NO TEMPO DA ÁGUA
"Cerrai-vos olhos, que é tarde, e longe,
e acabou-se a festa do mundo
começam as saudades hoje"
é com esta citação da "Cantata Vesperal" de Cecília Meireles que abre o segundo livro de crónicas, publicado em 1990, de Luísa Dacosta. A citação é realmente apropriada pois, de certa maneira, sintetiza o espírito deste livro.
Relembremos que o primeiro livro de crónicas, editado dez anos antes, tinha por título "A-Ver-o-Mar", o nome da localidade, em Vila do Conde, sobre que estas crónicas se debruçam. "Morrer a Ocidente" (ed. Figueirinhas, 2a ed. Asa 2002), vem recuperar esse lugar e essas pessoas, mas num registo diferente.
Penso que seria pertinente referir a questão da tipologia destes textos para melhor definir a sua organização. Porque, se esquecermos a noção "estrita" de romance, não seria difícil vermos neste livro um. Para começar, há uma personagem que atravessa 30 destes 31 textos- que será a narradora, personagem que não interfere no desenrolar dos acontecimentos senão para ouvir e contar o que ouve, e que podemos deduzir tratar-se da própria Luísa Dacosta- bem como vários personagens que vão passando de crónica em crónica, e há ainda uma sinopse geral, ainda que cada texto seja uma entidade individual, autónoma.
É um facto que cada uma destas crónicas é auto-suficiente: se as lêssemos isoladas não perderiam o seu sentido. Mas é também facto que, na sequência, elas contribuem para a construção de uma ideia. Essa ideia é a de uma realidade a morrer. O título poderia apontar para isso: trata-se de uma referência ao pôr-do-sol- "E é quando o sol começa a sua lição, tentando ensinar-me a morrer a ocidente" (pag.18)- mas não deixa de ser uma morte. E neste livro há várias.
Na dedicatória que Luísa escreveu no meu exemplar de "Morrer a Ocidente", refere-se a este livro como "um morrer da praia e um morrer interior", e parece-me que esta será a definição mais sintética e adequada das mortes deste livro.
A citação de Cecília Meireles para outra coisa não aponta, senão para esse terminar, a que se seguem as saudades. De facto, se em "A-Ver-o-Mar" econtrávamos a descrição de um modo de vida especial, complexo nas suas estruturas social e laboral; este segundo livro recolhe crónicas em que vemos o lento desaparecer de muitos dos elementos que sustentavam essas estruturas. A leitura dos dois livros, em díptico, é, parece-me, não só um valioso testemunho literário, como poderia muito bem ser analisado como uma espécie de estudo sociológico.
Voltando, então, ás linhas-de-força descritas na dedicatória que acima citei, comecemos pelo morrer da praia. A praia, em Luísa Dacosta, tem duas frentes: a da introspecção que provoca e a da vida que nela se desenrola- constituida em grande parte pela pesca e pelo empaledar do sargaço. É esta vida da praia que vemos morrer neste livro.
"Ninguém quer ir, já se sabe, quem troca chão conhecido e luz do sol por cova e escuridão?!"
(pag.107)
"_Ai, o tempo do pilado, foi chão que deu uvas."
(pag.151)
vamos lendo. Há um sem-número de fragmentos que poderia citar para evidenciar esta ideia. O mar representa, para a comunidade piscatória, uma força perigosa e incerta, mas ao mesmo tempo necessária: necessária enquanto "local de trabalho". Mas ao passo que os mais velhos mantêm ainda os mesmos métodos, frequentemente nos demonstram que os mais novos se interessam cada vez menos pelos trabalhos do mar, preferindo uma vida mais segura e confortável. Seria interessante -mas é acima de tudo impossível para mim fazê-lo completamente- somatizar todas as "visões" possíveis do mar que colhemos nestes livros de Luísa Dacosta. Ele pode ser utilizado dos mais variados pontos de vista: pode definir diferenças entre gerações; mas também de sexo, uma vez que, mesmo sendo o mesmo mar, há nele os trabalhos dos homens e os das mulheres. E aqui, de novo, poderíamos retirar uma leitura sociológica, como, no fundo, acontece com toda a grande literatura: vale por si só, mas não perde validade quando a tentamos analisar de outros prismas.
O outro "morrer" deste livro é, então, o "morrer interior". A leitura dos livros de Luísa Dacosta vai-nos sempre denotando uma postura onde sempre há um travo de angústia. É essa a força que incita as passagens mais poéticas e belas ao longo de todos os livros, desde o longínqiuo "Província" (ed. Minerva, 1955, 2a ed. Figueirinhas, 1984) até aos diários publicados recentemente. Estas crónicas não abdicam da paleta que a angústia permite.
Este é, portanto, um lado mais pessoal e intimista da escrita de Luísa Dacosta, e também o lado em que esse personagem comum -a narradora- intervém de uma forma mais activa.
Como todos os livros, "Morrer a Ocidente" abre com um prefácio, momento de pungência extrema, mais semelhante a um poema em prosa do que propriamente a um conto ou uma crónica. Nestes fragmentos denotamos um certo sentimento de solidão, que se resolve pela contemplação: essa contemplação se é, inicialmente, uma espécie de "fuga", de "distração", cedo se transforma numa forma de encontro do eu, uma vez que, olhando para o exterior, e através da descrição das imagens, o eu se torna mais nítido.
Para tudo isto, contribui em muito a mestria no uso da palavra que foi sempre uma das principais características de Luísa Dacosta. Esse cuidado minucioso com a escolha das palavras, com a criação de ritmos, não só torna as crónicas bem mais densas e fortes, como introduz como que pausas no discurso que, mormente, se debruça sobre as pessoas de A-Ver-o-Mar.
E se, por um lado, esta situação resulta numa espécie de cisão entre a narradora e os narrados, por outro, cria também uma aproximação pois, observando o lento falecer do quotidiano de A-Ver-o-Mar, a narradora encontra esse falecer interior, pessoal.
Caso a referir àparte neste livro é a primeira crónica. Hesito um pouco se devo referir-me a ela como crónica ou como conto. Este texto havia sido editado nove anos antes, numa plaquette especial, com ilustrações originais de Jorge Pinheiro, com o título "Nos Jardins do Mar" (ed. Figueirinhas). Trata-se num conto que parte da imagem da sereia da Igreja de Rates, na Póvoa de Varzim. Significativamente, este texto abre o volume. Há nele algo de muito lírico, de fantástico, o que talvez nos remeta um pouco para a escrita para crianças de Luísa Dacosta. Mas mesmos esse texto termina com uma ideia de morte, uma morte que não é simples, mas que nos deixa uma interessante mensagem: a de que, mesmo depois da morte, há forma de perpetuar a vida, nomeadamente através da memória (Que pode, de certa forma, ser uma outra forma de olhar este livro.).
A fechar o volume, o tema da morte volta a ser central: a última crónica centra-se no Ritual da Passagem das Almas. Além de uma crónica belíssima, carregada de sentidos e de uma escrita densa, acaba por retomar a ideia de uma "vida depois da morte" não no sentido da reencarnação, mas num sentido bem mais complexo, que é, se quisermos, algo semelhante à ideia da morte da sereia no primeiro texto.
Obra em que a capacidade de observação e a capacidade de escrita estão perfeitamente fundidas, "Morrer a Ocidente" é, sem dúvida, um dos melhores livros de Luísa Dacosta. Ao longo da nota que agora termino, fui observando este trabalho da autora de vários pontos de vista, e penso que também isso corrobora a ideia de estarmos perante uma obra importantíssima, já que, seja qual fôr o nosso ponto de vista, é sempre capaz de nos responder, de nos levar a pensar e, talvez, a chegar a conclusões.