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sábado, 9 de fevereiro de 2013

Todos por Um


A manhã está triste
que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza

Santos
Mártires
e Heróis

Que mau tempo estará a fazer no Porto?
Manhã triste, pela certa.

Oxalá que os poetas românticos do Porto
sejam compreensivos a pontos de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de recorrer à vala comum.

Mário Cesariny de Vasconcelos
Nobilíssima Visão
3a edição Assírio e Alvim,  1991
pintura de Kazemir Malevich

sexta-feira, 13 de julho de 2012

XIV


hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros

ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt… uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir

preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado

Sem Jeito Para o Negócio


Mário Cesariny de Vasconcelos
Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano
1952, ed. Contraponto

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O poeta chorava


O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
nelas buscava Uma estrela talvez a salvação?
O poeta era sinceríssimo
honesto
total
raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair de vergonha
mais ou menos
como os ladrões

E agora o poeta começou por rir
rir de vós ó manutensores
da afanosa ordem capitalista
comprou jornais foi para casa leu tudo
quando chegou à página dos anúncios
o poeta teve um vómito que lhe estragou
as únicas que ainda tinha
e pôs-se a rir do logro é um tanto sinistro
mas é inevitável é um bem é uma dádiva

Tirai-lhe agora os poemas que ele próprio despreza
negai-lhe o amor que ele mesmo abandona
caçai-o entre a multidão
crucificai-o de novo mas com mais requinte.
Subsistirá. É pior do que isso.
Prendei-o. Viverá de tal forma
que as próprias grades farão causa com ele.
E matá-lo não é solução.
O poeta
O Poeta
O POETA DESTROI-VOS


Mário Cesariny de Vasconcelos
Nobilíssima Visão
2a ed, 1976, Guimarães editores
pintura de Egon Schiele

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Estrada de Fogo


Pedra a pedra a estrada antiga
sobe a colina, passa diante
de musgosos muros e desce
para nenhum sopé;

encurva, na abstracta encruzilhada;
apaga-se, na realidade. Morre
como o rastilho do fogo,
que de campo em campo aberto

seguia, e ao bater na mágica cancela
dobrava a chama, para uma respiração,
e deixava o caminho do portal
incólume e iniciado.

Fiama Hasse Pais Brandão
"Três Rostos" (Arómatas e Ecos)
1989, ed. Assírio e Alvim
pintura de Mário Cesriny de Vasconcelos

sábado, 14 de agosto de 2010

Arte de Inventar os Personagens



Pomo-nos bem de pé, com os braços muito abertos
e olhos fitos na linha do horizonte
Depois chamamo-los docemente por os seus nomes
e os personagens aparecem


Mário Cesariny de Vasconcelos
Manual de Prestidigitação
1956, ed. Contraponto
retratoplastia de Carla Gonçalves


quinta-feira, 29 de julho de 2010

You Are Welcome to Elsinore



Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras noturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos conosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o
amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar






Mário Cesariny de Vasconcelos
Pena Capital
1957, ed. Contraponto
pintura do autor

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Salvados

Um chapéu de coral atado a uma medalha de cobre
Uma cómoda estilo primas Lagarto
Um piano de cauda com uma cabeleira de índio
Um garfo sem sombra
Uma imitação do olho esquerdo de Napoleão III tirada no momento em que Ele assinava a lei dos meios das primas Lagarto
Um carneiro de purpurina
O ferro forjado que serviu para Lord Nelson
Uma fotografia a sépia que as primas Lagarto no campo tamanho natural
Um grilo em papel manteiga
O triciclo que pertenceu a Kropotkine
A gravata hidrométrica Inhásse Paderevsky
Um exemplar original de "Vida e Obras de Gânglia Vermouth" com lindas águas-fortes de mestre Inácia Coreto assinadas Pépita Lamartine
Uma perna de carneiro assado
Um lençol com sinais de vómito italiano
Uma cadeira de rodas ainda com o corpo
Uma lágrima de Staline

e de diversos de: primas Lagarto Lao-Tsé Goethe, Hedy Lamarr Nicolau II etc. etc. etc.

cadavre-esquis de Mário Cesariny de Vasconcelos e
Alexandre O´Neill
"Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito"
selecção de Mário Cesariny de Vasconcelos
Guimarães editores 1961

sábado, 15 de maio de 2010

Pastelaria


Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita genteque come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra



Mário Cesariny de Vasconcelos
Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano
1952, ed. Contraponto