Mostrar mensagens com a etiqueta Manuel de Freitas. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Manuel de Freitas. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

À espera do primeiro eléctrico



Outros que critiquem
o planeamento do território,
os crimes urbanos, a droga
que pacifica os estados
aparando sedições virtuais.
Apetecia-me comer, agora,
mas os poemas só têm valor real
(isto é, monetário) na lua
de Bergerac. No Martim Moniz,
em perpétua demolição, nem cheques
aceitam -quanto mais versos
que não rimam com nada.


Tenho à minha frente o futuro,
um futuro de três cervejas
e talvez de um charro,
se encontrar alguém. Um futuro breve
(a redimir ou não nas ruas mais altas),
nenhuma vontade de amor
e os pés acentuadamente azuis
-fétidos, sem dúvida alguma.


Já me propus, em dias de tédio maior,
escrever um poema vário, curar-me
destas ladainhas pouco edificantes.
Não deu, paciência. Consola-me ao menos
a irrefutável pobreza do quotidiano.
Estamos bem um para o outro
(mas uns trocos davam-me jeito, com real ou sem
ele -e eu não sei arrumar carros).


A noite lá faz o que pode.


De sarjeta em sarjeta
isto podia tornar-se interminável,
se a paciência me quisesse
honrar, tísica como uma musa.
Mas acabo na Cachupa,
corpo & poema num enxovalho mesmo,
à espera da manhã que sinistra
avança e vomita de luz
o primeiro eléctrico
rumo ao desespero.

Manuel de Freitas
Os Infernos Artificiais
2001, ed. Frenesi
fotografia de Arthur Tress

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

death is a drummer



Não há nada a fazer: domingos. Espesso,
demasiado claro, o silêncio tomba
sobre as ruas da cidade - e Junho
é um mês difícil, digam o que disserem
os ingleses e os poetas promovidos
pela cruel certeza de Abril. Junho,
ao domingo: no meu bairro fecharam
as lojas, as mercearias e os restaurantes.
Aberta, no entanto, a agência funerária,
mesmo em frente à casa de um poeta
amigo. E as tabernas que sobrevivem-
calçada dos Mestres n.º 44,
rua de Campolide n.º 82 - com
seus restos de tristeza, serradura e óleo.


Os santos (populares) repousam hoje
nos meus ombros terminais.
Nenhum trânsito, parcos transeuntes
hesitam em poluir a minha solidão
retórica. Um fado suspenso,
dir-se-ia, o bolor que devagar se forma
em volta de um manjerico falso.


Na porta da oficina de automóveis
uma cruz de cinza fotocopiada
justifica o ócio, a urgência de uma farda
já sem manchas de óleo (mas antes fumo
e gravata). Sim, a morte. Haverá

outro assunto? Tão óbvias sempre, e
mais próximas, as carícias com que chega
ao rosto que estamos a deixar de ter.


Sem sinos nem gritos de amor
bem temperado, ouve-se na tarde
apenas o rumor íntimo e distante
de um tambor que nos chama,
incessantemente. E os poemas,
os poemas todos, lhe obedecem.


Para que seja domingo sobre a terra
que pesada e fria nos esquece,
nos esqueceu já.



Manuel de Freitas
[SIC]
2002, assírio e alvim
imagem: Francisco de Goya y Lucientes