ADULTERAÇÕES E CLICHÉS
Quando aqui falei do 'Hellraiser' original de Clive Barker, falei da questão do moralismo, uma tónica que atravessava discretamente todo o filme, e que poderia remeter-nos para a origem católica da ideia do inferno. Clive Barker soube ser inteligente ao incluir esta questão no seu filme.
O argumento desta terceira parte está entregue a Tony Randel e a Peter Atkins, sendo que o primeiro foi realizador da segunda parte e o segundo, argumentista da mesma. Por assim dizer, temos nestes dois senhores dois verdadeiros fãs da saga de 'Hellraiser'. E talvez o problema seja precisamente esse. Um certo fanatismo da parte dos autores da história pode explicar uma grande falta de sentido crítico que se faz sentir em 'Hellraiser III: Hell on Earth'.
O filme começa com JP (Kevin Bernhardt) a comprar uma enorme estátua, onde, entre outros motivos grotescos e facilmente associáveis às representações do Purgatório, encontramos a cabeça de Pinhead e a caixa-puzzle de acesso ao inferno.
Depois, encontramos Joey (Terry Farrell), uma jornalista com dificuldades em singrar no meio, por falta de boas histórias para contar. Depois de uma reportagem falhada num hospital, pouco antes de daí sair, Joey vê entrar um rapaz completamente ensanguentado, com correntes presas ao corpo por ganchos, acompanhado de uma prostituta assustada. Em poucos segundos, o corpo do rapaz é estraçalhado, quando as correntes são puxadas por algo de invisível. A única coisa que Joey consegue arrancar da prostituta que mal pode esperar por fugir dali, é que vieram de um bar chamado Boiler Room. Entusiasmada com a possibilidade de arrancar dali uma história, Joey consegue contactar a prostituta, Terri (Paula Marshall), dando-lhe guarida na sua casa. Terri explica-lhe que as correntes teriam saído de dentro da caixa-puzzle, que havia sido arrancada da estátua comprada por JP, o dono do Boiler Room e ex-namorado de Terri. E assim as duas vão em busca de pistas sobre a estátua, acabando por, através do Channard Institute (Presume-se que em referência ao psiquiatra do segundo filme, que havia reunido um considerável espólio sobre a Configuração do Lamento.), conseguir uma cassete de vídeo com algumas consultas de Kirsty Cotton (Ashley Laurence), onde ela fala dos Cenobites. É assim que Joey toma consciência da verdadeira natureza da estátua e da caixa-puzzle.
No quarto privado de JP no Boiler Room, a estátua ganha vida e devora uma rapariga com quem ele acabara de ter sexo. E Pinhead, cuja cabeça consegue já mexer-se e falar, pede ajuda a JP para se libertar daquele bloco escultórico. JP acede. Por fim, Joey é visitada num sonho/visão por Elliot Spencer (Doug Bradley), o soldado que se havia tornado Pinhead. Ele explica-lhe que quando Kirsty o confrontara com a sua verdadeira origem, ele e Pinhead se haviam tornado seres separados e que, em consequência, Pinhead se tornara num ser puramente maligno, cujo único interesse seria torturar a humanidade. E assim encarrega Joey de encontrar Pinhead, entretanto libertado da estátua, para que Elliot possa voltar a unir-se com ele e contrabalançá-lo, forçando-o a entrar definitivamente para o inferno.
O que nós vemos acontecer nestes filmes, como um padrão, é que cada um insere alterações no próprio conceito que definia o primeiro filme. No anterior, os Cenobites eram humanizados, neste, isso separou-os dos seus lados humanos, mudando-lhes o objectivo. Estes Cenobites já não estão no inferno, à espera de serem convocados pela caixa-puzzle para torturarem aqueles que a abrem. Estes Cenobites querem, isso sim, viver no mundo real, para torturarem e matarem toda a gente. Logo aqui, o conceito de Barker fica completamente adulterado. E, mais do que adulterado, é completamente vulgarizado. Porque o que havia de interessante na ideia de Barker era que este Inferno era um lugar procurado e os Cenobites eram os anjos ou os demónios daqueles que os convocavam. Neste filme, eles tornam-se personagens que torturam desenfreadamente, por prazer exclusivamente seu, quando, nos primeiros dois filmes, esse prazer era de alguma forma partilhado por aqueles que eram torturados -já que é isso que, em princípio, define o sadomasoquismo.
Outra coisa que importa referir é que Clive Barker, com as suas quatro figuras horripilantes e fortes, criara uma espécie de panteão do mal. Ora, com excepção de Pinhead, todos os outros Cenobites desaparecem deste filme, dando lugar a outros. A ideia poderia ser uma ampliação dessa mitologia, mas resulta apenas numa substituição, que, de certa forma, quebra um pouco com a continuidade da saga. É, portanto, uma renovação excessiva, que resulta tanto pior quanto os novos Cenobites quase não têm existência, aparecendo apenas brevemente e sem grande impacto. Além disso, estes novos Cenobites tornaram-se Cenobites sem querer, o que também contraria o segundo filme, em que o novo demónio, o Cirurgião, entrava na Configuração do Lamento com o objectivo específico de se tornar um Cenobite.
Quanto a alterações conceptuais, estamos falados: elas são estas e não resultam.
Mas o resto não corre melhor. O argumento é um tanto pobre, já que é um absoluto cliché a ideia da jornalista a enveredar por uma história maligna, que orienta toda a premissa. Mais ainda, a ideia de moralismo aqui ganha contornos distintos dos do filme original, tornando-se, também ela, a mais óbvia que se podia esperar: os assassinados por Pinhead são a vadia, o grande sacana e os frequentadores do bar de engate. Esta ideia da punição dos prazeres do sexo surge-nos aqui com uma aborrecida predicabilidade, por ser tão declarada, já que é sexo em si que é punido, e não a procura excessiva de prazer que ignora limites, como acontecia no 'Hellraiser' original.
Os diálogos, por fim, procuram uma certa contundência que é conseguida em alguns, raros, momentos do filme, mas fora isso, pecam pela falta de naturalidade e por uma tentativa de, em muito pouco tempo, definirem imediatamente as personagens, o que nunca é uma boa fórmula para coisa nenhuma.
Anthony Hickox revela-se um realizador de poucas ideias, também. As suas concepções visuais não nos trazem nada de novo, mesmo quando se nota claramente o esforço de criar cenas fortes e gore. É exemplo disso a grande tortura de Pinhead no Boiler Room, onde o massacre geral é entrecortado por planos de detalhe da tortura de cada um: os primeiros são reminiscentes do clímax de 'Carrie' (1976) de Brian de Palma, e os segundos aludem muito claramente aos primeiros dois 'Hellraiser'. No resto, é uma realização vulgaríssima, onde as cenas de perseguição são tudo o que se espera de uma cena de perseguição, e as restantes cenas são filmadas com a falta de convicção de qualquer telenovela. Os novos Cenobites parecem ter sido caracterizados com alguma minúcia, mas o pouco ênfase que lhes é dado acaba por anular este esforço. A direcção de actores parece ser normal, até que chegam os momentos de maior tensão, em que, na verdade, a maioria dos actores fica muito aquém.
Uma vez mais, há que reconhecer veracidade à ideia geral que se tem sobre sequelas. O melhor era mesmo não as ter feito.
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