sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A Poesia


Era um encontro impossível. Deitados à noite
sobre uma colcha apenas conseguiram tocar-se
com o choro, mas o cavaleiro não conhecia esse
segredo, nem via que o seu beijo se assemelhava a
uma morte definitiva. Porque tudo nele era matéria
flutuante, não suportava a felicidade. Uma luz
que não morria saía dela, como um barco que
demora séculos a desfazer-se abandonado num
porto, já devorado pelas algas. Por isso, o homem
vestia de novo a armadura e esperava até que,
desaparecido o anjo, solta para a caça, ela voltasse
a ser a presa sem covil, à mercê da sua lança, onde
por suas próprias mãos havia colocado uma insígnia.


Jaime Rocha
Zona de Caça
2002, ed. Relógio d´Água
pintura de Ford Madox Brown

A beleza de Elizabeth Eleanor Siddall, pintada por Dante Gabriel Rossetti

Estou, de momento, a meio da leitura do mais recente romance de Hélia Correia. "Adoecer" é uma belíssima história de amor, entre dois seres excepcionais, o pintor Pré-Rafaelita Dante Gabriel Rossetti e Elizabeth Siddal, sua companheira e modelo para as mais variadas pinturas.
Se já o poeta Jaime Rocha, companheiro de longa data de Hélia, dedicara vários livros aos Pré-Rafaelitas, entre os quais "Lacrimatória" e "Necrophilya", "Adoecer" é mais uma oportunidade de atravessarmos algumas visões apaixonantes quer dos Pré-Rafaelitas, quer da relação entre Siddall e Rossetti.



quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Travelling III


Limpei os óculos a uma mulher a quem esqueci o nome.
Nunca lho perguntei. Foi um acto de amor. Falámos e de tudo o que dissémos
nada foi importante.
Jamais senti desejo de revê-la.
Despedi-me de seu corpo
rasguei-o sem perder-me.

Tudo isso e o ladrar de um cão
ficará na memória.
Talvez renasça um dia numa saga. Comigo
passa-se com os animais o mesmo que se passa com as pessoas.
gosto deles mas temo aproximar-me. Sinto-me tão exterior às coisas.
Uso-as com o máximo de desonestidade
mas isso não me preocupa,
tenho a vida inteira à minha frente para sentir remorso.


Eduarda Chiote
Travelling
1983, ed. O Oiro do Dia (com "Quem Não Vier do Sul" de Helga Moreira)
pintura de Vanessa Chrystie

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Anges Chus/ Anjos Caídos (fragmentos)



La hauteur du ciel se mesure par la chute de anges.


*
Les anges peuvent s´approcher du soleil sans que leurs ailes fondent.
*
Les anges sont transparents. Sont-ils pour autant invisibles?
*
Les anges ont assité à l'expulsion de l'éden, ont vu les empires naître et crouler, les hommes se faire périodiquement faucher tels des blés, les charniers remplacer le fumier, pousser des moissons de soldats du stylo transgéniques, ont été témoins de la mort des dieux et de la décadence des hommes. Mais leur longévité ne leur sert de rien: les anges sont dépourvus de mémoire.
*
Personne ne sait où vont les anges quand ils meurent. L'homme n'explore l'espace, sous les plus divers pretextes, que dans l'espoir de découvrir le cimetière des anges.
*
Les anges ne font que passer. Comme le temps. Seul le silence s´installe.
*
Qui veut faire l'ange se condamne à la chute.
*
Qui reçoit une feinte d'ange sur la tête doit la prendre comme une bénédiction.
*
On sait qu'un ange peut choir. On ignore si un diable peut s'élever.
*
Les chutes d'anges, comme le pluies d'étoiles, annoncent l'extinction prochaine du ciel.
*
Les anges ne peuvent pas pénétrer en enfer. Ils visitent la terre comme l'antichambre de la damnation.
*
Les démons sont légion. L'armée des anges au ciel a été créée commo mesure de dissuasion. On ne rencontre sur terre que des anges déserteurs. Ils ne peuvent postuler que des postes de gardiens: ils n'ont appris qu'à obéir.
*
Les anges ne craignent pas l'orage. Ils se rient du tonnerre des éclairs. Mais quand dieu se fâche et envoie, au lieu de pluie, des plaies, les anges volent bas.


Saguenail
Il n'y a Pas De Saisons en Enfer
2007, ed. Hélastre

desenho de Alberto Giacometti


***************************



A altura do céu mede-se pela queda dos anjos.
*
Os anjos podem-se aproximar do sol sem que as suas asas derretam.
*
Os anjos são transparentes. Serão para todos então invisíveis?
*
Os anjos assistiram à expulsão do éden, viram impérios nascer e sumir, os homens a serem periodicamente ceifados como milho, as sepulturas a substituir o estrume, plantações de soldados de chumbo transgénicos, foram testemunhas da morte dos deuses e da decadência dos homens. Mas a sua longevidade não lhes serve de nada: os anjos são desprovidos de memória.
*
Ninguém sabe para onde vão os anjos quando morrem. O homem não explora o espaço, sob os mais diversos pretextos, senão na esperança de descobrir o cemitério dos anjos.


*
Os anjos estão só de passagem. Como o tempo. Apenas o silêncio se instala.
*
Quem quer fazer o anjo condenar-se à queda.
*
Recebendo um anjo falso na cabeça deve tomá-lo como uma bênção.
*
Sabemos que um anjo pode cair. Não está claro se um demônio pode ascender.
*
As quedas dos anjos, como as chuvas de estrelas, anunciam o aproximar da extinção do céu.
*
Os anjos não podem entrar no inferno. Eles visitam a terra como antecâmara da condenação.
*
Os demónios são legião. O exército de anjos no céu foi criado como medida de dissuasão. Não reencontramos em terra senão anjos desertores. Eles não podem ter mais que postos de guardiães: não aprenderam senão a obedecer.
*
Os anjos não têm medo da tempestade. Eles riem do trovão do relâmpago. Mas quando Deus fica irado e manda em vez de chuva, pragas, os anjos voam baixo.





Tradução livre de Sadsamson

sábado, 25 de dezembro de 2010

Hélia Correia: Insânia

UMA ESPIA NA CASA DO AMOR

Há já algum tempo que leio os livros e todos os dispersos que encontro de Hélia Correia, e, para ser sincero, quanto mais leio, mais chateado fico. Seriamente chateado. Penso na enormíssima quantidade de "poetas" que andam por aí a editar livros e mais livros; e depois comparo com o que tenho encontrado em revistas e antologias de poesia de Hélia Correia, e percebo que, se a autora tivesse seguido esse lado, poderia hoje ser uma excelentíssima poeta. Não foi o caso. Em 1981, com "O Separar das Águas" (ed. Regra do Jogo), Hélia escolhe a prosa, em detrimento de quase dez anos a publicar poesia dispersamente e, salvo duas pequeniníssississimas edições, "A Pequena Morte" (com "Esse Eterno Canto" de Jaime Rocha, 1988, ed. Black Sun) e "Apodera-te de Mim" (2002, ed. Black Sun), tem sido na ficção que Hélia Correia se tem demonstado um dos casos de mais séria originalidade na nossa literatura. Para o provar, cá estão romances como "Lillias Fraser" (2002, ed. Relógio d´Água) ou o mais recente e aclamadíssimo "Adoecer" (2010, ed. Relógio d´Água) ou novelas como "Montedemo" (1983, ed. Ulmeiro) ou "Bastardia" (2004, ed. Relógio d´Água).


"Insânia" (ed. Relógio d´Água), editado em 1996, parece-me ser um caso que não pode ser comentado sem se aludir ao passado de Hélia na poesia. Isto porque, antes sequer de falar da história do romance, há que referir toda uma construção de linguagem, toda ela absolutamente poética, que é a estrutura que sustenta todo o romance, mais, se calhar, do que os restantes. Dessa linguagem, podemos dizer, antes de mais, que é sempre surpreendente, por mais que leiamos Hélia Correia. A força é uma força telúrica. A escrita de Hélia Correia vive duma espécie de misticismo, de encantamento, que a palavra expressa perfeitamente, criando uma espécie de presságio. Poderíamos ligar esta ambiência à tradição oral, o que me parece adequado, mas também aos arqui-textos bíblicos, o que se torna praticamente inegável quando relembramos que os primeiros dois títulos de Hélia para a bíblia nos remetem, "O Separar das Águas" e "O Número dos Vivos" (1982, ed. Relógio d´Água). Assim sendo, a questão de uma linguagem com algo de arcaico e de grotesco não é também alheia à construção dos romances de Hélia Correia.
Precisamente essa espécie de estética do grotesco será muito importante para, na minha opinião, entender "Insânia". Esta história tem algo de grotesco, de "pura negligência" (pag.8). É a história de uma pequena povoação a quem, um dia, do nada, surge uma pequena rapariga, muda e provavelmente atrasada mental a quem dão o nome de Natalina, que fica alojada na casa da família de Francisco Amor.
A desculpa de que se trata de uma neta, filha dos filhos emigrados no Canadá cedo se torna impossível de sustentar, porque essa família emigrada regressa para férias. E assim, toda a aldeia se diverte passando Natalina de casa em casa, para a esconder dos "Amores do Canadá".
À medida que a família emigrada começa a dar sinais de não voltar a partir, a povoção começa a dar sinais de loucura, não só as pessoas, mas o próprio ambiente, a própria natureza, culminando na debandada em massa das mulheres, que começam a vaguear pelas redondezas, atrás de uma luz divina.
São de notar dois aspectos simbólicos que me parecem evidentes:
o primeiro é a da incomunicabilidade. Mais tarde, em "Lillias Fraser" voltaríamos a encontrar esta ideia. Neste caso, Natalina, que não fala, limitando-se a grunhir, o que vai de encontro a todo um comportamento animalesco. A incapacidade de se expressar pelas palavras, bem como a sua natureza quase desumana, contribuem para que se entenda Natalina como um ser que quase não é deste mundo. É verdade que, no fundo, Natalina não chega a ser uma personagem. Ela é meramente um pretexto.
Um pretexto para aquilo que me parece ser o outro aspecto simbólico interessante: Natalina está infiltrada naquela população, principalmente na família Amor (O nome será também ele simbólico.), onde se anunciam os sinais de mudança dos tempos. Se há naquela população uma espécie de amor, esse amor não é propriamente pela criança. É um amor à interacção: apesar de ela-mesma não falar, Natalina está na origem da comunicação entre as várias famílias da aldeia, que há algum tempo se haviam tornado mais fechadas sobre si mesmas e sobre a televisão e as notícias de que o mundo estava a transformar-se. Será Natalina que colocará de novo todas as pessoas a funcionar como um colectivo e não como vários elementos isolados. Assim sendo, esse amor, que o nome da primeira família de acolhimento expressa, não me parece ser pela criança, mas antes pela vida propriamente dita, pelo viver dos afectos e das intrigas.

Um romance que é, todo ele, uma "insânia", é importante a capacidade de escrita da autora, mais do que nunca. Hélia Correia tem, como disse acima, uma grande facilidade em explorar esoterismos e misticismos. E não só a sua linguagem é generosa a sustentar com verosimilhança o ambiente de loucura, como também as análises de Hélia, que à primeira vista poderiam soar até excessivas, revelam-se como a única forma de realmente dar sentido a uma narrativa sobre a perda de sentido das coisas. É, portanto, justo dizer que Hélia Correia se colocou perante uma proposta muitíssimo exigente, mas que conseguiu vencê-la, domá-la. Em nenhuma das suas partes este romance cede a facilitismos. Pelo contrário, arrisca. E não só desafia a escrita a perseguir a loucura humana, como nos desafia a nós, leitores, a acreditar nela, a tentar entendê-la, recusando acreditar que não haja para ela uma explicação.
A resolução do final do livro é também ela surpreendente. Na verdade, muitíssimo analítico, este desenlace -que me impeço de aqui revelar- coloca uma série de questões de psicologia social, e, no fundo desarma-nos: ninguém pode dizer que não acredita que a loucura tenha sentido. As mais das vezes, assumimos que não sabemos que sentido é esse. Mas a nossa necessidade de encontrar um sentido, leva-nos por vezes às situações mais inusitadas, que resultam sempre na escolha de um bode expiatório. É o que acontece depois da insânia de "Insânia".
Constituido por dois "livros", este romance vai caminhando da luz para as trevas, tornando-se cada vez mais intrincado e complexo, mais obscuro. Momento, este, ideal, para reforçar a força poética da palavra de Hélia Correia: onde o que é narrado se revela tão negro e tão inesperado, é a força da palavra, o seu ritmo, a sua luz, que nos deslumbra e nos agarra. Hélia Correia escreve com tudo aquilo que não pode ser dito, com coisas quase abstractas e inomináveis. É essa a verdadeira poesia da sua prosa.
Por todas estas razões, parece-me que "Insânia" é sem dúvida um grande romance. E sem dúvida mais uma razão para eu ficar chateado.

Olga Gonçalves: Rudolfo

QUANDO O TELEFONE TOCA

Falecida a autora em 2004, a obra de Olga Gonçalves tem caído recentemente num silêncio bastante desagradável. Não sou, de facto, um grande defensor da sua obra em poesia, que não me parece tão relevante quanto, eventualmente, a sua obra de ficção. É facto que foi com a poesia que se iniciou, em 1972, com "Movimento" (ed. Moraes), mas logo em 1973, daria à estampa "Mandei-lhe Uma Boca" (ed. Seara Nova, 3a ed. Caminho, 1997), e, até 1987, ano em que edita o último livro de poesia, "A Caixa Inglesa" (ed. Rolim), intercalará sempre a publicação de poesia com a de ficção.
No entanto, é justo dizer que Olga Gonçalves optou mesmo pela ficção. Recentemente, Maria Graciete Besse editou "Os Limites da Alteridade na Ficção de Olga Gonçalves" (ed. Campo das Letras), onde analisa muito seriamente a obra da escritora. Ao ler o livro, parecem-me evidentes as qualidades de ficcionista de Olga G., e pergunto-me o motivo por que a sua escrita, de facto, parece estar a desaparecer.
A razão que me parece mais normal será o facto da temática de fundo, comum a quase todos os livros da autora. A emigração e as questões com ela relacionada, acabam por estar sempre presentes nesta obra, quer em papel principal- caso de "Este Verão, o Emigrante La-Bas" (1978, ed. Moraes)- quer como assunto secundário mas no entanto presente.

"Rudolfo"(1985, ed. Rolim) não escapa a essa temática. Ela é secundária, mas nem por isso se sente mesmo.
Destaco "Rudolfo" não só porque foi o livro de Olga Gonçalves que li mais recentemente, mas também porque me parece ser um caso de verdadeira originalidade.
Refira-se, para começar, que este livro surge na Colecção Fantástico das edições Rolim, uma colecção de contos e novelas de tema "fantástico", onde editaram alguns dos nossos mais importantes escritores, como Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno, Nuno Júdice, Maria Regina Louro ou Natália Correia.
No caso de Olga Gonçalves, o assunto não é "fantástico" no sentido mais imediato do termo, mas trata-se de uma história que, apesar de verosímil, tem algo de "improvável" que faz adequar-se ao contexto da edição, ainda que não ceda totalmente a ela.
Concretamente, "Rudolfo" é a história de uma escritora de romances policiais que, numa época particularmente solitária e depressiva da sua vida começa a receber telefonemas a meio da noite, de um homem que sempre lhe pede que não desligue, ainda que por vezes se apresente como "o ladrão". Apesar de relutante, a mulher vai trocando algumas palavras com o homem, que lhe dá todos os indícios de conhecer os seus hábitos. A certa altura, o homem arromba a porta da mulher, só para depois poder contar-lhe que ficara durante a noite de vigia, para ter a certeza que nenhum ladrão ou assassino verdadeiro a incomodava.
E, aquilo que inicialmente parece ser uma espécie de luta pelo poder, o poder de falar ou de desligar, etc, acaba por lentamente se tornar numa troca biográfica, senão mesmo afectiva.
Aqui precisamente, entra o tal pano de fundo da emigração, já que Rudolfo seria angolano de origem, e, em determinada altura desta novela, assume ele o papel de narrador, para nos contar a trágica partida de Angola para Portugal e todos os problemas que sofreria no nosso país.
Entende-se que esta foi a forma que Olga Gonçalves encontrou de solidificar essa figura de Rudolfo que, no início do livro se nos apresenta ainda como uma voz ao telefone, uma voz que é para nós tão misteriosa como para a protagonista.
Depois, Rudolfo torna-se realmente pessoa, conhecemos o seu historial. Essa é, portanto, a relevância da presença da emigração em "Rudolfo". No entanto, a minha dúvida é se essa presença não se torna relevante demais. Ou seja: inicialmente, "Rudolfo" apresenta-se-nos como uma narrativa realmente surpreendente e empolgante, uma vez que nos coloca perante uma situação improvável e que vai contra tudo aquilo que os pais nos ensinam desde pequenos: efectivamente, este "ladrão" quer apenas conversar com a escritora, e, mesmo quando tem hipótese de lhe fazer mal, escolhe não fazer. Além disso, há nas conversas entre ambos uma espécie de incomunicabilidade consciente, como se houvesse naquela troca algo que, na verdade não poderia ser dito por palavras, é uma ideia que se sente logo no princípio do livro. O problema começa quando o passado de Rudolfo começa a ser objecto de análise: uma análise minuciosa, excessiva por vezes, que retira essa carga mística de cima do personagem. E por isso quando, no final do livro, a escritora fica tão entusiasmada com a ideia de conhecer Rudolfo, nós não partilhamos desse entusiasmo, porque o conhecemos o suficiente para não precisar de o "encontrar".
Os escritores todos têm uma obsessão. É por isso que escrevem. Ou, pelo menos, é isto que eu defendo. Olga Gonçalves teria a dela, possivelmente com a problemática da emigração.
Não sei, portanto, se será justo repreender em "Rudolfo" a relevância dada à emigração. Mas a verdade é que ela ensombra uma história criativa e inesperada, tornando-a mundana e quase explicável...
É certo que Olga Gonçalves resolve muitíssimo bem o final do livro. O desenlace, que também pode ser uma espécie de quase-anti-climax, resulta muitíssimo bem, é capaz de nos emocionar, de nos fazer coincidir com a personagem da escritora. E de referir, ainda, os capítulos finais, em que Olga desmonta uma série de processos literários de transformação de uma história, quase nos explicando passo-a-passo como transformou uma situação auto-biográfica numa sequência romancesca.
Por assim dizer, a minha opinião é que, se fossem amputados a esta novela alguns dos seus capítulos centrais sobre a origem de Rudolfo, estaríamos perante uma das histórias mais fantásticas dos últimos anos. Nos vários sentidos da palavra.
Destaco ainda a capa do livro, com um desenho de João Carlos Albernaz que, não sendo definitivamente aquilo com que, esteticamente, me identifico, me parece captar muitíssimo bem a atmosfera desta história.

Sobre o Natal


Neste comércio festivo que há dois mil anos quase
perdura mal cobrindo remendadamente
o solstício do Inverno e os deuses sempre vivos
de cuja falsa morte o mundo paga em crimes,
como em vileza humana, o medo que escolheu
quando ao claror da aurora rósea e livre
de viver como os deuses e com eles
preferiu a lei e a ordem projectadas
na sombra em sombras da caverna obscura
e desejou o mal em preço de ser-se homem —
tudo o que em milhares de anos é tribal
congrega-se feliz num doce rebolar-se
da traição de que fomos contra a vida.
Tão vil que levou séculos a inventar
um deus assassinado para desculpá-la,
e fez dele o comércio das famílias
que cortam no peru as raivas de existirem,
beijando-se visguentas, comovidas,
tal como têm babado os pés dos deuses,
ah não eles mesmos mas imagens vãs
que não resplendam da grandeza humana.
Alguma vez teremos o dinheiro
para comprar de novo o Paraíso,
em vez de prendas para o sapatinho?
O Paraíso aqui — aquele que venderam
no começar do mundo. E que nos trocam
por outros no futuro ou nos aléns,
agora, aqui, aberto a todos, claro
- um sol sem fim nos bosques ou nas praias,
uma nudez sem morte nos corpos sem alma.
Talvez que o só vejamos por um instante
naquele espaço-tempo entre morrer
e o ficar morto para os antropófagos
dos deuses e dos homens, hóstia ou ossos.
Entretanto, senhoras e senhores, as Boas Festas.


Jorge de Sena
Peregrinatio ad Loca Infecta
1973, ed. Portugália
pintura de Vincent Van Gogh

Canção Para o Dia de Hoje

Iannis Xenakis: Metastaseis

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Canção especialmente para o dia de hoje

Maria Rita: Não Vale a Pena

I´m Coming Home


O tempo corre nas paredes livremente
mas não toma a direcção da morte: ela esteve aqui
desde o princípio, uma vocação adormecida
debaixo do estuque.

A manhã nasce viciada nos brandos venenos
que os móveis destilam, haverá pombas
sobre o parapeito, o senhorio arrastará o chinelo
sob um eco que caminha pelo tecto.
Nada poderá perturbar a fluência da penumbra
nos cantos para onde se varre a casa
aos domingos. A pele respira tenuamente mas não posso falar
em tristeza. Este é o meu endereço, um lugar composto
para a submergência.


Rui Pires Cabral
Música Antológica & Onze Cidades
1998, ed. Presença
pintura de Pablo Picasso

Poema


Foste para a América como um camponês
dum romance que li no avião
até à cidade onde me esperava
o teu amigo.
Tinha sido ontem.
Ninguém sabia ao certo, os andaimes
ao alto dos andares, talvez findasses
antes de bater no chão.
O cabelo loiro rasgado de sangue.

Um miserável vapor o corpo vai.
Um grau inferior e rutilante
findara.
Nunca mais sigo a teu lado
na ferida da adolescência.
Volto os olhos para o nome dos barcos,
a colina com árvores baixas,
sombras de mulheres com cestos,
gaivotas pousadas no armazém.
O lençol com que te taparam
leva contigo
a maldição dos movimentos reais.

Não te vás embora.
Aquele inverno foi o mais feliz,
pela primeira vez tinha uma lareira,
vinha a voz aceitadora do teu pai
trazer-me de manhã duas laranjas,
as galinhas no quintal a comer milho,
a lua sobre o mar no espelho da sala.

A solitária vida e o teu amigo
diziam-me para entrar naquele bar
com músicas de ninguém.


Joaquim Manuel Magalhães
Intervalo e Tentativa
1977, ed. Inova
pintura de Carla Gonçalves

Estrada de Fogo


Pedra a pedra a estrada antiga
sobe a colina, passa diante
de musgosos muros e desce
para nenhum sopé;

encurva, na abstracta encruzilhada;
apaga-se, na realidade. Morre
como o rastilho do fogo,
que de campo em campo aberto

seguia, e ao bater na mágica cancela
dobrava a chama, para uma respiração,
e deixava o caminho do portal
incólume e iniciado.

Fiama Hasse Pais Brandão
"Três Rostos" (Arómatas e Ecos)
1989, ed. Assírio e Alvim
pintura de Mário Cesriny de Vasconcelos

Cena 6- Transgressora


O homem olha. o homem não olha. o homem sabe que olha. o homem não sabe se vê. o homem quer saber se vê. o homem não quer saber se sabe. o homem quer saber se sabe ver. o homem interroga o seu querer saber se alguma coisa se vê. o homem não responde às interrogações sobre o seu querer saber se alguma coisa provavelmente se vê. o homem cria o silêncio para não responder às suas próprias interrogações sobre o seu desejo ou a sua recusa de saber se alguma coisa é ou não possível de se ver daqui. o homem interroga o seu próprio silêncio com que persiste em responder às suas interrogações acerca da sua indiferença sobre o conhecimento de alguma coisa que não sendo visível deste local se torna de existência duvidosa. o homem distancia-se do processo pelo qual poderá averiguar sequer se a dúvida se vê. o homem propõe uma tarefa que é a própria negação da proposta. o homem abre a porta.


E.M. de Melo e Castro
Corpos Radiantes
1982, ed. &etc
desenho do autor

Balance


glad to see you're wide awake
this is the great escape
from a life that tried to mould you
and the lie it sold you

what would you do?
what wouldn't you do?
what would you do?
what wouldn't you do?
what would you do?
what wouldn't you do?

did you try to reason why
look yourself in the eye
what you are is all you have been
what will be is all you do now

what would you do?
what wouldn't you do?
what would you do?
what wouldn't you do?
what would you do?
what wouldn't you do?

spill a tear as your sense of self slowly
melts away
melts away
melts away

until death's mirror reflects
the meaning of our lives
we wander aimless and mesmerised
as the fear starts to rise.


Vincent Cavanaugh, Danny Cavanaugh, John Douglas
(Anathema)
A Natural Disaster- 2003
gravura de Francisco Goya

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

(Mais) Duas Grandes Cenas de Um Musical

Chicago, de Rob Marshall, vencedor do Oscar de Melhor Filme do Ano

"When You´re Good To Mama", brilhantemente interpretado por Queen Latifah, no papel de guarda da prisão de mulheres assassinas.



"Cell Block Tango", onde as prisioneiras explicam como mataram os respectivos maridos, conta com a interpretação de, entre outras, Catherine Zeta-Jones, no papel principal

Guevara I


Levaremos ainda as nossas roupas
vossos idílios sobre os sulcos
vossos pães vossas sujas refeições
pelas clareiras vossas tatuagens.

Levaremos as vossas agonias.
Coisas. Vestígios ácidos da dor.
Estilhaços. Matéria.
Vossas fontes sugadas e musgosas.
Vossas hostes elementares.
O encolher dos dedos sob as mantas
nas ciladas. Vigílias. Levaremos
vosso cheiro a folhagens e a verão.

Levaremos na pele vossas cidades
em sua inexistência.
Vosso rijo manobrar dos fusis.
Recondução da história. O novo, o limpo
acumular dos corpos para o cio.

Levaremos os climas. Mais cerrados,
no lugar da memória, avançaremos
com vossos restos de calcinação.
Avançaremos todos com os ombros
quase amorosamente protegidos
por ombros paralelos.
Seguiremos e de ecos indignados
seguiremos por onde nos chamastes.

E ainda traremos certas águas
tranquilamente sobre as tardes vilas
onde o ciclo dos sangues se fundia
das raparigas nunca virgens, e outro,
o fértil, sobretudo, em vossas chagas.

Hélia Correia
da antologia "10 Poemas Para Che Guevara",
org. Egito Gonçalves, 2a ed. Campo das Letras, 1997

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

sábado, 18 de dezembro de 2010

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A Lume II


Vivo em lama
à beira do derrame.
Na cratera.

Vivo em cama
de pregos, vidros,
dentes de fera.

Vivo em chama.
Pegou-se o fogo ao fato
que morte e vida
irmana.

Luiza Neto Jorge
A Lume
1989, ed. Assírio e Alvim
Pintura de Edvard Munch

sábado, 11 de dezembro de 2010

Novas Cartas Portuguesas


Foi em 1973, num país atrasado chamado Portugal, que apareceu um livro chamado "Novas Cartas Portuguesas". Na capa, assinavam Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.
Maria Isabel Barreno, após várias participações em volumes colectivos de estudos, que não raro já incluiam análises à condição da mulher portuguesa, estreara-se no romance apenas em 1968, com "De Noite as Árvores São Negras", a que se seguira, em 1970 "Os Outros Legítimos Superiores".
Maria Teresa Horta estreara-se bastante mais cedo, em 1960, com o livro de poesia "Espelho Inicial". Passara já pela Poesia 61, pela colecção Pedras Brancas e fôra uma das autoras "efectivas" na Guimarães editores, no tempo da Colecção Poesia e Verdade. O seu primeiro romance, "Ambas as Mãos Sobre o Corpo", viera a lume em 1970, e em 1971, "Minha Senhora de Mim", um livro de poemas, levanta graves problemas à pide, por abordar de forma muito directa a sexualidade feminina.
Maria Velho da Costa, entre traduções, artigos e estudos, publica o primeiro romance em 1966, "O Lugar Comum". Mas seria "Maina Mendes", de 1969, que projectaria Maria de Fátima Bivar Velho da Costa para o reconhecimento, merecido, de uma das obras de prosa mais importantes do século.
Na consequência dos problemas de Maria Teresa Horta com o regime, surge a ideia de um livro escrito pelas três. Assim nasceriam as "Novas Cartas Portuguesas".
Para a edição, uma outra grande mulher se lhes junta. Natália Correia, poeta, romancista, ensaísta e directora do conselho de leitura da Estúdios Côr é a única que se arrisca a dar o nome pelas escritoras que passariam a ser conhecidas como As Três Marias.
O livro, cedo detectado e apreendido pela pide, daria origem a um longo processo judicial, que incluia acusações de pornografia e ofensa à moral pública. Com a sentença pronta a ser dada em Abril de 1974, as Marias acabaram por ver o assunto resolvido pela Revolução.
Mas há que referir que, ao longo do processo, as Novas Cartas juntaram os mais variados movimentos feministas internacionais, a apoiar as escritoras, com vigílias, marchas e manifestações, em que estiveram incluidas verdadeiras figuras históricas como Marguerite Duras e Simone de Bouvoir.
"Novas Cartas Portuguesas- Ou de como Maina Mendes pôs Ambas as Mãos Sobre o Corpo e deu um pontapé no cu dos Outros Legítimos Superiores" é uma obra escrita em prosa e poesia, que vai buscar a sua génese às "Cartas Portuguesas" atribuidas a Soror Marianna Alcoforado, freira que, após escrever cinco cartas ao seu amado Marquês de Chamilly, terá morrido de amor. Rainer Maria Rilke, que descobriu as cartas, descreve-as como testemunhos de um amor "grande demais para caber numa pessoa só". Ao longo do livro das três Marias, perde relevância Marianna e ganha-a Maria, enquanto nome que poderia representar o comum da mulher portuguesa, essa sim, verdadeiro objecto de análise deste livro. É hoje sabido que cada carta terá sido escrita por uma das autoras, ainda que nunca elas tenham dito quais cartas pertencem a qual Maria. Dado o mistério, ao longo dos anos, têm surgido vários estudos literários que tentam atribuir as cartas, com base em comparações com a obra individual de cada uma das escritoras mas, já por várias vezes, as próprias comentaram que ainda ninguém acertou realmente.
Em 2010, temos nova edição, da Dom Quixote, a quinta, e que vem preencher uma lacuna gravíssima, dado que a quarta edição há muitos anos se encontrava indisponível. O prefácio está a cargo da escritora e ensaísta Ana Luísa Amaral.
Li o livro no ano passado (Consegui a segunda edição num alfarrabista.), e parece-me um texto obrigatório, para uma compreensão da situação da mulher no tempo em que o livro foi escrito mas, mais dramático ainda, é que este livro pode muito bem servir para entender a posição da mulher actual na sociedade de agora. A modernidade do livro é assustadora. Obra a um tempo sensível e inteligente, "Novas Cartas Portuguesas" regressa hoje às livrarias, para de novo se declarar contra a moral pública de 2010.
Acrescento que o "grupo" das Marias sofreu posteriormente uma cisão, com a "demarcação" de Maria Velho da Costa. Ainda que as três tenham seguido por obras individuais muito específicas, as "Novas Cartas Portuguesas" continuam a ser uma referência obrigatória para analisar a obra e o pensamento de Maria Isabel Barreno, de Maria Teresa Horta e de Maria Velho da Costa.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

José e Pilar de Miguel Gonçalves Mendes

NO ANO DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO


José Saramago, como escritor e como Nobel da Literatura tem sido objecto de observação em vários documentários, como pudemos confirmar aquando da sua morte que, ao contrário da grande maioria dos escritores desaparecidos recentemente, não escapou despercebida aos media (Não se pode dizer o mesmo em relação a Egito Gonçalves, Sophia de Mello Breyner, Fiama Hasse Pais Brandão ou Maria Gabriela Llansol.). Esta questão faz-nos pensar se Saramago recebeu tanta atenção por ser o grande escritor que é ou por ser Nobel da Literatura.
De qualquer forma, para este filme de Miguel Gonçalves Mendes, essa questão é perfeitamente indiferente e, se há qualidade que tem que se atribuir ao realizador desde logo, é a forma original que tem de se debruçar sobre a vida de Saramago. "José e Pilar", como aliás o título indica, não é um filme sobre José Saramago, mas sim um filme sobre a relação do escritor com a sua terceira e última mulher, Pilar del Rio.
O facto de Saramago ser Nobel é, no entanto, um assunto inevitavelmente central neste filme, uma vez que as grande parte dos a-fazeres com que nos deparamos neste filme, muito disso dependem.
"José e Pilar", cujas primeiras cenas remontam a 2006, acompanha também a escrita de "A Viagem do Elefante", e termina com Saramago a ter uma ideia sobre Caim, para um livro seguinte. Pelo meio, há ainda a promoção de "As Pequenas Memorias", e Miguel Gonçalves Mendes demonstra-se particularmente sensível e, ao mesmo tempo, inteligente, ao aproveitar as dedicatorias de Saramago a Pilar, momentos de inquestionável beleza, para abordar a relação entre os dois.
Tudo o resto é alucinante: este pode muito bem ser um inesperado insight sobre a vida do autor, completamente preenchida de entrevistas, intervençoes, apoios e encontros. Parecendo que Pilar ficaria para segundo plano, desenganemo-nos: é ela o cérebro gestor por trás de tudo isto, e fica bem claro que é ela quem, para todos os efeitos mantém a situação de Saramago de alguma forma praticável. De facto, este filme vem corroborar completamente a conhecida máxima que diz que "atrás de um grande homem está sempre uma grande mulher. Não podia ser mais verdade.
E se, a propósito de outros filmes, eu já me tenho referido à autonomia de um objecto artístico, em "José e Pilar" essa questão volta a fazer sentido. É que este filme conta com dois protagonistas que são verdadeiras forças da natureza. Portanto existe o perigo de facilmente o filme se transformar em mero suporte para aforismos. Não parece ser o caso. É verdade que o filme incontornavelmente depende e aproveita a inteligência e ironia de Saramago e Pilar, mas é também verdade que na maneira de aproveitar essas características tem um ritmo particular, o que afecta, evidentemente, a maneira como tudo é percepcionado.
Não sei se seria possível, na verdade, fazer um filme que se tornasse completamente independente da força de Saramago e Pilar. É difícil a câmara não se apaixonar por eles. E nós também.



segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Um Ritmo Perdido


Um ritmo perdido...

Se uma pausa não é o fim
E o silêncio não é ausência,
Se um ramo morto não mata uma árvore,
Um amor que é perdido, será acabado?

Um ouvido que escuta,
Uma alma que espera...
_Uma onda desfeita
É ou já não era?

Ana Hatherly
Um Ritmo Perdido
1958, edição da autora
desenho de Ana Hatherly

Os livros &etc já têm blog:

http://editoraetc.blogspot.com/

A Rede Social de David Fincher

HISTÓRIA E HISTÓRIAS


A especulação e a fofoquice, sinónimos em quase tudo, fazem parte deste mundo em que agora vivemos. Negá-lo é impossível. Se as redes sociais de internet são resultado disso ou não é já mais discutível.


Esta ideia serve, em vários aspectos, para falar de "A Rede Social", o mais recente filme de David Fincher. É necessário falar de especulação logo porque este filme é a adaptação de Aaron Sorkin ao livro "The Accidental Billionaires" de Ben Mezrich. O livro, que apresenta a história do Facebook, já foi inclusivamente refutado pelo próprio. Daí que o filme depende muito da especulação sobre os factos.
Trata-se da história de Mark Zucherberg (Jesse Eisenberg), um estudante de Harvard que, depois de terminar o seu namoro, zangado e um pouco bêbedo, cria um site, o FaceMash, em que disponibiliza uma série de fotografias de raparigas, dispostas em pares, para que os visitantes escolham a que gostam mais. Para fazer tal site, arromba uma série de sistemas informáticos fechados e aparentemente invioláveis; e o FaceMash é tão visitado que, em menos de uma hora, cria um black-out no sistema de Harvard. Dado o ultraje do site, be
m como a violação de várias regras, abrem um inquérito a Zuckerberg. E, através de uma notícia no jornal da faculdade, os gémeos Winkelvoss, Cameron e Tyler (Ambos interpretados por Armie Hammer.) e Divya Narendra (Max Minghella) concluem que Zuckerberg será a pessoa indicada para concretizar o projecto que têm em mão: a criação de um clube social on-line. Zuckerberg aceita o convite, principalmente porque é completamente obcecado com clubes sociais.
No entanto, enquanto se vai demonstrando relutante em contactar os gémeos para discutirem o desenvolvimento do projecto, começa a desenvolver ele mesmo um projecto de criação de uma rede social on-line; apenas com a ajuda de Eduardo Saverin (Andrew Garfield), que financia o projecto.
Inicialmente chamado "The Facebook", este site cedo se to
rna muitíssimo bem sucedido, e, quando os seus criadores visitam New York encontram-se com Sean Parker (Justin Timberlake), criador do famoso programa de download de música Napster, que aumenta as ambições de Mark, que não parece realmente ciente das possibilidades que a sua criação lhe abria. Mas Parker acaba por também dividir Mark e Eduardo, pelo que logo percebemos que a relação entre ambos acabará por resultar mal.


Assim sendo, o filme parte logo do princípio que o Facebook deu mau resultado: Mark Zuckerberg enfrenta simultaneamente dois processos legais: um levantado pelos gémeos Winkelvoss e outro por Eduardo Saverin. É um método interessante de contar a história em questão, porque nos mantém concentrados essencialmente nos factos e não simplesmente num desenlace, uma vez que já conhecemos o desenlace à partida. Para isto talvez interesse referir "Zodiac", o filme anterior de Fincher, que também questionava também a questão do desenlace através de um poderoso anti-climax.
"A Rede Social" tem algo de realmente invulgar, quando pensamos que se trata de um filme deste tipo. Fincher consegue desmarcar-se dos clichés que mais facilmente associaríamos a um filme que conta algo que já foi refutado e que, de qualquer forma, é altamente susceptível de gerar polémicas. Mas o filme consegue comportar-se enquanto enredo credível, e enquanto filme em si, ou seja, não dependente daquilo que conta. Consegue, inclusivamente, enredar-nos na personalidade que cria para Zuckerberg, que tem algo de zombie.
De facto, "A Rede Social" tem até algo de analítico, de olhar sobre a sociedade de hoje, em particular na sua relação de dependência com as modas aqui expressas através das redes sociais e da necessidade de pertença conseguida muitas vezes através dos meios mais idiotas.
Para aqueles que, com razão, pensariam se num filme com estes pressupostos não faltaria o ambiente de loucura e até non-sense que caracteriza o cinema de Fincher, a verdade é que o realizador encontrou várias maneiras de criar essa ambiência, maioritariamente através do humor, que oscila entre o negro e o non-sense assumido, e que sem dúvida acrescente um toque muitíssimo fincheriano numa trama tão terrivelmente mundana...


quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O Conceito de Arranha-Céus e "Metropolis" de Fritz Lang: Algumas Aproximações

1.
A ideia do arranha-céus, apesar de, em Arquitectura, ter sido concretizada apenas a partir do século XIX, tem uma origem bem mais recuada.
A título de exemplo, penso que não será despropositado referir a mitologia egípcia, e especificamente, o caso de Geb e Nut, filhos de Rá e pais de Ísis e Osíris. Ao enfurecerem o pai com o seu romance, foram por ele castigados, e condenados à separação. Assim sendo, é frequente que a representação destes dois deuses se faça desenhando Geb deitado no chão, com as costas curvadas e o pénis erecto, tentando, sem sucesso, penetrar Nut, representada no lugar do céu, em posição de cúpula, apoiada pelos braços e as pernas.




Dado que a cultura do Egipto Antigo era extremamente religiosa, tendo dado um sentido sacro até às mais ínfimas parcelas do pensamento e do quotidiano, é fácil concluir que também a ambição de, da terra, tocar o céu faria parte das suas aspirações enquanto povo; ainda mais quando sabemos que, segundo o Livro dos Mortos, o céu era o lugar onde permaneceriam aqueles que, depois da morte, atravessassem com sucesso a Passagem das Almas.
Ainda relativamente ao Egipto Antigo, é de referir que aí se construiu aquele que se pode considerar o edifício dos antípodas do Arranha-Céus: as Grandes Pirâmides de Gizé, com 146 metros de altura, cerca de 2560 a.C., altura que até ao séc. XIV d.C. não foi ultrapassada.
Esta ideia parece-me ganhar alguma relevância mais quando lembramos que, ainda actualmente, não há uma altura mínima que distinga o arranha-céus. Se o critério é que o edifício, habitável, claramente se destaque do skyline da cidade em que está implantado, então certamente as Pirâmides de Gizé poderiam ser arranha-céus, não fosse o facto de serem túmulos, e não habitações.
Nas cidades medievais, o skyline era bastante irregular, e não era raro encontrarem-se casas altas, ou mesmo torres, como as duas Torres de Bolonha (séc. XII), normalmente edificadas por famílias abastadas, uma vez que uma habitação que se destacasse, neste caso pela altura, das restantes, não deixava de ser um sinal de Poder e de abastança.




Mas será no século XIX que começarão a surgir os primeiros arranha-céus aceites como tal. O Oriel Chambers de Liverpool -do arquitecto Peter Elis, com apenas cinco andares, era invulgarmente alto para a sua época, mas não o suficiente para ser totalmente aceite enquanto arranha-céus.
Assim sendo, é o edifício Wainwright, em St. Louis (Missouri), dos arquitectos Louis Sullivan e Dankmar Adlen aquele que se considera o primeiro verdadeiro arranha-céus, concluído em 1891, a nove anos do final do século XIX.
Ainda antes do final do século XIX, assistimos a uma certa quantidade de edifícios de altura invulgar ser edificada nas cidades de Chicago, New York e Londres. Nesta última, a construção de vários arranha-céus desagradou à Rainha Victória, que lançou vários regulamentos sobre a altura-limite das construções, que, na sua maioria, vigoraram até aos anos 50.
Então, desde a última década do século XIX e um pouco por todo o século XX, veremos o arranha-céus tornar-se uma tipologia comum e recorrente, ao ponto de, a certa altura, podermos ficar com a impressão de que a sua construção chega a constituir uma verdadeira competição. Essa competição, evidentemente, é pela construção do edifício mais alto do mundo.




O American Surety Building, do arquitecto Bruce Price, em New York, concluído em 1896, foi, durante vários anos, o edifício mais alto do mundo.




Em 1930, também em New York, o Chrysler Building, do arquitecto William Van Hallen, ultrapassaria, em altura, o de Price, e tornava-se “o mais alto”. Não por muito tempo pois, em 1931 o Empire State Building, de William F. Lamb, substitui-lo-ia, e, até 1971, com a conclusão das Torres Gémeas do World Trade Center, deteria o tão invejado título.
Além da corrida pelo recorde de altura, a construção de todos estes edifícios permite-nos também traçar já algumas características comuns do arranha-céus. Exemplo disso são a utilização de estruturas de ferro, mais capazes de aguentar a sobreposição de andares, a predominância do vidro nas fachadas, e, no caso dos edifícios de 1930 e 31 acima referidos, é de notar que ambos terminam com espigões, reforçando a ideia de que se trata de um “arranhão” ao céu.



2.
“Metropolis” foi um dos filmes mais aclamados de Fritz Lang. Ele é resultado directo de uma viagem de Lang aos Estados Unidos, mas recusa qualquer um dos resultados mais taxativos, preferindo metamorfosear o que viu da América no seu estilo expressivo e meticuloso,a que não é estranha a influência do expressionismo alemão, e também a influência das artes plásticas. Nestas, se a Arquitectura é a mais evidente, não pode deixar de se ver a influência da pintura abstracta e da pintura futurista, através das morfologias visuais e das noções de movimento.
Sobre a influência do Futurismo, as referências são incontáveis. O fascínio pela máquina, pela tecnologia e pelo frenesi são características incontornáveis para este tempo (O próprio Fernando Pessoa, em Portugal, a elas cedeu.), mas específicas para este movimento artístico específico, como demonstram as pinturas de Marinetti e algumas das pinturas de Marcel Duchamp.
Mas, apesar de tudo isto ter peso no filme de Lang, é justo dizer que foi através da Arquitectura que ele conseguiu expressar as suas impressões da América. De facto, quando nos apresenta a sua metrópole moderna e evoluída, o elemento que primeiramente nos dá indícios de estarmos perante uma cidade futura é a imagem dessa cidade, da sua construção.
O que vemos são edifícios de grande escala, construidos essencialmente em altura. Ao vermos as pessoas que passam, temos ainda maior consciência da escala quase megalómana desta metrópole.
Numa primeira observação, poderíamos entender que é através da grandiosidade ou da escala que Lang nos dá uma noção de modernidade. Mas à medida que o filme avança, avançamos nós também na nossa percepção desta cidade. É assim que entendemos que toda aquela imensidão não é só indício de avanços tecnológicos. Esta metrópole é também habitáculo de um sem-número de pessoas, que ali vivem extremamente concentradas. A relação com a experiência da viagem à América parece-me aqui realmente nítida. Porque, entre toda a euforia daquela cidade (construida e vivida), Lang consegue dar também uma impressão de como ela pode ser irrelevante e de como é possível nela estar-se absolutamente só. Esta dicotomia tem sido tema dos mais variados projectos artísticos, de que refiro a título de exemplo o díptico “66 Scenes From America” (1982) e “New Scenes From America” (2003) de Jorgen Leth.
Efectivamente, os cenários são uma parte crucial de “Metropolis”, pois todo o enredo teria uma resistência menor sem eles. E não só estes cenários constituem uma base para o enredo como, isolados, eles são capazes de transmitir também uma mensagem.
Na primeira parte deste texto, defendi que a ideia de, da terra, conseguir tocar o céu, não era cueva às possibilidades técnicas que permitiram a construção dos primeiros arranha-céus.
Portanto, vendo “Metropolis”, concluo que a grande modernidade que Lang filma não tem tanto a ver com o Homem ser capaz de construir edifícios altos ou “os mais altos”, mas sim em ser capaz de construir para satisfazer os seus desejos mais antigos e aparentemente irrealizáveis.


sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Harry Potter and The Deadly Hallows (Part 1) de David Yates

BEST FOR LAST

O entusiasmo excessivo de quando Harry Potter surgiu, primeiro em livro, depois em filme, perdeu-se bastante para mim de há uns anos a esta parte. De facto, deixei-me um pouco disso, o que não significa que tenha deixado totalmente de me interessar. Prova disso é que hoje, um pouco por acaso e graças à velocidade de pensamento da minha amiga Chris, dei por mim na sessão das três e meia do Cinema Londres, ainda por cima no dia da estreia, algo que há seguramente anos não me acontecia.

Concretamente, o presente "Harry Potter e os Talismãs da Morte" é a primeira de duas partes do derradeiro capítulo desta saga (A segunda parte tem estreia prevista para o verão de 2011.).
Quando sabemos que se trata de uma série de filmes cujo inicial estreou em 2001, é inevitável pensar naqueles que o precedem, desde o longínquo "Harry Potter e a Pedra Filosofal" de Chris Columbus.
A falha que me parece mais evidente em todos os filmes prende-se com a autonomia dos filmes, ou seja, do seu valor enquanto objecto em si. J.K. Rowling criou um universo original cheio de especificidades, de pequenos e determinantes detalhes, que lhe conferem uma força espantosa. E os filmes, ao adaptar tal universo, correm o risco de não
serem capazes de avançar o "deslumbramento" pelos livros. Tem acontecido isso um pouco com todos os filmes, que atravessam uma aguda paixão pelo que mostram, mas não se assumem como entidades propriamente ditas.
O caso deste "Os Talismãs da Morte", no entanto, apresenta-se-nos diferente. David Yates, que realiza assim o seu terceiro filme para a saga Harry Potter consegue aqui realmente um filme, em vez de uma mera adaptação.
Trata-se de uma fase complicada do enredo, com situações-limite para feiticeiros e para muggles, uma vez que Lord Voldemort (Ralph Fiennes) se apoderou de Hogwar
ts e do Ministério da Magia, assistindo-se a uma selecção de raças de clara inspiração hitleriana e a resistência, liderada por Harry (Daniel Radcliffe), Hermione Granger (Emma Watson) e Ron Weasley (Rupert Grint) depara-se com toda a sorte de dificuldades quer relativas ao momento presente, de lutas, perseguições e complicados esquemas; quer relativas às descobertas sobre as histórias que construirão a sua batalha, nomeadamente as de Albus Dumbledore, falecido em "The Half-Blood Prince".



Um enredo desta natureza é sempre perigoso. E, sendo que todos os filmes de Harry Potter- incluindo este- são dotados de uma teatralidade quase excessiva, mais perigoso se torna. Perigoso porque facilmente o filme resultante poderia tornar-se inusitado e de carácter realmente falso. Se J.K. Rowling tem mestria de escrita suficiente para fazer com que os seus enredos alucinantes pareçam bem assentes na terra, a verdade é que ainda está por aparecer o filme em que tamanha naturalidade é atingida. Ora, se assim foi em momentos mais pacíficos desta história, mais o é nesta fase limite dela.
Mas a verdade é que David Yates consegue, além da já referida autonomia, uma considerável verosimilhança neste filme.
Cheio de planos interessantes e invulgares, fazendo uma exploração muito criativa das possibilidades abertas pela escritora e através de cenários que sabem converter essa estética do excesso para um estilo barroco, a verdade é que este filme tem pernas para andar.
E anda. Anda, ao ponto de, no final, ficarmos realmente expectantes quanto à continuação.


terça-feira, 16 de novembro de 2010

Luísa Dacosta: Morrer a Ocidente

NO TEMPO DA ÁGUA

"Cerrai-vos olhos, que é tarde, e longe,
e acabou-se a festa do mundo
começam as saudades hoje"

é com esta citação da "Cantata Vesperal" de Cecília Meireles que abre o segundo livro de crónicas, publicado em 1990, de Luísa Dacosta. A citação é realmente apropriada pois, de certa maneira, sintetiza o espírito deste livro.


Relembremos que o primeiro livro de crónicas, editado dez anos antes, tinha por título "A-Ver-o-Mar", o nome da localidade, em Vila do Conde, sobre que estas crónicas se debruçam. "Morrer a Ocidente" (ed. Figueirinhas, 2a ed. Asa 2002), vem recuperar esse lugar e essas pessoas, mas num registo diferente.
Penso que seria pertinente referir a questão da tipologia destes textos para melhor definir a sua organização. Porque, se esquecermos a noção "estrita" de romance, não seria difícil vermos neste livro um. Para começar, há uma personagem que atravessa 30 destes 31 textos- que será a narradora, personagem que não interfere no desenrolar dos acontecimentos senão para ouvir e contar o que ouve, e que podemos deduzir tratar-se da própria Luísa Dacosta- bem como vários personagens que vão passando de crónica em crónica, e há ainda uma sinopse geral, ainda que cada texto seja uma entidade individual, autónoma.
É um facto que cada uma destas crónicas é auto-suficiente: se as lêssemos isoladas não perderiam o seu sentido. Mas é também facto que, na sequência, elas contribuem para a construção de uma ideia. Essa ideia é a de uma realidade a morrer. O título poderia apontar para isso: trata-se de uma referência ao pôr-do-sol- "E é quando o sol começa a sua lição, tentando ensinar-me a morrer a ocidente" (pag.18)- mas não deixa de ser uma morte. E neste livro há várias.
Na dedicatória que Luísa escreveu no meu exemplar de "Morrer a Ocidente", refere-se a este livro como "um morrer da praia e um morrer interior", e parece-me que esta será a definição mais sintética e adequada das mortes deste livro.
A citação de Cecília Meireles para outra coisa não aponta, senão para esse terminar, a que se seguem as saudades. De facto, se em "A-Ver-o-Mar" econtrávamos a descrição de um modo de vida especial, complexo nas suas estruturas social e laboral; este segundo livro recolhe crónicas em que vemos o lento desaparecer de muitos dos elementos que sustentavam essas estruturas. A leitura dos dois livros, em díptico, é, parece-me, não só um valioso testemunho literário, como poderia muito bem ser analisado como uma espécie de estudo sociológico.
Voltando, então, ás linhas-de-força descritas na dedicatória que acima citei, comecemos pelo morrer da praia. A praia, em Luísa Dacosta, tem duas frentes: a da introspecção que provoca e a da vida que nela se desenrola- constituida em grande parte pela pesca e pelo empaledar do sargaço. É esta vida da praia que vemos morrer neste livro.

"Ninguém quer ir, já se sabe, quem troca chão conhecido e luz do sol por cova e escuridão?!"
(pag.107)

"_Ai, o tempo do pilado, foi chão que deu uvas."
(pag.151)

vamos lendo. Há um sem-número de fragmentos que poderia citar para evidenciar esta ideia. O mar representa, para a comunidade piscatória, uma força perigosa e incerta, mas ao mesmo tempo necessária: necessária enquanto "local de trabalho". Mas ao passo que os mais velhos mantêm ainda os mesmos métodos, frequentemente nos demonstram que os mais novos se interessam cada vez menos pelos trabalhos do mar, preferindo uma vida mais segura e confortável. Seria interessante -mas é acima de tudo impossível para mim fazê-lo completamente- somatizar todas as "visões" possíveis do mar que colhemos nestes livros de Luísa Dacosta. Ele pode ser utilizado dos mais variados pontos de vista: pode definir diferenças entre gerações; mas também de sexo, uma vez que, mesmo sendo o mesmo mar, há nele os trabalhos dos homens e os das mulheres. E aqui, de novo, poderíamos retirar uma leitura sociológica, como, no fundo, acontece com toda a grande literatura: vale por si só, mas não perde validade quando a tentamos analisar de outros prismas.



O outro "morrer" deste livro é, então, o "morrer interior". A leitura dos livros de Luísa Dacosta vai-nos sempre denotando uma postura onde sempre há um travo de angústia. É essa a força que incita as passagens mais poéticas e belas ao longo de todos os livros, desde o longínqiuo "Província" (ed. Minerva, 1955, 2a ed. Figueirinhas, 1984) até aos diários publicados recentemente. Estas crónicas não abdicam da paleta que a angústia permite.
Este é, portanto, um lado mais pessoal e intimista da escrita de Luísa Dacosta, e também o lado em que esse personagem comum -a narradora- intervém de uma forma mais activa.
Como todos os livros, "Morrer a Ocidente" abre com um prefácio, momento de pungência extrema, mais semelhante a um poema em prosa do que propriamente a um conto ou uma crónica. Nestes fragmentos denotamos um certo sentimento de solidão, que se resolve pela contemplação: essa contemplação se é, inicialmente, uma espécie de "fuga", de "distração", cedo se transforma numa forma de encontro do eu, uma vez que, olhando para o exterior, e através da descrição das imagens, o eu se torna mais nítido.
Para tudo isto, contribui em muito a mestria no uso da palavra que foi sempre uma das principais características de Luísa Dacosta. Esse cuidado minucioso com a escolha das palavras, com a criação de ritmos, não só torna as crónicas bem mais densas e fortes, como introduz como que pausas no discurso que, mormente, se debruça sobre as pessoas de A-Ver-o-Mar.
E se, por um lado, esta situação resulta numa espécie de cisão entre a narradora e os narrados, por outro, cria também uma aproximação pois, observando o lento falecer do quotidiano de A-Ver-o-Mar, a narradora encontra esse falecer interior, pessoal.
Caso a referir àparte neste livro é a primeira crónica. Hesito um pouco se devo referir-me a ela como crónica ou como conto. Este texto havia sido editado nove anos antes, numa plaquette especial, com ilustrações originais de Jorge Pinheiro, com o título "Nos Jardins do Mar" (ed. Figueirinhas). Trata-se num conto que parte da imagem da sereia da Igreja de Rates, na Póvoa de Varzim. Significativamente, este texto abre o volume. Há nele algo de muito lírico, de fantástico, o que talvez nos remeta um pouco para a escrita para crianças de Luísa Dacosta. Mas mesmos esse texto termina com uma ideia de morte, uma morte que não é simples, mas que nos deixa uma interessante mensagem: a de que, mesmo depois da morte, há forma de perpetuar a vida, nomeadamente através da memória (Que pode, de certa forma, ser uma outra forma de olhar este livro.).
A fechar o volume, o tema da morte volta a ser central: a última crónica centra-se no Ritual da Passagem das Almas. Além de uma crónica belíssima, carregada de sentidos e de uma escrita densa, acaba por retomar a ideia de uma "vida depois da morte" não no sentido da reencarnação, mas num sentido bem mais complexo, que é, se quisermos, algo semelhante à ideia da morte da sereia no primeiro texto.
Obra em que a capacidade de observação e a capacidade de escrita estão perfeitamente fundidas, "Morrer a Ocidente" é, sem dúvida, um dos melhores livros de Luísa Dacosta. Ao longo da nota que agora termino, fui observando este trabalho da autora de vários pontos de vista, e penso que também isso corrobora a ideia de estarmos perante uma obra importantíssima, já que, seja qual fôr o nosso ponto de vista, é sempre capaz de nos responder, de nos levar a pensar e, talvez, a chegar a conclusões.

Canção Para o Dia de Hoje

Rodrigo Leão e Cinema Ensemble: Pasion (voz: Celina da Piedade)

Guevara III


Olho por onde tudo se habitua
aos vossos corpos infundados, secos
de esperma e devastadamente
insepultos no lastro das florestas.

Nos matagais, nos frutos maturados
sobre o nascente.
Neste repouso agora acostumado
aos pormenores do solo, aos bichos mornos
que noticiam a putrefacção.

Vou por onde morrestes. Vou por onde
vossos pés instigaram aos caminhos.
Vou pelos meses em que abandonastes
por sol muito ardido e muito denso
os vossos sítios de nascer e amar.
Tempo em que a este exílio vos voltastes.

Desunidos os mares, adormentadas as monções,
ouvidos os prenúncios das velhas sobre a ordem,
eis as colinas, o que demandáveis.
Sítios de barro. Fécula. Resíduos.
Fermentação. Torpor.

Aqui chegaram vossas palavras únicas, as vossas
alcantiladas noites de instrução.
Aqui, sobre os rochedos, sobre o casco
de árvores principais,
a vossa pele segregou a marca
quente e dulcificada do suor.

Reconheço o lugar. Vossos perfis
magramente envolvidos para o estrume
das plantas invernais.

....................................Vossas severas,
vossas meigas mãos.


Hélia Correia
in "Poemas a Guevara"
selecção de Egito Gonçalves
2a ed, Limiar, 1975
imagem: Che Guevara, depois de executado