sábado, 27 de agosto de 2011

Hellraiser de Clive Barker

ENTRE O VÓMITO E O SUSTO


Com promessas de uma sequela para 2012, não podia deixar de ver a versão original de um dos clássicos do cinema de terror que tinha em falta. Falo do "Hellraiser" original, de 1987, realizado por Clive Barker, que havia publicado um ano antes o seu romance "The Hellbound Heart", a base do argumento deste filme.
No início vemos Frank (Sean Chapman) comprar a um marroquino uma caixa-puzzle, que, mais tarde, levará para um sótão, para proceder a uma espécie de ritual. Em consequência, Frank dá por si numa espécie de sala de tortura, cheia de objectos claramente ligados a práticas sado-masoquistas.
Algum tempo depois, Larry (Andrew Robinson) e a mulher, Julia (Clare Higgings) mudam-se para a mesma casa, já sem Kirsty (Ashley Laurence) que parece relutante em viver com a madrasta. Através das memórias de Julia, percebemos que ela teve um caso com o cunhado, por quem, de alguma forma, parece ainda muito apaixonada, procurando, pela casa, pequenos sinais de que Frank havia lá estado. Encontra bem mais do que isso, depois de Larry se corta numa mão e vai ter com ela para que o ajude a estancar a hemorragia.
Aparentemente, através daquele sangue derramado no soalho do sótão, Frank conseguiu regressar do inferno, onde estaria a ser torturado pelos Cenobites, mas precisa de mais sangue para conseguir um corpo completo. É assim que Julia, um tanto repugnada, mas sob a promessa de uma explicação, começa a engatar homens que leva para o sótão, a fim de que Frank os mate e os sugue até estarem completamente exangues. E assim, enquanto o seu corpo regenera, Frank explica a Julia que a sua busca algo desenfreada pelo prazer o conduzira à compra daquela caixa-puzzle que funciona como uma porta para um lugar do inferno onde os quatro Cenobites procedem a rituais que combinam, ao ponto do indistinguível, o prazer extremo com a dor extrema, o que, a certa altura, terá extenuado Frank, levando-o a tentar, com sucesso, escapar.
É este ambiente de grande insânia, de cruzamento entre o real e o mitológico que vive "Hellraiser". Sabemos que a origem do mito do inferno é o catolicismo; assim como sabemos que os mitos do catolicismo, contextualizados e descontextualizados, já muito têm sido usadas pela arte. No que toca ao cinema, o género de horror tem sido talvez aquele que mais se tem apropriado destes mitos para se sustentar. "Hellraiser" é um caso dúbio: por um lado, não parece haver no inferno aqui representado um cariz religioso, parecendo prender-se essencialmente com uma série de fantasmas sadomasoquistas, mais facilmente associáveis ao Marquês de Sade do que à bíblia. No entanto, um olhar mais atento descobrirá em "Hellraiser" um fundo religioso: quem de facto mais sofre com a abertura das portas desse inferno são Frank e Julia: ele um desenfreado perseguidor do prazer e ela uma mulher adúltera. Pode-se dizer que isto contribui para uma ideia de crime e castigo muito favorável às fantasias de s&m? Certamente. Mas o facto é que, discretamente, nos vão surgindo várias figuras religiosas, o que nos prova que este filme não escapa a uma tónica algo punitiva e moralista.
Outra das questões que me parece importante abordar acerca deste clássico é aquilo que distingue o horror do gore. É uma pergunta que convém fazer relativamente a muitos filmes do género que, umas vezes consciente, outras inconscientemente, acabam por esbater esses limites. "Hellraiser" é um desses casos. É facto que há aqui muitas cambiantes utilizadas por excelência como elementos de horror, mas a verdade é que o que de mais forte este filme tem passa essencialmente pela imagem: ou melhor, pelas imagens, a maioria delas de uma violência absolutamente vomitiva, ostentando elementos de amputação, de trucidação, de uma carnalidade sinistra em que o sofrimento não é experienciavel sem um tanto de orgulho e de prazer. Isto resulta, indubitavelmente, numa sensação de náusea muito mais que de medo, mas também, é convém não o escamotear, numa imagética forte e, em muitos aspectos, inesquecível. A prova disso é que as quatro figuras dos Cenobites, particularmente de Pinhead, se tornaram verdadeiramente icónicas, estando entre as mais emblemáticas personagens do cinema de horror, ao lado de outros galãs como Michael Myers ("Halloween") ou de Fred Krueger ("A Nightmare on Elm Street").


É com uma sensibilidade grotesca e repulsiva que Clive Barker consegue fortificar a narrativa de "Hellraiser" que, por mais que tenha laivos de uma certa originalidade, em muito não é mais do que uma mera situação de tentativa de salvação entrelaçada com alguma necrofilia.
A temática dos desvios sexuais, pois a questão sexual está subliminarmente presente em tudo, desde o conceito à imagética de "Hellraiser", já tem dado pano para mangas ao longo da história da arte; e para isso basta lembrar os livros seminais de Donatien Alphonse de Sade e de Leopold de Sacher-Masoch, mas também os poemas de Algernon Charles Swinburne, o famoso filme de Pier Paolo Pasolini, entre muitos outros exemplos. "Hellraiser" é de certeza mais um filho desta temática, e a verdade é que se tornou um clássico, que merece ser revisitado, mesmo que não se aprecie realmente tudo aquilo que aqui acontece.


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