domingo, 31 de julho de 2011

[Les absences occupent plus de place]




Les absences occupent plus de place
que les présences
un fantôme est plus grand qu'une personne
de cahir et d'os
son inconsistance même le dilate
plus grands les morts que les vifs
Une absence me bouscule
m'oublige à rentrer le ventre
à m'effacer sur son passage
et quand je veux la chasser
je réalise que c'est moi-même
ma part d'absence cure à mon insu
comme un enfant qu'on n'a pas vu
depuis longtemps

SAGUENAIL
Le Peu de Chose
2009, ed. Hélastre

pintura de JOHN McDONALD

Agustina tem destas coisas... (26)

Estava sempre em riscos de se matar, e João Pinheiro (que ele tratava sempre por tio, porque, dizia, assim não sofreria traumas edipianos) esperava a todo o momento a notícia de uma fatalidade.
_É um doido -dizia, não sem uma ponta de orgulho. Todos os pais sentem pelos filhos delinquentes a predilecção que se tem pelo perigo não de todo indomável.




de "Prazer e Glória" (1988)

Christina Rossetti, outra vez







Estou correntemente a ler a antologia "Selected Poems" de Christina Rossetti, publicada em 1994 pela Wordsworth editions, que me faz lamentar que não exista uma edição de semelhante amplitude em Portugal. Palmas para a Relógio d'Água, no entanto, que já publicou uma antologia, ainda que bastante menor, com versões de Margarida Vale de Gato, já aqui comentada há uns meses.

Aqui deixo algumas curiosidades sobre aquela que será provavelmente o maior poeta Pré-Rafaelita: manuscritos, cartas, capas e páginas de edições antigas e recentes; e um retrato, pintado pelo irmão, o pintor e também poeta Dante Gabriel Rossetti.








Um texto


Grande parte dos poetas escrevem, a certa altura, a sua "arte poética", que é a sua explicação de como escrevem, de como fazem a sua poesia. Os prosadores também o fazem, senão nos próprios livros, muitas vezes em entrevista.
Maria Gabriela Llansol está certamente entre o poeta e o prosador, pendendo umas vezes mais para um lado, outras vezes mais para o outro. Nos seus textos, frequentemente ela conversa com o livro e com a própria escrita. O acto de escrever é também assunto de muitas das suas páginas, um acto que está em constante mutação, a reformular continuamente as suas próprias regras, fugindo delas, e fazendo desse desvio uma nova regra.
Em 1991, Llansol publica "Um Beijo Dado Mais Tarde" (ed. Rolim), onde se pressente mais ainda uma dimensão pessoal, que se não é auto-retrato, é pelo menos auto-representação. Nele, uma rapariga ensina a sua criada a ler, como Santa Ana ensina Maria/Myriam. Quase no final do livro, encontramos o seguinte texto, que será uma das mais belas, mais complexas e mais completas explicações de como nasce e se transforma o texto de Maria Gabriela Llansol:


Cada vez está mais vento, com mutações de Sol excessivas para os meus olhos que agora, com o ar, o sol e a cor, se fatigam. Eu explico. Trabalho muito com eles, fixando intensamente um ponto-paisagem antes de começar a escrever; depois, o decurso do texto depende do que essa concentração, num lugar vazio, permite. O olhar atento vai voltando a si mesmo e, então, o queeu consigo ouvir são as ondulações vibratórias entre esses dois pontos. Os meus olhos recebem, num ponto-voraz, as linhas que sustentam o espaço, feixes incidentes paralelos, raios que se afastam progressivamente, termos geométricos.
Lá onde estás, deve ser assim.
Nunca olhes o bordos de um texto. Tens que começar numa palavra. Numa palavra qualquer se conta. Mas, no ponto-voraz, surgem fugazes as imagens. Também lhes chamo figuras. Não ligues excessivamente ao sentido. A maior parte das vezes, é impostura da língua. Vou, finalmente, soletrar-te as imagens deste texto, antes que meus olhos se fatiguem. O milionésimo sentido da voz, "tiro o lápis da mão", o gesto de partir a luz, o pensamento de uma criança, cópias da noite, passeio nocturno, "era um dia verde", o afecto do negro, sob o lenço da noite. O indizível é feito de mim mesma, Gabi, agarrada ao silêncio que elas representam.

sábado, 30 de julho de 2011

Um poema a quem de direito


REFERÊNCIA


Quantas vezes te digo
quantas vezes...
que és para mim
o meu homem amado?

O que chega primeiro
e só parte por vezes
antes de eu perceber
que já tinhas voltado

Quantas vezes te digo
quantas vezes...
que és para mim
o meu homem amado?

Aquele que me beija
e me possui
me toma e me deixa
ficando a meu lado

Quantas vezes te digo
quantas vezes...
que és para mim
o meu homem amado?

Que sempre me enlouquece
e só aí percebo
como estava perdida
sem te ter encontrado

MARIA TERESA HORTA
Só de Amor
1999, ed. Quetzal

fotografia de SLAVA MOGUTIN

J'Ai Tué Ma Mère de Xavier Dolan

MOMMY ISSUES






O título deste filme é sugestivo. Desde o matricídio propriamente dito a sugestões de complexo de Édipo, parece não haver nenhum tipo de mommy issues de que não possamos suspeitar. "J'Ai Tué Ma Mère" é o primeiro filme de Xavier Dolan quer como realizador quer como argumentista, sendo que créditos como actor já tinha antes de 2009. O filme chamou a atenção no Festival de Cannes e agora, que finalmente o vejo, parece-me que nem tudo foi fogo de vista.

Este filme tem uma narrativa, mas não tem propriamente uma história, no sentido em que cria uma trama cuja resolução será também a resolução do filme. Nada contra, porque o cinema é uma arte em si, e não um filho da literatura, e não tem que ser julgado apenas pela qualidade da sinopse.

Acima de tudo, "J'Ai Tué Ma Mère" é, portanto, um filme psicológico, até porque a verdadeira acção entre os personagens acontece a um nível psicológico. Por isso mesmo, aqui há vários infanticídios e vários matricídios, sem que qualquer um dos protagonistas morra fisicamente durante o filme. A relação instável e quase doentia entre Chantal (Anne Dorval) e o seu filho Hubert (Xavier Dolan) é o assunto que acompanhamos quase ininterruptamente.

Desde Freud que percebemos que as relações entre os filhos (Rapazes.) e as mães são não raro complexas, ao ponto do próprio Freud não ter acertado na maioria das teorias que sobre isto formulou. Que Dolan aos vinte anos certos se tenha aventurado a ensaiar sobre o assunto não deixa de nos parecer uma ideia arriscada. Porque esta premissa poderia ser uma boa receita para o desastre. No entanto, o realizador acaba por, ao dar à história um cunho pessoal e intimista, nada interessado em traçar uma sentença geral sobre o assunto, conseguir resguardar-se desse desastre em que facilmente poderia ter caído.

Não encontramos em "J'Ai Tué Ma Mère" uma tentativa de generalização e, daí, de categorização. Pelo contrário, tanto Chantal como Hubert se nos apresentam como duas figuras perto do sui generis, e há que realçar que, enquanto personagens, estão perfeitamente construídas. Por isso mesmo, o filme nunca nos parece inusitado. O que aqui encontramos não chega a ser uma história de crueldade. É, isso sim, uma história de impossibilidade. Da impossibilidade do amor entre estas duas pessoas que, indubitavelmente, se amam, mas que não conseguem coexistir; só conseguindo amar-se ou à distância ou no meio da destruição.

É um mérito que cabe a Xavier Dolan, enquanto argumentista, ter conseguido criar dois personagens tão sólidos e, entre eles, uma relação lógica e contundente para quem a observa.

Se ao argumento não há, a meu ver, defeitos de maior a apontar, as falhas de "J'Ai Tué Ma Mère" começam na realização.

Nota-se que Dolan não é néscio, e que tem inteligência visual, ou sensibilidade, fazendo uso dos pormenores do cenário e do guarda-roupa e da própria paisagem. No entanto, há alguns erros um tanto evitáveis. Exemplo disso é que, com excepção de uma cena de jantar, nunca quando dois personagens estão sentados a uma mesa se sentam um de frente para o outro: estão sempre de lado, o que dá aos planos um ar um tanto teatral que, neste contexto, não tem muito sentido. E num filme onde se notam cuidados pessoais na imagem, não deixam de parecer perfeitamente evitáveis alguns planos escandalosamente pop, como é o caso do início da única cena de sexo do filme, com as tintas e a pintura.

E a direcção de actores, não sendo nada má -dado que tanto Dorval como Dolan se mostram bastante competentes- é um tanto discutível. Há muitos momentos de histeria neste filme, por parte de ambos os protagonistas, e há cenas em que, pura e simplesmente, a histeria é tão histérica que não parece real. E é perfeitamente dispensável que haja excesso naquilo que é já por si só excesso.

Por fim, a cena em que Hubert persegue a sua mãe vestida de noiva, filmada entre o videoclip e o vídeo caseiro, pura e simplesmente não está bem filmada, ainda que fizesse, para a construção da ideia, todo o sentido.






O que é certo é que "J'Ai Tué Ma Mère" consegue demarcar-se da ideia batida do complexo de Édipo, ainda que tenha uma ou outra cena em que isso nos ocorra. Mas Dolan desvia-se e leva-nos por caminhos que são, a um tempo, mais interessantes e mais credíveis. A questão da sexualidade, no entanto, é aqui atirada para segundo plano. Nada contra, porque o facto do protagonista ser homossexual não é a origem dos seus problemas de relacionamento com a mãe. No entanto, há uma pequena regra que devia ter sido seguida: é que se é um assunto secundário, deveria ser abordado da forma mais simples possível. Mas o que acontece é que, no plano da sexualidade de Hubert, encontramos um pequeno episódio com um outro rapaz, enquanto mantém um outro namorado. Esse episódio não tem utilidade nenhuma. Há apenas um beijo, cujo impacto é nulo. Mas gera uma certa distracção desnecessária. A sexualidade é um tema por demais complexo -talvez o mais complexo de todos- e o que parece é que, nessa área, Xavier Dolan ainda não se movimenta particularmente bem, pois parece, de alguma forma, ligado ainda às quimeras líricas e adolescentes. Por isso ainda bem que este assunto fica, neste caso, em segundo plano. Porque se assim não fosse, é certo que esta questão acabaria por desequilibrar o filme.

Feitas as contas, "J'Ai Tué Ma Mère", com todas as falhas que vai tendo, é um muitíssimo bom filme. E mesmo que se possa pensar de outra forma, acho que, no mínimo dos mínimos, este filme deixa uma séria promessa.


sexta-feira, 29 de julho de 2011

Katy Brand sabe exactamente o que eu sinto quando ouço Mariah Carey



Outros exemplos da estética surrealista nos vídeos de Marilyn Manson



"The Beautiful People" do álbum "Antichrist Superstar" (1996). Realizado por Floria Sigismondi



"Coma White" do álbum "Mechanical Animals" (1998). Realizado por Samuel Bayer



"Disposable Teens" do álbum "Holy Wood (In The Shadow of the Valley of Death" (2000). Realizado por Samuel Bayer

Doppelherz de Marilyn Manson

"Doppelherz" é o nome da curta-metragem realizada por Marilyn Manson em 2003, para acompanhar o álbum "The Golden Age of Grotesque". Manson parece ter convocado para este filme a herança surrealista como estética, o que não é, de todo, estranho ao seu imaginário. Nunca podemos esquecer que Manson, ainda que seja acima de tudo músico, não deixa de ter contado, desde "Portrait of an American Family" (1994), com uma dimensão imagética bastante complexa e forte, que Manson sempre soube renovar ao longo da sua carreira.
Este filme não esquece nada disso. Pelo contrário, "Doppelherz" parece ter chegado um tanto atrasado: é de estranhar que Manson nunca tenha antes transportado o seu lado visual para filme, excluindo, como é evidente, os videoclips. É certo que em 2000, no tempo de "Holy Wood (In The Shadow of the Valley of Death)" Manson fizera o controverso "Autopsy" onde filma uma autópsia brutalmente, mas este vídeo, ainda que significativo para compreender o universo do músico/artista, não tem nem a complexidade nem a originalidade de "Doppelherz".
Também não é estranha a presença do surrealismo neste filme, se lembrarmos que tem sido o surrealismo, enquanto total liberdade inventiva, a pautar todos os videos de Marilyn Manson. Mais ainda, poder-se-ia falar de uma estética barroca, quer no uso da máscara, quer no uso de um decorativismo exacerbado.
É um pouco aquilo que acontece com esta curta-metragem, que transporta toda uma gramática vinda destes conceitos.
Manson apresenta-se como realizador, mas conta com o trabalho plástico -aqui ligado à body-art- de Gottfried Helnwein, responsável pela direcção de arte de "The Golden Age of Grotesque". Todo o filme tem como banda sonora o tema instrumental "Theater", que é a introdução do álbum. Sobre essa música, obsessiva, repetitiva e sinistra, Manson declama um poema seu, também chamado "Doppelherz". "Doppelherz" significa "Duplo Coração". O tema está subliminarmente presente ao longo do longo poema, que passa pela repetição contínua de frases, que vão sendo ditas com diferentes entoações e desenvolvidas também, desdobrando-se em vários sentidos diferentes. Os assuntos são os mais caros às letras de Manson: a morte, a dor, a agonia, a amputação, a trucidação, a necrofilia, o isolamento, o luto, o pesadelo e, como não podia deixar de ser, também o lado político, ligado à filosofia de vida americana, que Manson vem criticando desde 1994. As imagens, parecendo desenvolver-se num plano completamente distinto, estão, no fundo, visceralmente ligadas com o poema.
O surrealismo aqui é uma estética, apenas, não significa nenhum tipo de arbitrariedade. Muitas destas imagens apontam-nos para duas mulheres siamesas, ao mesmo tempo que outras são claras em ideias de amputação, e isto aponta, evidentemente, para a ideia do "Duplo Coração" que, sendo dividido e justaposto a outro, causa a dor, o sofrimento, o pesadelo que este filme parece captar.
É essencialmente a ideia de pesadelo que mais facilmente podemos ligar a "Doppelherz". Em planos sempre escuros, um corpo inicialmente só vai-se mascarando, vai pintado o seu rosto, confrontado com as duas mulheres que são um só corpo. Com a chegada da divisão, da incisão, o corpo vai-se mascarando mais ainda, vai-se reinventando, como forma de resistir à dor. Ao mesmo tempo, há uma estrada a ser percorrida, sem que alguma vez chegue a qualquer lugar. Estas ideias parecem conjugar-se umas com as outras, formando uma só ideia, aliás muito básica, que é a defesa de uma pessoa perante uma perda, que significa a perda de uma parte de si mesma, do seu outro coração.
No final, lemos que este filme não quer explicações. Mas, como objecto artístico que é, pode ter leituras. Esta é a minha. E, independentemente da minha leitura ser mais ou menos adequada, a mim parece-me que "Doppelherz" é um objecto muitíssimo interessante.



DOPPELHERZ
(Poema de Marilyn Manson)

My pilot light has flickered out
You’ve knocked me off the hook
The person you are trying to reach is no longer here
I’m not really tall, dark and handsome
I just look that way
I’m a canvas that bleeds
And I’m painted with fingers
Childish pictures
Of you that still linger
Bury you’re wasted into the moon
Hoping that it sinks to the earth soon
Bury you’re wasted into the moon
I hope that it sinks into the earth soon
My pilot light has flickered out
You’ve knocked me off the hook
I’m a canvas that bleeds
And I’m painted with fingers
Childish pictures of you that still linger
I am a vcr
A funeral of dead memory waste
You can see it on my face
I’m a vcr funeral
Of dead memory waste
You can see it on my face
My smile is a chain link fence
I dare not frown
For fear of what comes out
My smile is a chain link fence
And I dare not frown for fear of what comes out
Sing a song kitty
Sing it
Sing it kitty
Sing it
Some people don’t think that lily
Is smart enough to understand what I’m thinking
But I know if she could she would kill
Everybody that I hate, cos she loves me
Cos I took care of her since she was a little baby
I am a vcr funeral of dead memory waste
You can see it in my face
As drink crawls down the oesophagus staircase
Into my bowels of hell
Naked like clown faces all smeared clean
Naked like clown faces all smeared clean in the spotlight
I’m a vcr funeral of dead memory waste you can see it on my face
Dead memory waste
Kill me, kill everyone, you can let them all die
The only thing in this world that does not die is money
You can kill me, you can kill them, you can let everyone die
The only thing in this world that does not die is money
The only thing immoral in this world is money
The only thing oral in this world is money
The only thing in this is money
The only thing is ney
The
Ney
The
The only thing immortal in this world is money
The person you are trying to reach is no longer here
You have knocked me off the hook
You are afraid that you are no equal
While you are spending my money
You can kill me, you can kill them, you can let everyone die
The only thing immortal in this world is money
Why would I want to be equal with anyone
You think you’re not equal while you’re spending my money
Why would I wan to be equal with anyone
To be equal you have to add or subtract
And I have never liked math
To be equal you have to add or subtract
And I have never liked math
You are recognisable, as just another part in a vast machine
The only thing immortal in this world is money
The only thing original in this world is the way we destroy things
Everything has already been created
So we can only deal with new ways of destroying them
Everything has already been created
So we can only think of new ways of destroying them
Stop rehearsing alcohol and start performing narcotics
Do you think that animals believe in god
To be equal you must add or subtract
People who want to be equal have lives that are filled with subtractions and auditions
To be equal you must add or subtract
People who want to be equal’s lives’ are filled with subtractions and auditions
We will call you back and tell you
Don’t call us, we’ll call you
Do animals believe in god
Stop rehearsing alcohol and start performing narcotics
This is a caucasian occasion
Could someone please autograph the frontal lobe
The insurance will not cover this
Could someone please autograph the frontal lobe
The insurance will not cover this
Can someone please autograph the frontal lobe, the insurance will not cover this
And the young are too senile
The young are too senile
The young zeich heil
Young are too senile
The young zeich heil
Do animals believe in god
I’m a kickstand in your mouth
I am a kickstand in your mouth
The insurance won’t cover this
You can run as fast as you want
But you can never outrun the cliché
The young are senile the young are senile
Have I outgrown my spotlight
My pupils are not students, they dilate but they never learn
Each time we roll up the dollar bill, we suffocate the president
Each time we roll up a dollar bill, we suffocate the president
Each time we roll up the dollar bill, we are suffocating the president
Each time we roll up the dollar bill, we suffocate the president
Just say now
Would you suck america’s tits
I want you to just say now, would you suck america’s tits
I want downloadable suicide
I want everything when I want it and I want it now
I want everything before I want it and I already wanted it so I don’t want it anymore
I want everything when I want it and I want it now
I want everything before I want it so I don’t want it anymore
I want downloadable suicide
I want a newer version
I want downloadable suicide
Version I don’t no
Version I don’t point no
Version I don’t pint no
Version I point the gun at me
O
Version I don’t no
Version I point the gun at me point o o o o o
I want downloadable suicide
If I sneeze will anyone bless me
Stop rehearsing alcohol and start performing narcotics
I keep watering a dead flower
Keep watering a dead flower
Keep watering the dead flower
Keep watering a dead flower
Everything I make is a piece of plant
In some day it could have been a flower
And the things that are flowers are dead
I keep watering a dead flower
Keep watering a dead flower
There’s not enough of me to make a bouquet
Stop watering a dead flower
Stop watering the dead flower
Stop watering a dead flower
I have no balance
I am like snow
And I melt away
I have no balance and I am like snow and I melt away
I have to balance
I am like snow
And I melt away
As you are listening
I want you to know
That you are nothing
But a screen that I will project
My images of sorrow, pain and sex upon
Although there is no difference between the three
As you are listening
I want you to know
That you are nothing
But a screen that I will project
My images of sorrow, pain and sex upon
Although there is no difference between the three
As you are listening I want you to know that you are nothing but a screen
That I project my images of sorrow, pain and suffering and sex upon
Although there is no difference between the three and the one
As you are listening I want you to know that you are nothing but a screen
That I project my images of suffering, sorrow, pain, sex
And the brief glimmer of happiness I find in the misery
Of those who are sitting in the theatre of which this screen exists
I want you to know as you are listening
That you are nothing but a screen
That I project my images of sorrow, pain, suffering, sex
And the brief glimpse of happiness I get from the misery
Of those who sit in the theatre that this screen exists will feel while they listen
The brief glimpse of happiness that I feel as
Those who sit in the theatre that this screen exists will feel as they listen
This isn’t about music
This is about the difference between you and me
I am a birthday cake that we light up, blow out, cut apart and forget
I am a birthday cake that you light up, blow out, cut apart, devour and forget
And I’m just like a holiday because I make everyone in the family cry
Love you’re enemy because love is the enemy
You’re sell by date has expired
Our commercial should be faster because we are all just slowguns
Waiting to have our triggers pulled
The commercials need to be faster because we are all just slowguns
Waiting to have our triggers pulled
The commercials should be faster because we are just slowguns
Waiting to have our triggers pulled
Don’t bother trying to save the brainforest
My pain is not ashamed to repeat itself
The aspiration to save the world is a morbid phenomenon of today’s youth
It’s time someone believes what I say, I’ve become a lie
Each time someone believes what I say, I become a lie
We have reached the end of history
The only thing left is cosmetic changes
We have reached the end of history
The only thing that’s left is cosmetic changes

Luther



Terminou recentemente a segunda temporada da série britânica "Luther". A primeira contava com seis episódios e a segunda com quarto. É um pouco triste que uma série com as qualidades desta tenha tão poucos episódios enquanto outras, menos interessantes mas mais vendáveis, se arrastam por intermináveis temporadas com inúmeros episódios que já não convencem ninguém. Claro que me estou a referir a "CSI".
"Luther" é uma série de investigação criminal, mas que nos obriga a esquecer tudo o que pensamos que sabemos sobre séries de investigação criminal. Dizer que isto se deve ao facto de esta ser uma série europeia pode parecer árido à primeira vista, mas a verdade é que explica muita coisa.
Segui avidamente a primeira época que nos conta a história de um polícia, John Luther (Idris Elba) que, por mais competente que seja, não nos surge nunca como um herói, nem perto disso. Luther tem um carácter agressivo e quase totalitário, é o homem que não olha a meios para atingir os fins. Só não é detestável porque os seus fins são, em princípio, nobres. A descoberta da sua personalidade e da sua vida conturbada é assunto dos episódios, bem como dos crimes, invulgares, agoniantes e violentos, que investiga na cidade de Londres.


No entanto, o que aqui há de mais fascinante é a relação insólita que John Luther desenvolve com a primeira criminosa que investiga mas que não consegue apanhar: Alice Morgan (Ruth Wilson) é uma sociopata charmosa, genial e absolutamente maligna a quem acontece o pequeno acidente de se fascinar pelo homem que tenta provar que ela havia assassinado os pais a sangue frio. É pouco claro se Alice se apaixona por Luther (Porque se coloca a questão se uma sociopata poderá verdadeiramente ter sentimentos.), mas o que é certo é que se comporta dessa forma, talvez por finalmente conhecer alguém de quem se sente igual, e não superior.
A relação entre os dois vai avançando ao longo dos episódios e instiga em nós talvez bem mais curiosidade do que propriamente os crimes investigados.
É por isso que esta segunda época corre mal. Tudo o resto que a série tinha de interessante, tanto a nível de argumento como de realização, mantém-se. Mas Alice Morgan desaparece no segundo episódio. Luther tem uma nova "protegida", Jenny Jones (Aimee Ffion-Edwards) que pode ser adorável, mas não é fascinante como Alice Morgan.
Destaque-se ainda uma banda sonora excelente, em que se ouvem canções de Emiliana Torrini, Marilyn Manson, Sia Furler e Muse, entre outros.
Ainda não está decidido se "Luther" terá terceira temporada. Mas a meu ver, nem vale a pena tentar, se Alice Morgan não estiver incluida.


(A série integral pode ser descarregada a partir daqui: http://www.baixartv.com/download/luther/)



Agustina tem destas coisas... (25)

Tinha conseguido três filhos dum marido meio assexuado e que detestava crianças. Ela disse:
_Fiz a minha obrigação. Agora quero viver sossegada e fazer montes de outras coisas.
_Não sabes fazer nada. Mesmo os teus filhos nasceram à custa de cesarianas. Que aldrabona, menina!
_Não me esforcei, mas o caso não era para isso. Dar à luz já não é uma brutalidade, tenhamos maneiras.





de "Prazer e Glória" (1988)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Parece que saiu há pouco tempo

o quarto livro de Rui Lage. "Um Arraial Português" é uma edição Ulisseia, e sucede-se a "Corvo" de 2008.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Frailty de Bill Paxton

ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS



Com uma longa carreira como actor, Bill Paxton estreou-se na realização em 2002, com este "Frailty", que em português se chama "Pela Mão do Senhor". É um filme difícil de definir. Nele se cruza o drama familiar com o horror, sendo a ligação conseguida através do tema, presente nalguns filmes deste último género, da obsessão religiosa.

Fenton Meiks (Matthew McConnaughey) vai uma noite procurar o detective Wesley Doyle (Powers Boothe), dizendo-lhe ter informações sobre o assassino que Doyle investiga, conhecido por Mão do Senhor. É assim que Meiks, revelando que o assassino é o seu irmão Adam (Levi Kreis), se lança a contar a história da sua infância. Depois da morte da mãe, Fenton e Adam passam a viver só com o pai (Bill Paxton), numa vida harmoniosa, até à noite em que o pai é visitado por um Anjo que o incumbe da missão de, representando a Mão do Senhor, destruir os demónios que estão espalhados pela Terra. E assim, o pai vai recebendo listas de pessoas que deve assassinar. Adam parece aceitar esta ideia muito facilmente, dizendo que, tal como o pai, consegue ver o demónio que se esconde por baixo da aparência humana das pessoas nas listas. Mas Fenton tem sérias dificuldades, o que lhe origina uma série de dissabores, que culminam com a sua clausura numa masmorra subterrânea que ele mesmo, sob as ordens do pai, escavara. E assim a infância violenta e delirante dos rapazes acabaria por, depois da morte do pai, "marcar" Adam para seguir com a missão de assassinar os demónios.

O que "Frailty" tem de interessante é que consegue notoriamente desviar-se dos clichés em que facilmente poderia ter caído, centrando a história no drama pessoal de Fenton e no seu conflito de valores. E é através desta violência exercida sobre a criança que Paxton consegue criar o verdadeiro horror do filme. Não há cenas particularmente gore ao longo da história, nem propriamente a pressão de ter que criar sustos contínuos e o resultado é que o horror se vai desenrolando a um nível psicológico que, como sabemos, resulta tanto ou mais que o físico.

A temática da obsessão religiosa ou do delírio a ela ligada é também muito bem abordada pelo argumentista Brent Hanley, recusando os caminhos mais evidentes, para, no final, sofrer uma resolução bastante surpreendente e que, para todos os efeitos, fecha as possibilidades abertas pelo filme, deixando de fora qualquer ambiguidade. Numa situação normal, esta escolha poderia não ser a melhor mas, na verdade, é essa mesma escolha que torna o final inesperado. Paxton revela-se um realizador competente, conseguindo alguns planos realmente marcantes, e bastante bem-sucedido na criação de um ambiente onde são notórias características como o isolamento, o secretismo, a dúvida e o medo, claro. Matt O'Leary e Jeremy Sumpter também estão surpreendentemente bem para a idade, nos papéis de Fenton e Adam enquanto crianças, contrariando a ideia de Alfred Hitchcock de que não se deve filmar com crianças. Outro exemplo de como isto nem sempre se confirma, seria "The Others" de Alejandro Amenabar.

Matthew McConnaughey também está surpreendente, no papel de um personagem torturado e por isso mesmo um tanto parado.



Ainda que este filme possa ser uma desilusão para quem espera algo de declaradamente violento e aterrorizante, na verdade, parece-me que, por se recusar precisamente a esses papéis acaba por resultar bastante melhor.


Bikini Grils On Ice de Geoff Klein

NINGUÉM MERECE






É de 2009 esta bodega (E vão ter que me desculpar, mas recuso-me a tratar isto por "filme".) realizada por Geoff Klein. Deste realizador existiam, antes, apenas duas curtas-metragens, que não vi. E pelas impressões com que fiquei da primeira longa-metragem, este "Bikini Girls On Ice", nem me interessa ver as curtas.

Esta bodega apresenta-se como uma bodega de terror, ou como thriller, mas, na verdade, não consegue ser coisa nenhuma. Se o título é premonitório de uma bodega cheia de meninas em bikini e muitas cenas de sexo e gore gratuito, a verdade é que só a primeira premissa se cumpre.

"Bikini Girls On Ice" conta-nos a história (?) de um grupo de raparigas que, para angariar fundos para alguma coisa que não chegamos a saber o que é, se propõe a lavar carros na estrada, usando apenas bikinis. São acompanhadas por Blake (Tarek Ghader) e Tommy (Ivan Perik), que tratarão da manutenção do evento. O problema é que o autocarro onde se deslocam sofre uma avaria, e, em vez de fazerem o car-wash na praia, como planeado, têm que fazê-lo numa bomba de gasolina abandonada, numa estrada deserta do interior. Isto aontece no primeiro quarto de hora da bodega, e cumpre já um sem-número de clichés ligados ao cinema comercial que se apodera do terror. O que acontece com este tipo de objectos de venda é que, por norma, o terror é um mero pretexto para filmar imensas cenas de sexo e de nudez. E é mesmo aqui, e só aqui, que "Bikini Girls On Ice" consegue surpreender. De facto, as raparigas, imensas, aparecem sempre de bikini, mesmo nas situações mais inusitadas, mas não há cenas de nudez. Cenas de sexo há apenas uma, rápida e sem qualquer noção de erotismo, e, isso sim surpreendente, sem noção de como fazer vender uma cena de sexo.

Quanto ao gore, que por norma é a justificação da designação "terror", também não o há. As cenas de perseguição por parte de um assassino nojento que grunhe culminam sempre com planos da cara dele e com salpicos de sangue nas paredes.

As personagens não chegam sequer a ter existência, são meros corpos, sem qualquer tipo de backstory ou de seja o que for. Seria de esperar, pelo menos, corpos sensuais. Mas nem isso. As raparigas são, na sua maioria, feias e desengraçadas, algumas mesmo mal-feitas e todas, sem excepção, não fazem a mínima ideia do que é sensualidade. E, como seria de esperar, são todas más actrizes. Mas chegam a ser tão más que se torna penoso vê-las. A protagonista, Cindel Chartrand, é absolutamente inexpressiva, de um rosto liso e frio, e, quando fala, é sem o mínimo de convicção. Não surpreende ninguém que para uma bodega destas não se tenham conseguido boas actrizes, pois nenhuma mulher inteligente e que se auto-respeite aceitaria fazer um papel destes.

Os rapazes, apenas dois, e que são remetidos para quase figurantes, também não fazem melhor figura. Um e outro parecem seriamente inertes e incompetentes, não servindo os actores para sequer um papel tão frugal como o que aqui têm.

A inconsistência da premissa também vai sendo evidente ao longo destes tortuosos oitenta minutos, sendo o assassino uma figura mal empregada, realmente nojento de aspecto, mas tão mal construído enquanto personagem que não chega a causar nem o mais leve calafrio.

O final da bodega arrasta-se imenso, para um final bastante frouxo, de resto bastante à altura de tudo o que aqui é feito.






Eu já vi maus filmes. Já vi filmes muito maus, muitas vezes. Mas foram muito raras as vezes em que, como aqui, tive tanto a certeza que o realizador nem sequer estava a tentar. A tentar fazer um filme, já nem digo um bom filme.

Uma coisa destas, ninguém merece ver. O título "Bikini Girls On Ice" promete um misto de pornografia e horror, mas a bodega acaba por não resultar nem para um nem para outro.

E desafio qualquer pessoa a encontrar um filme pior do que este, excepção feita a Alexandre Aja, que conseguiu no seu "Piranha" igualar a proeza de Geoff Klein. Sinceramente, eu apoio qualquer lei que exija que Geoff Klein seja preso num asilo psiquiátrico e impedido de, alguma vez na vida, voltar a pegar numa câmara de filmar. Nem que seja para filmar a sua última vontade e testamento.




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terça-feira, 26 de julho de 2011

The Ward de John Carpenter

CHOQUE

Não havíamos longa metragem desde "Ghosts of Mars", de 2001. Em exactamente dez anos, aquele que será um dos maiores mestres do cinema de horror, John Carpenter, realizou duas médias-metragens para a série de televisão "Masters of Horror", "Cigarette Burns" (2005) e "Pro-Life" (2006), além de ter visto dois dos seus mais marcantes filmes serem brutalmente violados, "The Fog" e "Halloween" em remakes de Rupert Wainwright e Rob Zombie, respectivamente.








Tendo em conta que "Ghosts of Mars" era um filme que nos apresentava Carpenter no seu melhor e mais complexo, quando a isto se acrescenta uma quase-ausência de dez anos, um filme como "The Ward" só pode ser muitíssimo aguardado, o que significa também que, sobre ele, recaem grandes expectativas.

O argumento de "The Ward", escrito por Michael e Shawn Rasmussen, leva-nos a 1966, ao Hospital Psiquiátrico de North Bend, onde Kristen (Amber Heard) acaba de ser internada, depois de ter incendiado uma casa isolada junto à floresta. Kristen passa a habitar o quarto da falecida Tammy que, na sequência inicial do filme, é assassinada em circunstâncias estranhas, dentro do quarto.

No hospital, além da terapia com o dr. Stringer (Jared Harris), Kristen trava conhecimento com mais quatro pacientes ali internadas, Emily (Mamie Gummer), Iris (Lyndsy Fonseca), Zoey (Laura Leigh) e Sarah (Danielle Panabaker). O convívio com estas mulheres, que ostentam sinais de psicose mais ou menos evidentes, é complicado para Kristen, na medida em que, como seria de esperar, esta se considera lúcida, ainda que não consiga perceber concretamente o que fez com que fosse internada no Hospital Psiquiátrico.

Acontece também que, a certa altura, as pacientes começam a desaparecer, enquanto Kristen tem alucinações com um fantasma de uma rapariga chamada Alice, e que teria sido também paciente daquele hospital. E não só as circunstâncias da morte de Alice se afiguram misteriosas, como o desaparecimento das outras parece apontar para o mesmo mistério, onde se prevê uma história de vingança.

O filme evoluiu num sério crescendo de tensão, até ao desenlace que, não sendo brutalmente insólito, é pelo menos inesperado.

Há aqui duas questões que têm que ser separadas: o argumento e a realização.

O que acontece é que o argumento de "The Ward" carece de um certo sentido de ritmo. A primeira metade do filme vai alternando entre o convívio das pacientes e as consultas com o psiquiatra e, ainda que se sinta um certo clima de mistério, falta tensão e também uma exploração mais profunda dos elementos que vão sendo dados para que se entenda esse mistério, parecendo que tudo fica em suspenso, para ser explorado depois, a partir mais ou menos dos sessenta minutos quando, aí sim, a tensão começa realmente a fazer-se sentir. O que acontece é que o argumento deveria estar escrito de maneira a distribuir tudo isto de uma forma mais equilibrada, criando no espectador a vontade de ir descobrindo o segredo que "The Ward" encerra. Mas, estando escrito da maneira que está, o argumento parece, primeiro, demasiado lento e, depois, preocupado em compensar.

O que vem salvar tudo é, como seria de esperar, a realização meticulosa e inteligente de John Carpenter. À primeira vista, poderia parecer que "The Ward" quase homenageia "The Shining" de Stanley Kubrik, mas, se repararmos realmente no cinema de Carpenter, percebemos que, nele, há sempre um sentido arquitectónico, que acontece, de novo, neste filme. O espaço é, de facto, filmado de maneira a mostrar-nos mais ou menos o que sentir em relação àquele espaço. E Carpenter sabe sempre como utilizar esse espaço, e os seus pormenores, para legitimar as situações que filma. E se, de facto, na sua primeira hora, "The Ward" vai tendo algo de interessante, é às minúcias de realização que o deve; e também à direcção de actores, que volta a estar perfeita. Não só Carpenter consegue planos inesperados e contundentes, principalmente no que toca às aparições do fantasma de Alice e na morte das primeiras pacientes; como as actrizes se demonstram perfeitamente competentes no que toca a entretecer um clima entre si, que oscila entre a loucura e a convivência infantil. E, claro, há que referir também o genérico inicial, inteligente e sensível, na utilização de ilustrações relacionadas com as técnicas psiquiátricas em voga nos anos sessenta e a simbologia do vidro que parte, como símbolo da mente que se divide ou que se estilhaça.






Não se pode dizer, em verdade, que "The Ward" seja um filme mau. Àparte questões de ritmo que não estão bem resolvidas no argumento e que a realização só pode contornar até certo ponto, a verdade é que este filme é bem-sucedido no que toca às ideias de desconfiança da mente própria, de clausura e claustrofobia, e até de conspiração. E se este fosse um filme de um qualquer outro realizador, seria de aplaudir. O problema é que este é não só um filme de John Carpenter, como a primeira longa-metragem que este realiza num espaço de dez anos. E de Carpenter seria de esperar muito melhor. As suas marcas mais garridas estão todas presentes, mas falta-lhe movimento, falta-lhe alguma invulgaridade.

O que não se compreende é como é possível que Carpenter, numa média-metragem para televisão, tenha realizado um filme que é um clássico imediato e um dos melhores filmes de horror de sempre e que, com todos os meios próprios de uma longa-metragem para cinema tenha feito um filme que, pura e simplesmente, não pode competir com grande parte dos filmes que Carpenter tem na sua filmografia.

Esperemos que haja outro filme, em menos de dez anos, que venha repor a fascinação que John Carpenter nos merece, sem dúvida.



domingo, 24 de julho de 2011

(Des)Crucificações





No decurso do II Encontro da Associação Portuguesa de Prevenção do Alcoolismo, foi abordado o tema “O Álcool na Literatura _ O Escritor e a Obra” que incluiu uma homenagem a Natália Correia, para a qual me pediram colaboração. Escolhi nessa ocasião dar um testemunho sobre algumas dimensões menos visíveis da personalidade desta escritora que me impressionaram e tocaram duma forma especial (por ter sido sua amiga e por ter privado com ela) e poderão ajudar a compreendê-la um pouco melhor.

Se um talento esplendoroso, uma inteligência luminosa e um magnífico sentido de auto-encenação foram responsáveis pela incendiada admiração que tantos de nós sentimos por Natália Correia, a pose majestática, tonitruante e por vezes feroz, assustaram outros tantos; mas apenas um olhar disponível e sem preconceitos podia dar-se conta, ao arrepio dos lugares comuns que sempre se foram dizendo a seu respeito, do absoluto desamparo e da total fragilidade deste ser excessivamente complexo e paradoxal.

A quem se deixava impregnar pelo carisma desta mulher extraordinária, não podia deixar de surpreender o intenso curto-circuito que a sua personalidade exprimia pela mistura do esplendor com o arcaico, ou como ela própria disse em “Madona”, referindo-se a uma personagem, podíamos senti-la como se estivesse “...misticamente ligada a uma religião onde as forças extremas, o sórdido e o sublime se fundiam numa única e inominável divindade... não havia qualquer duplicidade moral nesta sua forma de tocar os dois pólos da alma. Dir-se-ia que o seu espírito tinha um perpétuo movimento circular que incessantemente abrangia o superior e o inferior” (p. 41)

Esta complexidade e estes contrastes foram desde sempre para mim um poderosíssimo apelo à decifração. Tentar esclarecer alguns equívocos que envolveram a figura e a vida de Natália Correia é um tributo de quantos a conheceram e amaram.

O primeiro equívoco é sugerido pela associação da Natália à problemática do alcoolismo. Já por altura da sua morte houve quem, nunca a tendo conhecido, comentasse terem sido o álcool e o tabaco a vitimá-la. Nada mais injusto.

É verdade que Natália frequentava um bar regularmente, animando noite após noite tertúlias e convívios; defendeu exaltadamente marginalidades e marginais; celebrou com álcool festas e encontros; e abominou em discursos excessivos todas as formas de puritanismo. Tratava-se duma postura intelectual, uma atitude romântica, insubmissa e desafiadora, que partilhava desde a juventude com os surrealistas, de quem foi amiga, companheira de muitos percursos e em alguns casos musa inspiradora.

No entanto bebia muito moderadamente, apenas em situações sociais, e afirmava mesmo nunca se ter excedido. Quando deixou de beber e fumar por conselho médico, nunca a ouvi queixar-se por lhe sentir a falta; apenas sofria por ter perdido a saúde que lhe permitira no passado beber e fumar.

Aquilo que de mais subterrâneo a terá impelido para certos ambientes, sugeriu-o em “Madona”, a propósito de bares e do cortejo de seres bizarros que sempre lhes estão associados: “Perante essa inquietante sociedade de seres oníricos [Miguel], dava-me a impressão de um coleccionador de coisas fantásticas nas quais fazia entrar a tragédia afogada em risos desses palhaços da comédia dos sexos” (p. 84). Ou: “... Mas o que ele procurava era uma forma... de nadar naquele mar de naufragados, o único elemento que lhe permitia a sensação de se agitar e de se achar vivo no pulsar dessa agitação” (p.55). Ou ainda: “É no meio desses infelizes que eu me posso sentir um ser humano” (p.178).

Outro equívoco terrível que crucificou Natália Correia em vida diz respeito à lenda de “mulher fatal”, “vamp”, “devoradora de homens” (ou nem só), tecida através de inúmeras histórias e enredos, qual deles mais descabelado, com que mistificaram a sua vida amorosa. Este equívoco partilhou-o com outras mulheres de gerações próximas da sua. Grandes actrizes que ajudaram a criar e difundir o mito da “mulher fatal” surgem-nos hoje em dia, através de biografias póstumas (Garbo, Marlene, Marilyn, etc.), como vítimas destroçadas pelas armadilhas a que deram rosto, e revelam-se-nos mulheres imaturas, sexualmente inibidas, com vidas amorosas precárias e infelizes. Esta verdadeira patologia da feminilidade não parece encontrar-se nas gerações com menos de 60 anos. O cinema continua a promover imagens de mulheres belas e sensuais, mas distantes da “mulher fatal” dos anos 50. Sucessivas revoluções sexuais fizeram aparecer novas expressões para a mesma patologia da feminilidade, e ironicamente os herdeiros actuais destas “femmes fatales” dos idos 50 parecem ser certos travestis do “show business”.

Natália Correia contribuiu para este equívoco que se lhe colou à pele e à vida: foi uma mulher muito bela e uma sedutora compulsiva, uma “allumeuse”. Com as suas ideias libertárias e atitudes desafiadoras demoliu publicamente muitos tabus, sexuais incluídos, ajudando a criar uma imagem com que viria a ser perversamente agredida.

Era por isso totalmente inesperado darmo-nos conta, ao privar com ela, de quanto a sua vida e os valores pelos quais pautava o seu comportamento contradiziam esta ousada encenação intelectual. Confessava repetidamente, a pessoas quase sempre incrédulas, que se considerava uma mulher sexualmente inexperiente, inapetente e inapta. Emitia juízos de valor a respeito de comportamentos de pessoas que lhe eram próximas, que mais do que conservadores, chegavam a ser reaccionariamente puritanos.

Mas ela própria afirmou: “A minha ousadia era puramente intelectual, ou seja, a cobardia de viver” (“Madona”, p. 165). Ou: “...A poesia é o défice das nossas inibições. Viver poeticamente é viver as coisas em potência.” (Ibid., p. 154). Ou ainda: “... Fazer poemas enquanto se mata/ durante a cópula quando faminto/ esses nunca os vi fazer// A poesia é sempre em vez/mênstruo da alma uma vez por mês/ sangrenta flor abortada/ da natureza infecunda” (“Poema Sáfaro”, in “O Vinho e a Lira”).

Perante a perplexidade de quantos a procuravam compreender, tornava-se claro que não se tratava de fingimento: não havia uma Natália actriz “vs “ a pessoa; a figura pública “vs” a existência privada; a máscara “vs” o rosto. Ao contrário, estávamos sempre dentro do mesmo cenário, barroco, que ora nos aparecia pelo direito, ora pelo avesso, numa constante reversibilidade dos contrários.

Um dia contou-me que, quando criança, ainda nos Açores, vira num filme bíblico cristãos a serem devorados por leões num circo romano, e imediatamente tomara o partido dos leões. Nesta frase extraordinária, Natália Correia condensou toda a sua tragédia narcísica: ela foi sempre a vítima, condenada implacavelmente a ser comida pelo leão – em que ela própria se tornava para poder sobreviver. Cristão devorado e leão devorador, Natália Correia cumpriu este destino em vida e obra. Vítima sacrificial desde sempre crucificada na sua tragédia interior, o que a compeliu a trabalhar obsessivamente, e magnificamente, o tema da descrucificação.

Esta primordial crucificação (tão dilaceradamente exposta em “Uma Estátua Para Herodes”) dum ser que simultaneamente irrompia com uma energia anímica assombrosa (Henry Miller chamou-lhe “uma força da natureza”) pertencia ao que em Natália Correia permanecia um enigma em busca de decifração. Sensíveis à carga mítica que desde sempre a envolveu, podíamos ao mesmo tempo adivinhar a criança dependente, humilhada e culpabilizada que também foi. Com a sua admirável vitalidade “deu a volta por cima”, sem no entanto se soltar do fio da navalha onde sempre se equilibrou pela criação e fantasia que fizeram dela a genial fabricante de sonhos que conhecemos.

A devoção e admiração que procurava permanentemente obter à sua volta, foram a forma sublime com que recusou submeter-se à sua aflita dependência, que noutros planos sentiu com um desmesurado embaraço. A vergonha e humilhação transfigurou-as em magnífica arrogância com que golpeava implacavelmente quantos ameaçavam apequená-la. A terrível culpabilidade em que se consumia converteu-se em desafio e provocação com que “levantava as saias a essa podridão vestida de marido, de pai, de sacerdote” (“Madona, p. 36).

Neste precário equilíbrio entre dependência e necessidade de ser admirada, humilhação e arrogância ou mesmo culpa e desafio, Natália cumpriu-se excessiva e exuberante em cada um destes pólos antitéticos.

Alquimicando esta humaníssima dilaceração, o seu extraordinário talento marcou-lhe encontro com as próximas gerações, quando a sua vastíssima obra for conhecida, compreendida, apreciada e ocupar o lugar cimeiro que lhe pertence no panorama cultural do nosso século. O futuro deixar-se-á impregnar pela genialidade fulgurante das suas dádivas maiores: “...E à branca praia nos leva a onda materna/ Porque os deuses aí não são longínquos./ Têm seus tronos onde nos esperam/ Imutáveis os mitos” (in “O Armistício”).

É lá que a Natália Correia nos espera.


M. Manuela Gonçalves dos Santos
in "Se...Não"
nº 2, 2011

sábado, 23 de julho de 2011

Amy, a artista

A morte, hoje, de Amy Winehouse não surpreende, mas não deixa de ser triste.
Dois álbuns de excelente qualidade, infelizmente, não lhe deram tanta fama quanto os problemas com o álcool e as drogas. Provável e lamentavelmente, será essa condição de deprimida não tratada a construir a lenda à volta de Amy.
É pena. O destaque deveria ser dado a canções como "In My Bed", "Me and Mr. Jones" ou "Back to Black".
Porque colocar a tónica no álcool e nas drogas fará dela uma estrela, mas não uma artista, agora que, depois da morte, a recordamos. E isso, a meu ver, torná-la-à indigna, porque a estrela facilmente se torna vulgar, substituível, dispensável. Mas a Amy era uma artista, por isso mesmo invulgar e irrepetível. Eu prefiro lembrá-la assim. Haja mais alguns que a lembrem assim!
E, para assinalar o seu triste desaparecimento, aqui fica a minha música favorita das suas, "Back to Black".



Amy Winehouse

1983-2011

sexta-feira, 22 de julho de 2011

"Biophilia", o sétimo álbum de originais de Björk vem em Setembro



"Crystalline"




"Cosmogony"

Harry Potter and The Deathly Hallows part2 de David Yates



ENCOLHER OS OMBROS


Sobre a segunda parte de "Harry Potter and The Deathly Hallows" recaía uma grande pressão. Primeiro por ser o filme que encerra a saga e também porque a primeira parte se apresentava como um objecto cinematográfico respeitável, com qualidades que covinha manter.
Chegada então a conclusão aos cinemas muito recentemente, o
que parece é que David Yates não foi realmente capaz de fazer um filme à altura.
Uma das coisas que mais me chamou a atenção relativamente à primeira parte, estreada o ano passado, foi que, comparativamente a todos os filmes da saga, este era aquele que parecia ter uma consistência realmente cinematográfica e visual, sabendo como inventar-se a partir do imaginário dos livros de J.K. Rowling.
Esse é um dos defeitos desta segunda parte: é que parece limitar-se a dar uma dimensão visual àquilo que Rowling escreve, não tendo, consequentemente, grande independência enquanto filme. Mais ainda, há cenas neste filme que também parecem seguir um facilitismo muito evitável, colando-se a filmes recentes do mesmo género, dos quais o exemplo mais evidente será o da saga "Lord of the Rings", muito notório na cena da invasão dos Devoradores da Morte à escola de Hogwarts.
Sendo que este filme representa a batalha final entre Lord
Voldemort (Ralph Fiennes) e Harry Potter (Daniel Radcliffe), seria de esperar que Yates conseguisse criar uma tensão conveniente nessa batalha. Pelo contrário, Yates parece adiar deliberadamente esse confronto para, quando ele finalmente acontece, parecer despachado num instante, deixando seriamente a desejar.
O delírio de Harry, do reencontro com o falecido Albus Dumbledore
(Michael Gambon), conta com um bom diálogo, mas visualmente também se nos apresenta bastante pobre, além de pouco criativo. É facto que Yates poderia ter levado a cena bastante mais longe.


Neste filme, tal como no anterior, faz-se também sentir, ligeiramente, a presença da adolescência, num pendor romântico, mas, ao passo que anteriormente este lado surgia de uma forma realmente orgânica, neste filme parece ser algo de apressado e que está ali apenas para manter uma certa fidelidade ao livro, sem ser realmente significativa para o filme.
Por fim, outra cena que só pode ser uma desilusão é a sequência final em que, 19 anos depois da batalha final, Harry leva o filho ao Hogwarts Express. A escolha de usar os mesmos actores é deplorável, porque não há, pura e simplesmente, maneira de estes actores parecerem estar próximos dos 40 anos. Toda a maquilhagem e tratamentos conseguiriam, no máximo, fazê-los parecer uns cinco anos mais velhos, pelo que a cena final se nos afigura absolutamente indigna do orçamento que este filme teve para ser produzido. Não se admitia um erro tão crasso a não ser numa produção escolar (E mesmo aí, poder-se-iam encontrar soluções mais acertadas.).
De facto, esta segunda parte de "Harry Potter and the Deathly Hallows" está muito longe quer de ser um bom final para a saga de Harry Potter, quer de ser um filme particularmente bom. O que mais desilude é que David Yates realizou aquele que poderá ser o melhor filme desta saga, para afinal vir a realizar um outro que mais não provoca em nós que um encolher de ombros.



quarta-feira, 20 de julho de 2011

Sobre a Areia


Sair do mar deitar

na areia o corpo como se o chamasse

o sonho desta noite tão exacta


na reconstituição do que era

oh alucinação da juventude

aproximar dos corpos



Gastão Cruz

in "Corrente d'Escritas 2010"


pintura de Henry Wallis

segunda-feira, 18 de julho de 2011

É bem verdade...

Love is great, love is fine
Out the box, outta line



Rhianna, S'n'M

1962, Agosto, A-Ver-o-Mar



Que longo dia para a minha tristeza! Longe é onde há vozes, chamamentos, passos, acenos de adeus. Aqui o silêncio é um túmulo aberto que me força a olhar a inutilidade da luz.

A paisagem movente, ensolarada, azul, luminosa e marinha é aquele que eu tinha decidido seria para sempre como entrar na infância e no sonho. Mas não tenho nenhum sonho para habitar a paisagem que se fere de insídias, de abandono, se lacera de ausência. Como foi possível? Não há só destinos. Há maus fados. Só nas histórias antigas é que tudo era de sempre e para sempre, porque o tempo não existe, é auroral, eterno, sem desgaste.

Vela que passaste entre as ramagens, a memória traz-me afagos, instantes, uma voz... Tudo breve, breve sombra de asas sobre as dunas.



Inocentes, as crianças dormem. A noite entra pela janela e pousa uma túnica, inconsútil de luar, na minha cama vazia. Fecho a vidraça. Pelo menos o choro soluçante da maré quedar-se-à fora. Mas não posso evitar o que em mim morre. Não sei bem o que é. Morre lenta, dolorosamente, morre, como um difícil afogar de pétalas.



Luísa Dacosta

Na Água do Tempo, diário

1992, ed. Quimera

fotografia de David Penprase

domingo, 10 de julho de 2011

O Livro dos Amantes (fragmentos)


IV
Dá-me a tua mão por cima das horas.

Quero-te conciso.

Adão depois do paraíso

errando mais nítido à distância

onde te exalto porque te demoras.





VI

Aumentámos a vida com palavras

água a correr num fundo tão vazio.

As vidas são histórias aumentadas.

Há que ser rio.



Passámos tanta vez naquela estrada

talvez a curva onde se ilude o mundo.

O amor é ser-se dono e não ter nada.

Mas pede tudo.





VIII

Eis-me sem explicações

crucificada em amor:

a boca do fruto e o sabor.





IX

Pusemos tanto azul nessa distância

ancorada em incerta claridade

e ficámos nas paredes do vento

a escorrer por tudo o que ele invade.



Pusemos tantas flores nas horas breves

que secam nas árvores dos dedos.

E ficámos cingidos nas estátuas

a morder-nos a carne de um segredo.



Natália Correia

Poemas

1955, ed. autora

fotografia de Floria Sigismondi

sábado, 9 de julho de 2011

Boas notícias

Apesar de ter dito que "Ruas", de 2009, seria o seu último álbum, Mísia confirmou já a edição de mais um disco para o outono deste ano. "Senhora da Noite" será o título, seguindo um espectáculo que Mísia tem vindo a interpretar por vários palcos europeus.
São boas notícias, já que Mísia não deixa de ser a mais complexa fadista, com um projecto que, desde sempre, tem sabido cruzar da melhor maneira o fado quer com outras sonoridades, quer com a poesia e com densos imaginários de que nos dão conta as fotografias que acompanham os álbuns e os videoclips.
Abaixo fica um teaser do que será o sucessor de "Ruas". Com imagens de Francisco Aragão, colaboração nada recente, Mísia mostra-nos duas canções: a primeira, "Senhora da Noite", que dá título ao álbum conta com um interessante poema de Hélia Correia; a segunda, "Simplesmente", tem letra de Amélia Muge.
Pelas previsões, não ficaremos desiludidos.



[em folhas de acetato me proteges]


em folhas de acetato me proteges
floresço em avenida litoral
breve serei semente um céu e a terra
plantado azul e sopro de marés

as palavras fechadas com o jeito
que a boca tem ao ver-se
retratada
quase um sabor razão acidulada

me persegues de nomes, me retratas
igual ao branco hotel onde regressa
a não lembrada sombra do verão

e pousam de ouro em água o só
engano breve
das rosas e da neve despertadas.



António Franco Alexandre

A Pequena Face

1986, ed. Assírio e Alvim

pintura de Paul Gauguin

"Lillias Fraser": O Perigo de Revelar o Nome

Recentemente, reabri "Lillias Fraser", um dos melhores (Senão o melhor mesmo.) romance de Hélia Correia. Na altura em que o li pela primeira vez, aqui escrevi um texto (Este.) com algumas notas de leitura sobre o livro, editado em 2001. No entanto, quer-me parecer que houve uma questão que descurei (O que não será tão estranho assim.) ou a que, pelo menos, não dei a devida importância. Creio que acontece assim com os grandes livros: e
xigem-nos que voltemos a eles para se revelarem totalmente a nossos olhos. E, sendo que, para mim, é inquestionável que "Lillias Fraser" é um grande livro, quer-me parecer que, de cada vez que o ler, e certamente o lerei mais vezes ainda, encontrarei algo de novo.
Neste caso, já um pouco descentrado da ideia da terceira visão que, numa primeira leitura, me pareceu um dos aspectos cruciais para entender tanto o romance como a personagem de Lillias; o que me chamou a atenção foi a questão da identidade. O problema da identidade é assunto de muitos livros, senão de todos mesmo, e não tenho dúvidas de que "Lillias Fraser" será um dos exemplos mais complexos e mais bem-sucedidos desse problema.
Hélia Correia já antes havia abordado, e de várias perspectivas, o problema da identidade: em "O Número dos Vivos" (1982), acompanhamos o percurso de uma rapariga do campo que se infiltra numa família rica e assim se vai metamorfoseando; em "Soma" (1986) encontramos um indivíduo que, no limiar da velhice se confronta com os seus valores de juventude; em "A Casa Eterna" (1991) uma mulher vai visitar a casa onde um amigo poeta havia nascido e onde havia voltado para morrer, na tentativa de reconstruir a sua vida. E, mesmo depois de "Lillias Fraser", Hélia voltou à questão identitária em livros como "Bastardia" (2005) e, de certa forma, mesmo em "Adoecer" (2010).

******

Em "Lillias Fraser", a questão da identidade é de longe muito mais directa do que em qualquer outro livro, já que ela se assume, através, por um lado, do silêncio de Lillias, poucas vezes quebrado ao longo da sua história, e, por outro lado, pela impossibilidade da menina revelar o nome verdadeiro.
Filha e irmã de rebeldes de guerra, na Escócia, ao tempo da Batalha de Culloden, Lillias é salva pela sua capacidade de antever a morte das pessoas quando esta se aproxima. Escondida por várias pessoas, é-lhe dito a certa altura que não fale. Mas aquilo que era uma maneira de ninguém reparar que Lillias ali estava é interpretado pela própria como uma ordem permanente e, na grande maioria das páginas encontramos Lillias num mutismo estóico que, quando é quebrado, mais não revela do que trivialidades, sem que a rapariga alguma vez manifeste algo de verdadeiramente importante.
O fim da batalha amaldiçoa o nome Fraser em território escocês, e os acolhedores de Lillias acabam por lhe atribuir outros apelidos, sendo McLean o mais duradouro, que se perpetua até depois da sua vinda para Portugal, onde fica, inicialmente, a viver no Convento das Inglesinhas, em Lisboa. A sua estadia no convento termina com o Grande Terramoto. Lillias acaba por juntar-se a um grupo que tenta escapar à destruição causada pelo terramoto. Entre essas pessoas, encontra-se Cílicia Peres, que acabará por adoptar Lillias, dando-lhe um novo nome: Lília Peres.
A personalidade fortíssima da rapariga é evidente, mas manifesta-se sempre por outros modos que não a fala. Ela mantém o seu silêncio, nunca sequer protestando acerca dos novos nomes que lhe atribuem. Parte do seu medo em revelar a sua verdade parte também de alguns dissabores que tivera por causa do seu dom, sendo que este dom, por mais nefasto que fosse ou que pudesse parecer, será inevitavelmente uma parte dessa verdade íntima.
A questão do nome assume, aqui, como é claro, uma dimensão simbólica. Sabemos que na vida real, o nosso nome pouco diz de nós ou da nossa verdade. No entanto, no romance, somos levados a olhar para o nome como uma identidade e Lillias, tendo vários nomes, acaba por não ter nenhum, ou seja: quando lhe atribuem outros nomes, outras personalidades, estão, na realidade, a anular a verdade, a verdadeira identidade e esta passa a existir apenas dentro da própria Lillias Fraser, sem que mais ninguém tenha acesso a ela.
Pressente-se ao longo do livro que, tanto o mutismo quase contínuo como a não resistência aos novos nomes não resultado do medo que Lillias sente. Não é forçado que assim pensemos pois o momento em que Lillias recebe a "ordem" de não falar é um momento de grande medo, pois, ainda criança, percebera que estava a ser perseguida. E se essa primeira perseguição era justificada por uma questão familiar, a verdade é que outras perseguições se dão posteriormente, essas justificadas pelo dom que Lillias tem, de antever a morte. Se o medo, ou mesmo uma certa apreensão, não passam, é natural que a menina perpetue o silêncio e que não se oponha a ter o verdadeiro nome anulado.
A entrada em cena de Jayme, o filho desaparecido de Cilícia vem trazer, no fundo, uma alteração a um tempo ligeira e astronómica. Movida por um certo sentimento passional, Lillias muda de comportamentos, parecendo tornar-se mais "leve", menos introspectiva ou menos amedrontada, acompanha Jayme, ouve-o, reage a ele, sem, no entanto, quebrar significativamente o seu mutismo. E sem lhe revelar o nome, ainda que disso pudesse parecer muito próxima.
Se o seu medo por um lado se atenua, por outro não se dissipa.

Confirmaremos que este medo tem razão de ser mais à frente, quando Lillias, acompanhada de Cilícia, se encontra entre tropas escocesas em Portugal.
Na cena em que Lillias é levada junto do general escocês, ela ouve, pela primeira vez em muitos anos, a sua língua de nascença, com a mesma pronúncia. Aqui, a língua assume a mesma importância que o nome: por mais que não tenha uma importância tão extrema no quotidiano, ela apresenta-se-nos como mais um detentor de identidade, um elemento ligado ao íntimo e ao verdadeiro. Ou pelo menos é assim que Lillias reage: quando lhe perguntam o nome, responde "Lillias Fraser".
É a primeira vez, desde que fugira da Escócia, revela o seu nome a alguém. Mas vemos que a sensação de conforto e de intimidade que lhe fora sugerida pela língua se revela falsa: o nome Fraser ainda está ligado aos rebeldes e Lillias tem, de novo, que fugir, para evitar ser assassinada:

"No estado de alegria em que se achava, Lillias disse o seu nome verdadeiro. (...) Um tal esforço de grandeza de alma deixara Lord Loudon tão exausto que o seu humor sofreu um duro golpe. (...) Ela chegou e respondeu-lhe: «Lillias Fraser». O general suportaria tudo menos o nome Fraser outra vez"


E assim Lillias confirma o perigo de revelar o seu nome verdadeiro. Outras interpretações poderiam haver, nomeadamente a de que o apelido Fraser estava associado à guerra, portanto, a uma forma de violência, mas também a uma forma de resistência pois, seja como for, ambas são difíceis de aceitar pelo comum dos mortais. E, assim sendo, o nome que tem um passado de violência, dela não pode fugir nem no presente nem no futuro, pois é inegável que o impedimento de revelar o nome verdadeiro é de uma violência extrema, ainda que de outro tipo.
E, associada com esta problemática, surge-nos uma outra, que é a do reconhecimento: no final do livro, Lillias cruza-se com Blimunda Sete Luas, a personagem do "Memorial do Convento" de José Saramago, que tem um dom semelhante ao de Lillias, ainda que "mais feliz". E aí vemos que só verdadeiramente aquela que tem dentro de si algo de semelhante, algo que por vezes tem que ser silenciado, pode, sem perigo, ouvir o nome de Lillias, representando um quase-espelho, que esse, afinal, terá o direito de saber a verdade.