois mergulhámos na frial
dade do mundo trazida pelo vento.
O palácio estranho ficou no
horizonte. Nenhuma pedra é

tão lenta como a dos sons.


em que vemos como o mergulho na natureza que constitui esta “nova arte” inclui mergulhar nela quando as condições são as menos favoráveis. É, por isso, uma vivência em pleno da natureza, e não uma assimilação apenas do que esta possa ter de positivo. E mesmo num poema anterior, “Tapada de Mafra II” já líamos uma enorme inércia, um quase abandono, neste excertos

(…)
Quando a deambulação pára
toco na extremidade do real.
(…)
A imobilidade de tudo e a desapa
rição aniquilam-me dia adiante.
(…)

Como podemos ver nestes exemplos, ou numa passagem de “O Começo da Obra” onde lemos “Gota a gota agonizo. O sol chegou en/ tre construtores insensíveis.”, nem sempre a união à natureza é uma sensação de vida. Por vezes é um verdadeiro “ofício de paciência”, Eugénio de Andrade empresta, e até, no segundo caso, de aproximação ao mundo irreal. Mas a poesia de Fiama procura um abraço pleno com a natureza, pleno e portanto, que aceite os males que daí possam ressurgir.
Por outro lado, e agora talvez a palavra subversão venha fazer algum sentido, repare-se que a situação-limite que leva este sujeito poético a tocar a extremidade do real (Onde principia o irreal.) não tem a ver com a “frialdade do mundo”, mas sim com o seu abandono, a sua solidão, a sua “imobilidade”. Mas quando falei de “subversão” foi apenas nas formas inovadoras que Fiama Brandão foi tentando encontrar para a sua poesia. No entanto, os próprios símbolos, nela, são subvertidos. Repare-se no poema “Tâmega” onde a figura do morcego, classicamente associada ao mal, passa a ser um sinal de vida:

Um morcego abençoa-me na escuridão
desenhada. Rebenta como a lâmpada que
ele bebe. Um ente sem lucidez.


De facto, o morcego é, no poema, aceite como figura antagonista à luz e, no entanto, é ele quem abençoa esta figura, mesmo rebentando com a lâmpada e não tendo lucidez. Este acto de rebentar a lâmpada dá-nos também acesso ao outro lado, o da escuridão, que, afinal, parece ser a bênção que o morcego dá à figura humana. Mas como se disse, este abraço à natureza quer-se pleno, cheio.
Por último, e porque esta nota já vai longa, gostaria apenas de realçar a extrema importância que tem ler este livro integrado na “Obra Breve”. É um livro que já li o ano passado e, no entanto, só agora me apeteceu redigir esta nota de leitura. Penso que, integrado no volume da obra completa, são muito mais perceptíveis certas características, principalmente formais, mas não só, que “Âmago 1: Nova Arte” apresenta. É possível agora perceber porque Fiama diz, na sua “Gota de Água”, “Possa a arte gráfica ilu/ minar-me no sofrimento da criação” quando temos, como comparação, a pequena plaquette “Melómana” (1977, Inova), onde Fiama afirma que “mais do que nunca preocup[ou]-se com os fonemas. Por isso ao ter consciência de que assinalam manchas visuais, [teve] de os fraccionar, o que [a] levou a alterações gráficas, de modo a que, entre a forma visual panorâmica, a forma sonora e a forma visual gráfica, houvesse uma correspondência. (…)”, e isto explica as palavras subitamente interrompidas que continuam no verso, e às vezes na estrofe, seguinte, que não é apenas uma questão rítmica. Em termos temáticos, os três separadores anteriores são “13 Poemas de Amor Pelos Livros” inédito até à reunião da “Obra Breve”, “Cântico Maior” atribuído a Salomão, uma versão publicada erm 1985 pela Assírio e Alvim, e os “14 Polissílabos sobre Anjos”, também inédito até à colectânea. No entanto, é precisamente com os livros “Melómana” e “Área Branca” (1978, Arcádia) que “Âmago 1: Nova Arte” parece mais enquadrado, ainda que se sintam também algumas reminiscências daquela que foi, para mim, a fase menos interessante da poesia da autora, que vai das “Novas Visões do Passado” (1974, Assírio e Alvim) à “Homenagemàliteratura” (1976, Limiar) onde a barreira entre a poesia e o ensaio era possivelmente, demasiado ténue.
“Âmago 1: Nova Arte” foi, portanto, um regresso às melhores raízes da poeta de “Em Cada Pedra Um Voo Imóvel” ou “Área Branca”

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