segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Hélia Correia: A Compaixão

AS FORÇAS INVISÍVEIS


No livro de "Contos" de Hélia Correia, editado em 2008, encontramos um texto que, percebemos, se aproxima mais da novela do que do conto. "A Compaixão", assim se chama esse texto, merece, de alguma forma, ser isolado dos restantes contos do livro, não só por uma questão de extensão -mais de 50 páginas -como também porque é um texto realmente muito forte e muito específico -mesmo num conjunto de apenas 6 textos, em que todos são auto-suficientes e obedecem a especificidades, ao mesmo tempo que são unidos, tal como "A Compaixão", por determinadas características, que são linhas-mestras da escrita de Hélia Correia.
"A Compaixão" que, ao que entendo, terá sido escrita mais ou menos na mesma altura que "Lillias Fraser" (2001), um dos melhores romances da literatura portuguesa contemporânea e, como lemos na nota final do livro de contos, andou perdia durante algum tempo. Conta-nos a história de Regina, uma rapariga que, numa crise do seu casamento se vai refugiar a uma estalagem em Espanha. Nessa noite, a electricidade falha e Regina acaba por se cortar numa mão. Para estancar a hemorragia, ela pega num lenço de pano-cru. Regressando a Lisboa, Regina começa a adoecer, sofrendo hemorragias internas, delírios e dando sinais de neurastenia e de uma inércia doentia. Enquanto é rodeada pela tia e a mãe e pelo ex-marido, Filipe, Regina percebe que a origem dos seus inexplicáveis sintomas está no momento em que limpara a ferida da mão com o pano encontrado na estalagem. Na segunda parte da novela, Regina e Filipe regressam a Espanha, à estalagem, a fim de descobrirem a possível história daquele pano e também de o restituir ao armário onde ele estava originalmente guardado. E assim se cruzam com a história da casa da estalagem e das duas mulheres -uma a viver ali, outra a viver em Portugal- que a haviam habitado.
Esta novela, apesar da decisão da autora de não a publicar autonomamente, pode muito bem estar no mesmo patamar que outras, como "O Número dos Vivos" (1982), "Montedemo" (1984) ou "Bastardia" (2005), que são alguns dos textos que afirmaram e confirmaram Hélia Correia como uma das mais originais e mais poéticas prosadoras da nossa literatura. Neste texto, como na maioria dos de Hélia, encontramos, para começar uma linguagem densa, cuja construção minuciosa conjuga o poder das imagens com o das palavras e da sua musicalidade, criando um jogo entre a escrita e o conteúdo em que um é indestrinçável do outro.
Em "A Compaixão", voltamos também a sentir algumas das obsessões da escrita de Hélia Correia, obsessões que passam pelo sangue, pela visceralidade, por uma treva que tenta não ser desvendada: há nesta escrita uma certa fascinação pelo grotesco e pela violência, que pautam a relação das pessoas (Que são pessoas mais do que personagens.) com o mundo.

Mas a chave dos livros de Hélia Correia está frequentemente, e isso volta a acontecer em "A Compaixão", nalgo de invisível e de quase-indizível. Notamos aqui uma espécie de força espiritual, que passa da casa da estalagem para o pano e do pano para Regina, através do sangue. É essa força, que tem a leveza e o poder de uma premonição, ou de um pressentimento, que realmente move Regina ao longo do texto, e também aqueles que a rodeiam. Aquilo que é sentido é aquilo que é perseguido, contra todas as racionalizações e todas as lógicas mais imediatas.
E essa força existe não só nas pessoas, como no próprio espaço -um pouco o que acontecia na novela "Villa Celeste" (1983) ou no romance "A Casa Eterna" (1991). E no reconhecimento da existência dessa força, bem como na atenção que lhe é dada em consequência, está uma boa parte da estranheza da escrita de Hélia Correia, e, claro da novela de que aqui falo. Porque estes textos, magistralmente escritos, conduzem-nos através de algo que nunca podemos verdadeiramente compreender, algo que será explicado, mas não totalmente explicado, mesmo depois do livro ter terminado. E é por isso que estes textos continuam, depois de terminados, precisamente.

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