'Senhora da Noite' abre com
Fados das Violetas, cuja letra é conseguida através da junção de algumas quadras dos poemas
As Quadras Dele e
Poetas, de
Florbela Espanca, junção essa perfeitamente conseguida, principalmente dado que ambos os poemas partilham a ideia das violetas, que Mísia isola como título para a letra da sua canção. O poema é cantado sobre o Fado Hilário, a que Mísia consegue conferir várias tonalidades, começando de uma forma quase serena e terminando, acompanhada pelo violino, nas últimas duas quadras cantadas de uma forma dramática e extrema, que são quase uma segunda canção dentro da canção. A abertura é forte, e acaba por, na sua dualidade, introduzir-nos nas duas tonalidades essenciais entre as quais oscilará o resto do álbum.
Segue-se
Ulissipo, poema da recentemente falecida
Rosa Lobato de Faria cantado sobre o Fado Alberto. De certa forma, esta canção faz uma ponte com o álbum anterior, onde era Lisboa que se cantava. É uma das canções mais interessantes e inesperadas, onde, numa transformação mitológica metafórica, Rosa Lobato de Faria nos dá uma ideia diferente da 'saudade', fazendo de Lisboa uma Penélope que espera que Ulisses volte de viagem. A voz acompanha com vigor o acordeão, que parece, de alguma forma, aproximar-se de alguma música francesa, o que talvez nos aponte para o período em que Mísia viveu em Paris, antes de regressar à Penélope/Lisboa.
'Senhora da Noite' traz-nos também, apenas pela segunda vez em dez álbuns, uma letra de Mísia, e a primeira assinada com o nome artístico (A outra,
Cor de Lua, do álbum de 2000, '
Ritual', era assinada com o nome Susana Aguiar.).
O Manto da Rainha, cantado sobre o Fado Menor, foi escolhido para apresentar o álbum, com o belíssimo videoclip realizado por
John Turturro, e a escolha parece-me bastante acertada. Além da importância de ser um dos raros poemas escritos e cantados por Mísia, o poema em si parece sintetizar uma série de ideias que vamos encontrando de canção em canção. Enquanto autora, Mísia revela não só um grande à-vontade em expressar o seu mundo, (Que, de resto, fica claro nas escolhas de poemas de outros autores.) como também grande destreza em criar quer uma série de imagens interessantes e de subtilezas linguísticas, a começar pelo próprio título ('Manto da Rainha' é na verdade uma das linhas da palma da mão.).
Outro momento central é
Senhora da Noite, um belíssimo poema de
Hélia Correia (
este) com música de Armandinho. A canção está estruturada de forma a acompanhar um pouco os momentos do poema: numa primeira estrofe em que esta
senhora de noite nos explica a sua origem, é acompanhada por violino e piano, criando uma atmosfera mais pacífica e intimista e, à medida que começa a falar-nos da sua vida presente, vão entrando as guitarras que acrescentam um certo ritmo, bastante adequado a um poema a que não falta um delicado erotismo e também um delicioso 'grito de bacante', em que esta mulher é livre apenas a cantar, o que resume, de resto, muitíssimo bem o conceito deste álbum: nele, a personagem que canta e que escolhe as palavras é necessariamente uma mulher que, nessas palavras e nesse canto encontra a liberdade. Mais ainda, assinale-se como o poema se insere perfeitamente quer no universo de Mísia como no deste álbum em específico, sem por isso abdicar de certos traços que qualquer leitor de Hélia Correia facilmente reconhecerá.
Lua Mãe das Noites traz-nos um poema de
Aldina Duarte, também ela fadista, que Mísia canta sobre o Fado Varela. Aldina parece sondar as letras mais tradicionais do fado de modo a construir a sua, e, ao fazê-lo, consegue vários momentos de impressionante originalidade ('Paixão que foste sempre maré vaza', por exemplo.), e Mísia parece reforçar esta ideia, já que é a primeira vez no álbum que grava com a estrutura instrumental de guitarra acústica/ guitarra portuguesa/ baixo.
Praticamente desde o princípio da sua carreira que Mísia mais nos tem mostrado que o fado não é uma música portuguesa, mas, de certo ponto de vista, uma expressão portuguesa de sentimentos universais. Se o lado '
Tourists' de 'Ruas' nos provava isto quando a fadista grava canções de, entre outros, os
Joy Division, os
Nine Inch Nails ou
Camaron de la Isla; em 'Senhora da Noite', a colaboração de
Adriana Calcanhotto, como autora da letra de
Que o Meu Coração se Cansou vem, mais uma vez mostrar-nos a universalidade do fado. Adriana, sem abandonar certos maneirismos da sua escrita, dá a Mísia um refinado poema a que Mísia, acompanhada por uma guitarra de dez cordas e violino, consegue dar a roupagem mais adequada, em que um tom acusatório e dramático não cede de forma alguma ao sentimentalismo lamechas.
Se há momento que, mais do que surpreendente, se torna mesmo desconcertante, é
Garras dos Sentidos II. Mísia recupera aqui, e isso tem todo o sentido, o poema que
Agustina Bessa-Luís já havia escrito para a sua voz, no álbum que, aliás, a este poema vinha buscar o título. Em 1998, Mísia cantara-o sobre o Fado Menor, que parecia assentar perfeitamente ao tom lúcido mas trágico do poema. O poema ressurge agora sobre o Fado Corrido e, numa primeira audição, parece-nos quase estranha a junção da linguagem altiva e árdua de Agustina com a melodia animada do Fado Corrido, ainda por cima interpretado com violino e acordeão, e com Mísia, no meio, falando, como que dando-nos ideia de que canta ao vivo numa taverna daquelas em que o Fado terá nascido. Mas, ouvindo com mais atenção, percebemos que esta junção poderá ter, na verdade, um interessante sentido: o de que, por mais que agora no Fado se procurem por vezes as palavras dos eruditos, já quando o Fado era música de tavernas populares cantava os mesmos sentimentos que hoje ainda canta, quer sejam eruditos ou populares os seus letristas.
'Senhora da Noite' marca também um regresso que muito tardou.
Tarde Longa traz-nos um divinal poema de
Lídia Jorge (
este), cantado também sobre o Fado Menor. Trata-se de um texto sucinto e límpido, mas a sua beleza, a sua profunda comoção e a sensibilidade intensa das suas imagens, certamente nos recordarão que Lídia Jorge já havia escrito dois poemas igualmente belíssimos para Mísia no álbum de 1998 (
Fado do Retorno e
Sou de Vidro.) e, tal como acontece com o poema de Hélia Correia, a adequação deste poema ao universo de Mísia não é incompatível com certas características que nitidamente pertencem ao universo de Lídia Jorge, por isso, esta nova colaboração da escritora é outra das boas notícias deste álbum.
Tarde Longa é interpretado com apenas voz e piano, o que em muito favorece a atmosfera íntima do encontro descrito, e Mísia, que sempre compreendeu o valor das palavras, sabe encontrar a intensidade de versos tão belos como
Ficaremos abraçados
Estendidos como num lenço
Por tudo isto, a meu ver,
Tarde Longa é certamente outro dos momentos fulcrais de 'Senhora da Noite'.
Segue-se
Simplesmente, um poema de
Amélia Muge, também cantora e uma das mais interessantes autoras a escrever música em Portugal. Esta letra vem lembrar-nos a mestria que Amélia Muge sempre teve em lidar com a língua portuguesa, com a força das suas expressões e das suas inexactidões (Como falar de 'coisas'.), aspecto que poucos letristas souberam trabalhar de forma tão intensa (Entre esses poucos contem-se, por exemplo,
Regina Guimarães e
Sérgio Godinho.). Mísia potencia ainda esta letra com a sua capacidade de teatralização, que é de resto uma das linhas de força de todo o seu trabalho, fazendo da voz um instrumento de representação, com corpo, expressão e pose.
Neste álbum, Mísia também recupera, pela terceira vez na verdade, uma das maiores poetas portuguesas de sempre:
Natália Correia. Já em '
Drama Box' (2005) Mísia fizera uma letra colando quadras de diferentes poemas de Natália, que resultaram em
E Se a Morte Me Despisse. Em 'Senhora da Noite', Mísia repete essa estrutura, para criar Que Silêncio é Esta Voz, sendo que o resultado, tal como já acontece com os poemas de Florbela Espanca, na abertura, nos dá um poema bastante conciso, que parece confrontar-nos com alguém que desenha a sua vida entre a dualidade silêncio/voz, chegando a uma interessante conclusão, com duas quadras de diferentes poemas
Quando me derem por morta
Lágrimas nem uma pinga
Um trevo de quatro folhas
Tenho debaixo da língua
Vou pelos campos de linho
Do poeta D. Dinis
Atirar a flor de pinho
Que onde cai é um País
como se, mesmo depois de morta, esta pessoa prosseguisse o seu caminho e assim não perdesse a voz, pelo que, de certo ponto de vista, este poema me parece uma verdadeira e digna homenagem a Natália que, de facto, mesmo depois da morte, não perdeu a voz.
Fogo Posto apresenta-nos um belo poema de
Maria do Rosário Pedreira. Ainda que alguns dos livros desta autora me pareçam de qualidade menor, ao escrever esta letra para o Fado Britinho, Rosário Pedreira parece encontrar a intensidade que encontramos nalguns dos seus poemas. De facto, Fogo Posto é um momento muito interessante de 'Senhora da Noite', uma vez que ele recupera muitos dos temas essenciais do Fado (A traição, o ciúme, o desespero.) escritos de uma forma inesperada e Mísia, uma vez mais, prefere uma pose digna do que uma pose suplicante que é reforçada pelo acompanhamento que, além das guitarras, conta com o acordeão e o piano, resultando na canção, uma vez mais, um certo travo a
chanson.
E se já a propósito de Lídia Jorge falei de regressos,
Sombra também marca um regresso, o da actriz
Manuela de Freitas, que já havia escrito
Decisão, um dos poemas mais fortes do álbum 'Ritual'.
Sombra é também um poema dramático, sobre uma prostituta numa esquina, apresentando-nos, por isso, uma certa angústia ligada à cidade. É uma das canções mais tristes e Mísia sabe como fazer com que nessa tristeza exista ainda uma certa compaixão que em muito intensifica as palavras.
A terminar, encontramos a
Raposódia Amália, onde Mísia volta a utilizar a técnica da manta de retalhos que já usa com Florbela e Natália, sendo que desta vez não usa apenas quadras de poemas diferentes de
Amália Rodrigues, mas também, para cada, uma música diferente, revelando, por isso, nas constantes mudanças de melodia, a extrema versatilidade quer da sua voz, quer da ambiência dessa voz. O poema que resulta desta raposódia é também ele bastante coerente e acaba por este ser um dos momentos mais invulgares de 'Senhora da Noite', que nos mantém, até ao fim, num estado expectante.
No fundo, aquilo que 'Senhora da Noite' nos mostra é aquilo que já há muito tem sido mostrado nos álbuns de Mísia: que ela não é apenas uma intérprete de Fado, mas também uma das maiores pensadoras e questionadoras dessa canção urbana que é o Fado, e que a dimensão experimental do seu trabalho sempre chega a conclusões insólitas mas nada inusitadas. Portanto, tanto a versatilidade, como a criatividade como a inquietude de Mísia sempre resultam em trabalhos complexos mas ricos e densos, que, estes sim, abrem verdadeiramente caminho à renovação do Fado, crédito que muitas vezes injustamente é retirado a Mísia. Porque ela tem esse dom raro que é a insatisfação, que origina a necessidade de procurar e encontrar, continuamente, o dom que tem, por exemplo, Björk. Por essas e outras razões, convém não deixar escapar 'Senhora da Noite'.