domingo, 31 de julho de 2011

Um texto


Grande parte dos poetas escrevem, a certa altura, a sua "arte poética", que é a sua explicação de como escrevem, de como fazem a sua poesia. Os prosadores também o fazem, senão nos próprios livros, muitas vezes em entrevista.
Maria Gabriela Llansol está certamente entre o poeta e o prosador, pendendo umas vezes mais para um lado, outras vezes mais para o outro. Nos seus textos, frequentemente ela conversa com o livro e com a própria escrita. O acto de escrever é também assunto de muitas das suas páginas, um acto que está em constante mutação, a reformular continuamente as suas próprias regras, fugindo delas, e fazendo desse desvio uma nova regra.
Em 1991, Llansol publica "Um Beijo Dado Mais Tarde" (ed. Rolim), onde se pressente mais ainda uma dimensão pessoal, que se não é auto-retrato, é pelo menos auto-representação. Nele, uma rapariga ensina a sua criada a ler, como Santa Ana ensina Maria/Myriam. Quase no final do livro, encontramos o seguinte texto, que será uma das mais belas, mais complexas e mais completas explicações de como nasce e se transforma o texto de Maria Gabriela Llansol:


Cada vez está mais vento, com mutações de Sol excessivas para os meus olhos que agora, com o ar, o sol e a cor, se fatigam. Eu explico. Trabalho muito com eles, fixando intensamente um ponto-paisagem antes de começar a escrever; depois, o decurso do texto depende do que essa concentração, num lugar vazio, permite. O olhar atento vai voltando a si mesmo e, então, o queeu consigo ouvir são as ondulações vibratórias entre esses dois pontos. Os meus olhos recebem, num ponto-voraz, as linhas que sustentam o espaço, feixes incidentes paralelos, raios que se afastam progressivamente, termos geométricos.
Lá onde estás, deve ser assim.
Nunca olhes o bordos de um texto. Tens que começar numa palavra. Numa palavra qualquer se conta. Mas, no ponto-voraz, surgem fugazes as imagens. Também lhes chamo figuras. Não ligues excessivamente ao sentido. A maior parte das vezes, é impostura da língua. Vou, finalmente, soletrar-te as imagens deste texto, antes que meus olhos se fatiguem. O milionésimo sentido da voz, "tiro o lápis da mão", o gesto de partir a luz, o pensamento de uma criança, cópias da noite, passeio nocturno, "era um dia verde", o afecto do negro, sob o lenço da noite. O indizível é feito de mim mesma, Gabi, agarrada ao silêncio que elas representam.

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