Recentemente, reabri "Lillias Fraser", um dos melhores (Senão o melhor mesmo.) romance de Hélia Correia. Na altura em que o li pela primeira vez, aqui escrevi um texto (Este.) com algumas notas de leitura sobre o livro, editado em 2001. No entanto, quer-me parecer que houve uma questão que descurei (O que não será tão estranho assim.) ou a que, pelo menos, não dei a devida importância. Creio que acontece assim com os grandes livros: e
xigem-nos que voltemos a eles para se revelarem totalmente a nossos olhos. E, sendo que, para mim, é inquestionável que "Lillias Fraser" é um grande livro, quer-me parecer que, de cada vez que o ler, e certamente o lerei mais vezes ainda, encontrarei algo de novo.
Neste caso, já um pouco descentrado da ideia da terceira visão que, numa primeira leitura, me pareceu um dos aspectos cruciais para entender tanto o romance como a personagem de Lillias; o que me chamou a atenção foi a questão da identidade. O problema da identidade é assunto de muitos livros, senão de todos mesmo, e não tenho dúvidas de que "Lillias Fraser" será um dos exemplos mais complexos e mais bem-sucedidos desse problema.
Hélia Correia já antes havia abordado, e de várias perspectivas, o problema da identidade: em "O Número dos Vivos" (1982), acompanhamos o percurso de uma rapariga do campo que se infiltra numa família rica e assim se vai metamorfoseando; em "Soma" (1986) encontramos um indivíduo que, no limiar da velhice se confronta com os seus valores de juventude; em "A Casa Eterna" (1991) uma mulher vai visitar a casa onde um amigo poeta havia nascido e onde havia voltado para morrer, na tentativa de reconstruir a sua vida. E, mesmo depois de "Lillias Fraser", Hélia voltou à questão identitária em livros como "Bastardia" (2005) e, de certa forma, mesmo em "Adoecer" (2010).
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Em "Lillias Fraser", a questão da identidade é de longe muito mais directa do que em qualquer outro livro, já que ela se assume, através, por um lado, do silêncio de Lillias, poucas vezes quebrado ao longo da sua história, e, por outro lado, pela impossibilidade da menina revelar o nome verdadeiro.
Filha e irmã de rebeldes de guerra, na Escócia, ao tempo da Batalha de Culloden, Lillias é salva pela sua capacidade de antever a morte das pessoas quando esta se aproxima. Escondida por várias pessoas, é-lhe dito a certa altura que não fale. Mas aquilo que era uma maneira de ninguém reparar que Lillias ali estava é interpretado pela própria como uma ordem permanente e, na grande maioria das páginas encontramos Lillias num mutismo estóico que, quando é quebrado, mais não revela do que trivialidades, sem que a rapariga alguma vez manifeste algo de verdadeiramente importante.
O fim da batalha amaldiçoa o nome Fraser em território escocês, e os acolhedores de Lillias acabam por lhe atribuir outros apelidos, sendo McLean o mais duradouro, que se perpetua até depois da sua vinda para Portugal, onde fica, inicialmente, a viver no Convento das Inglesinhas, em Lisboa. A sua estadia no convento termina com o Grande Terramoto. Lillias acaba por juntar-se a um grupo que tenta escapar à destruição causada pelo terramoto. Entre essas pessoas, encontra-se Cílicia Peres, que acabará por adoptar Lillias, dando-lhe um novo nome: Lília Peres.
A personalidade fortíssima da rapariga é evidente, mas manifesta-se sempre por outros modos que não a fala. Ela mantém o seu silêncio, nunca sequer protestando acerca dos novos nomes que lhe atribuem. Parte do seu medo em revelar a sua verdade parte também de alguns dissabores que tivera por causa do seu dom, sendo que este dom, por mais nefasto que fosse ou que pudesse parecer, será inevitavelmente uma parte dessa verdade íntima.
A questão do nome assume, aqui, como é claro, uma dimensão simbólica. Sabemos que na vida real, o nosso nome pouco diz de nós ou da nossa verdade. No entanto, no romance, somos levados a olhar para o nome como uma identidade e Lillias, tendo vários nomes, acaba por não ter nenhum, ou seja: quando lhe atribuem outros nomes, outras personalidades, estão, na realidade, a anular a verdade, a verdadeira identidade e esta passa a existir apenas dentro da própria Lillias Fraser, sem que mais ninguém tenha acesso a ela.
Pressente-se ao longo do livro que, tanto o mutismo quase contínuo como a não resistência aos novos nomes não resultado do medo que Lillias sente. Não é forçado que assim pensemos pois o momento em que Lillias recebe a "ordem" de não falar é um momento de grande medo, pois, ainda criança, percebera que estava a ser perseguida. E se essa primeira perseguição era justificada por uma questão familiar, a verdade é que outras perseguições se dão posteriormente, essas justificadas pelo dom que Lillias tem, de antever a morte. Se o medo, ou mesmo uma certa apreensão, não passam, é natural que a menina perpetue o silêncio e que não se oponha a ter o verdadeiro nome anulado.
A entrada em cena de Jayme, o filho desaparecido de Cilícia vem trazer, no fundo, uma alteração a um tempo ligeira e astronómica. Movida por um certo sentimento passional, Lillias muda de comportamentos, parecendo tornar-se mais "leve", menos introspectiva ou menos amedrontada, acompanha Jayme, ouve-o, reage a ele, sem, no entanto, quebrar significativamente o seu mutismo. E sem lhe revelar o nome, ainda que disso pudesse parecer muito próxima.
Se o seu medo por um lado se atenua, por outro não se dissipa.
Confirmaremos que este medo tem razão de ser mais à frente, quando Lillias, acompanhada de Cilícia, se encontra entre tropas escocesas em Portugal.
Na cena em que Lillias é levada junto do general escocês, ela ouve, pela primeira vez em muitos anos, a sua língua de nascença, com a mesma pronúncia. Aqui, a língua assume a mesma importância que o nome: por mais que não tenha uma importância tão extrema no quotidiano, ela apresenta-se-nos como mais um detentor de identidade, um elemento ligado ao íntimo e ao verdadeiro. Ou pelo menos é assim que Lillias reage: quando lhe perguntam o nome, responde "Lillias Fraser".
É a primeira vez, desde que fugira da Escócia, revela o seu nome a alguém. Mas vemos que a sensação de conforto e de intimidade que lhe fora sugerida pela língua se revela falsa: o nome Fraser ainda está ligado aos rebeldes e Lillias tem, de novo, que fugir, para evitar ser assassinada:
"No estado de alegria em que se achava, Lillias disse o seu nome verdadeiro. (...) Um tal esforço de grandeza de alma deixara Lord Loudon tão exausto que o seu humor sofreu um duro golpe. (...) Ela chegou e respondeu-lhe: «Lillias Fraser». O general suportaria tudo menos o nome Fraser outra vez"
E assim Lillias confirma o perigo de revelar o seu nome verdadeiro. Outras interpretações poderiam haver, nomeadamente a de que o apelido Fraser estava associado à guerra, portanto, a uma forma de violência, mas também a uma forma de resistência pois, seja como for, ambas são difíceis de aceitar pelo comum dos mortais. E, assim sendo, o nome que tem um passado de violência, dela não pode fugir nem no presente nem no futuro, pois é inegável que o impedimento de revelar o nome verdadeiro é de uma violência extrema, ainda que de outro tipo.
E, associada com esta problemática, surge-nos uma outra, que é a do reconhecimento: no final do livro, Lillias cruza-se com Blimunda Sete Luas, a personagem do "Memorial do Convento" de José Saramago, que tem um dom semelhante ao de Lillias, ainda que "mais feliz". E aí vemos que só verdadeiramente aquela que tem dentro de si algo de semelhante, algo que por vezes tem que ser silenciado, pode, sem perigo, ouvir o nome de Lillias, representando um quase-espelho, que esse, afinal, terá o direito de saber a verdade.
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